Cidade de Chaves - uma das suas casas antigas
A velha cidade, onde entrei pela estrada de Carvalhelhos. Chovia a cântaros. Já cá estivera há um ano, mas de passagem, aquando da audiência preliminar. À falta de guarda-chuva, pus a toga pela cabeça e fiz um passeio pelo jardim junto ao rio, passando por casas centenárias.
Numa rua estreita, diante de uma antiga casa senhorial, um chorão deteve-me. Baixei a cabeça para não lhe bater nas tranças. Passei também pela muralha, que se erguia imponente sobre o casario, nas suas ameias escuras, nesta chuvosa manhã de Outubro.
À excepção do largo dos correios, já arranjado, tudo estava na mesma. Em frente ao tribunal o mesmo buraco aberto com os vestígios da muralha romana. Observei as ruínas durante algum tempo e depois segui pela rua empedrada que sai da cidade pela antiga ponte, sobre o Tâmega. De ambos os lados, as mesmas casas centenárias, com varandins em madeira. Numa delas, estava pendurada uma tabuleta de madeira com letras de estilo.
Um ruído forte vinha de dentro: música, gritos, os empregados a correrem para trás e para a frente, copos a tilintarem, e na porta uma ardósia escrita a giz de cor, pratos a azul, preços a vermelho. Os preços eram acessíveis, a ementa sofrível, pelo que guardei a toga na pasta.
Ao entrar, um amplo salão, o balcão do bar à direita e uma grande mesa de correr ocupada por alegres convivas. Não valia a pena pensar em almoço sossegado, mas com aquela chuva também não me apetecia procurar outro restaurante. Sentei-me numa das extremidades, junto à porta.
No momento em que fazia o pedido, um cão que estava na rua, correu por entre as minhas pernas e entrou. Era um cão rafeiro, amarelo sujo, a pingar água, que se esgueirou por debaixo da mesa em direcção ao dono. Foi corrido a pontapés.
Enquanto comia o ensopado de cabrito, ouvi os meus vizinhos do lado trocarem impressões sobre um julgamento em que iriam prestar declarações. Um dos rostos eu já conhecera antes, quando viera com o meu cliente, anos atrás, a preparar o processo e agora, já meio alcoolizado, desfiava as estratégias da acusação ali ao meu lado.
Revi na sua cabeça redonda, de olhos vivos, rechonchuda e vermelha, bem escanhoada… com um bigode e suíças farfalhudas o António Patuleia, que era uma das testemunhas contra o meu cliente. "Tricas" de familia...
A mim não me reconheceu e foi assim que soube da acta falsificada que iriam juntar aos autos, para ganharem o processo.
Então eu considerei que já sabia o suficiente e levantei-me.
-Continuação de bom almoço, meus senhores. -E virando-me para o Patuleia - já agora, as melhoras para o seu fígado também.
-Como é que você sabe isso? – Perguntou ele, confundido.
-Vejo-o na sua cara, meu amigo, sou médico.
-E como consegue ver essas coisas, assim?
-É da experiência, meu amigo!
Todos ficaram admirados e me saudaram com grande cortesia. O Patuleia com maior vénia ainda. Também podia dizer-lhe se quisesse, a origem do apelido, o nome da mulher a casa de pedra onde morava no lugar da Sainça, a par de Vidago, e até a cor do sofá da sala onde já me sentei. Não resisti, e “descosi-me”:
-Até mais logo Patuleia, e cumprimentos à Julieta!
Virei costas com um sorriso, olhei para chuva a cair lá fora, tirei a toga da pasta colocando-a pelos ombros, e já não vi a cara ao Patuleia, mas ao sair ainda reconheci atrás de mim a sua voz embriagada num claro:
-Que “ganda” filho da puta este!
Consultei o relógio: Uma da tarde; ainda ía bem a tempo de arranjar prova para impugnar a bendita acta.