Estava uma bonita tarde de Outono. As terras, as folhas, cheiravam a Inverno; os dias escureciam cada vez mais cedo. Um bando de estorninhos em formação triangular sobrevoava ruidosamente a Cabeça-Lagar. Na colina em frente, do lado de lá do rio, subia o Nuno o caminho dos Picotes. As vacas iam à frente devagar. À minha esquerda, a crista da barreira de Aldeia da Ribeira, coberta de pinheiros e as vinhas pintalgadas de amarelo e vermelho, que desciam até ao vale.
O meu caminho seguia para baixo, rodeado de carvalhos, pastagens, vinhas durante algum tempo e depois de uma pequena curva, a escola, o cruzeiro e as primeiras casas. Enquanto caminhava, sorvia daquele ar translúcido da orvalhada a cair, enchia os olhos da beleza dos primeiros campos lavrados, da agulha do campanário a ferir o azul do céu, dos telhados nostálgicos a descerem a encosta.
Enquanto descia, ocorreu-me, que ultimamente percorri assim sozinho todos os meus caminhos, todos os últimos passos da minha vida. Amigos, conhecidos, parentes mais queridos, já quase todos partiram. Agora vou sozinho. Detive-me ao Buraco, contei por alto as casas já vazias. Tantas… tantas! Vieram-me então à lembrança as palavras do livro de Ben-Sirá: “o homem é uma sombra que depressa passa”.
À casa do Zé Augusto, um galo esvoaçou com um grande bater de asas das grades do muro e aterrou aos meus pés. Assustou-se com o ginete branco, que o criado do Toninho Pedro trazia pela rédea.
Pensei: talvez cada um de nós seja mesmo um galo que esvoaça assustado em todas as direcções. De que adiantará fugir? No fim, sempre o “ginete branco” e a sua lâmina fiada, o fatídico destino da panela. Acendi o cachimbo. Cada passada no caminho ocupava-me o pensamento e com espanto, me vi à porta do António Adrião.
Mas desta vez não assomou ao muro uma cara sorridente, sorriso franco, com a jarra de vinho e um copo nas mãos generosas. Mais uma porta de adega que se fechou…
Então uma quantidade imensa de recordações encheu-me a cabeça, fazendo-me percorrer numa fração de segundo toda a minha juventude, estas coisas irrecuperavelmente perdidas que olhavam para mim de forma familiar e tão dolorosa.
Depois soltando uma fumarola azul de cachimbo, recompus-me e entrei devagar pela Rua de Cima, passei as casas vazias da prima Mariana, do ti Silva, da ti Ester, do primo Aurélio, do ti Cunha, tropecei à porta do ti Aguardente, e deslizando junto à parede do ti Chico, cheguei ao espaço aberto do Senhor dos Aflitos, à casa dos meus avós.
Fiquei parado, hesitante, a olhar para aquela casa de pedra com as persianas fechadas, cansado e desconfortável. O Zé Hermenegildo passou com a junta das vacas, abecas do arado prezas no jugo, vara pelo chão. Quando me viu ali parado, parou também:
- É uma dor de alma, não é João? Todas as casas se vão fechando assim uma a uma…
Apoderou-se então de mim uma enorme sensação de vazio e de perda. Reflecti: de facto, quando as pessoas morrem, com elas as casas também morrem. Pois a adega do António Adrião, não morreu com ele também?
Está bem de ver, que foi uma perfeita loucura esta minha viagem a Vilar Maior. Mas trouxe-me uma decisão inabalável: a de, porque já não tenho mais ânimo para escrever, matar de vez este blogue.
A minha dúvida está só: em ministrar o veneno numa única dose letal como um carrasco, ou aos poucos, sub-repticiamente, como um doce anjo da morte? Uma coisa afianço, queridos leitores: ele há-de morrer da mesma ausência de alma com que morrem as casas da minha aldeia.