Nessa tarde, à saída do escritório esbarrei com o meu antigo professor de desenho. Já não nos víamos há uns anos e acabámos na cervejaria da esquina a beber umas canecas e a petiscar uma orelheira, enquanto recordávamos os velhos tempos. Separámo-nos já pela noitinha, bem aviados.
Á noite, chegou a minha namorada no expresso de Lisboa, mas como ainda tinha uma aula de literatura a dar, convidei-a a assistir. A tarde de copos não me permitiu preparar convenientemente a aula, pelo que, apanhando um livro à sorte na secretária e folheando-o, parei num belo texto de António Gedeão, que resolvi analisar com os meus alunos.
Entre eles, havia uma freira dos seus vinte e poucos anos, originária de uma numerosa família do Minho; boa aluna por sinal. Depois de uma breve introdução biográfica sobre o autor, pedi, como habitualmente fazia, a um aluno que lesse o seguinte poema:
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Aqui interrompi a leitura e pedi à freira que comentasse o poema. Ela, levantando os olhos do caderno de apontamentos, fitou-me demoradamente, mas nada disse. Eu insisti e quis saber “que efeito poético utilizava o autor para traduzir a vida árdua e repetitiva da Luísa”. Novo silêncio. Perguntei se alguém na sala sabia. Ninguém.
Então lá fui explicando, que era através da repetição do “sobe” no início de cada verso. Quis saber um exemplo concreto no poema, onde resultasse nítida a vida cansativa de Luísa. Ninguém sabia também. Perguntei à freira. Novo silêncio.
-Então –expliquei- não será na parte em que passam os magalas, lhe apalpam as coxas e não dá por nada?
-O Sr. Doutor lá deve saber – respondeu, trocista, a freira.
E a leitura continuou:
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Interrompi de novo, para saber onde é que no poema resultava a vida agitada de Luísa. Ao novo silêncio, lá fui explicando, que “era nas tarefas diárias que exaustivamente o autor descrevia”.
-E já agora – indaguei da freira- em que parte do poema se viu o extremo cansaço da Luísa ao fim do dia?
- O senhor Doutor é que deve saber…
- Então não foi quando - observei- caiu na cama, o homem se serviu dela e não deu por nada?
E prosseguiu a leitura:
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada...
Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada...!
Descendo pelo corredor, fui aludindo à forma magistral como em todo o poema, António Gedeão usa e abusa da diácope, da anadiplose e da anáfora para retratar a vida dos trabalhadores dos subúrbios de Lisboa. E aproximando-me da carteira da freira, propus-lhe que, sinteticamente, me fizesse um retrato físico e psicológico de Luísa, relação amorosa incluída.
Aí ela, virando-se na cadeira, para melhor ver a minha namorada sentada na carteira lá do fundo, atirou:
- Ora, porque não pergunta àquela senhora? Ela deve saber bem mais dessas coisas do que eu!
E dei por concluída a minha aula.