Segunda-feira, 20 de Novembro de 2006

 

 Guarda - Kirche Sé

             Retábulo da Sé da Guarda

 

            Entrando na cidade pela Porta do Sol, logo à nossa direita, descobri uma característica tasca, daquelas que ainda é frequentada por indivíduos de cepa antiga, beirã, e onde se bebe o bom vinho caseiro da região. Era pegada à cerca da muralha, uma divisão térrea e acanhada no rés-do-chão.

            Sobre a porta, pintada a vermelho, a letras pretas, a inscrição: “Tasca do Benfica”. Na pequena janela, enfeitada com papel de renda, um cartaz informava que ali serviam jeropiga caseira a copo. Espreitei por cima do postigo da porta. O espaço era simples, sem mais mobília que uma mesa de tampo em mármore e dois bancos de madeira. Era simples, mas não parecia austero, pois sobre o tecto, ao longo de todo o cumprimento das paredes, estendiam-se várias prateleiras fundas, também pintadas a vermelho, com grande variedade de bebidas, enchidos, presuntos e queijos. Num dos cantos amontoavam-se garrafas vazias, algumas delas já partidas. Da parede branca sobre a mesa, pendia uma litografia amarelecida da formação do Benfica de há umas décadas atrás, onde reconheci ainda o Zé Henrique, o Artur Jorge e o Simões.

            Apeteceu-me a jeropiga. Ia a entrar, quando do alpendre de uma casa apalaçada, mesmo na esquina da Rua de S. Vicente, me chamaram:

            - Anda, pai, a Catarina já desapareceu!

            No encalço da Catarina, seguimos pela rua, passando por alguns bares recentes e desaguamos no Largo da Sé. Está diferente o largo. Lançaram-lhe pavimento novo em granito azul polido e desterraram a estátua de D. Sancho para um recanto invisível da praça. De resto, as casas comerciais, as fachadas, ainda são as mesmas de há vinte e seis anos, quando daqui saí.

            Atravessando a praça, subimos a escadaria da . O mesmo guarda-vento em castanho, com duas entradas laterais, uma de cada lado, faz de antecâmara. È um templo de três naves em estilo gótico, gótico tardio e alguns acrescentos em manuelino e renascença nos pórticos das capelas laterais. No altar-mor, sobre o cadeiral do cabido, lá está o bonito retábulo de João de Ruão que sobe até às lanternas da cabeceira. A base foi roubada nas invasões francesas e assenta agora em grossas pilastras de granito. Do lado do Santíssimo, o bonito altar renascentista em pedra ançã e os mesmos bancos do coro, onde tantas vezes, devidamente paramentado de batina e sobrepeliz, me sentei. O altar central é agora novo, de um granito azul polido, semelhante ao da praça, a destoar de toda a .

            O mesmo cheiro a mofo e a cera derretida, a beatas, a mesma penumbra de há vinte anos atrás. O sacristão que preparava o altar para a missa vespertina é que já não é o mesmo. No tocheiro de uma das capelas, algumas velas colaram-se e alteram a chama. O sacristão acudiu a extinguir o fogo.

            - Estúpidos dum c… - e soprava esbaforido – estúpidos dum caraças!...

             Ainda corri os bancos à procura do nome e a data, que fizera com a cruz do terço num aborrecido ofício de Páscoa em 1980. Já não os encontrei. Concluí que se o nome e data se tinham apagado, nada mais havia para ver, nem mais coisa alguma me prendia aquele lugar. Dei meia volta e saí, assim… sem mais.

            - Espera pai, A Catarina ficou para trás.

            -Vai chamá-la, senão fica cá! -respondi, visivelmente contrariado.    

            Dai a segundos reaparecem as duas na escadaria. Consulto o relógio: Uma da tarde, bem em cima da hora de visita no hospital e quase sem tempo para almoço.

            - Meninas, vamos lá a desenvolver – atiro zangado-. Porque demoraste, Catarina? Não sabes que o pai tem pressa?

            -Estive a ler a pedra de uma sepultura – ía a censurá-la pelo atraso, mas ela, esperta, atalhou – não sabes o que dizia a pedra, pai?

            -Sei lá o que dizia a pedra…-e impaciente, consultando de novo o relógio – Já agora, o que dizia a bendita pedra?

            -A pedra dizia: Aqui jaz o Padre Costa, sua mulher e filhos!

            Risada da Marta àquela tradução livre da lápide funerária – Sua tonta, como pode ser, se os padres não casam?…

            Bem dispostos demos as mãos – «mas alguns casam, filhas…», comentei, malicioso –, descemos a escadaria apressados, metemos pela Rua dos Ferreiros e fugindo à chuva miudinha, abancámos no primeiro restaurante aberto que encontrámos.

 

 

 

 



publicado por Manuel Maria às 15:01 | link do post | comentar

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