Na Odisseia de Homero, o Canto XII, narra o confronto de Ulisses com as sereias.
Regressando do Hades (inferno), Ulisses volta à ilha da feiticeira Circe, que o adverte sobre os perigos que o herói e os seus marinheiros ainda terão que enfrentar antes de regressar à Ítaca natal:
«As Sereias serão tua primeira prova. Elas encantam todos aqueles que porventura passem por elas. Quem inadvertidamente se entregar ao canto delas nunca mais retornará ao lar, nunca mais cairá nos braços da mulher, não verá os filhos nunca mais. Elas enfeitiçam os que passam… […] Tapa com cera os ouvidos dos teus companheiros para não caírem na armadilha sonora. Se, entretanto, quiseres o mel do concerto delas, ordena que te amarrem de pés e mãos erecto no mastro. Que o nó seja duplo. Entrega-te, então, ao prazer de ouvi-las. Se, por acaso, pedires que te afrouxem as cordas, ordena-lhes que as apertem ainda mais.»
O trecho mostra que, já na poesia homérica, encontramos registada a força da música como fonte de prazer, mas o prazer, como engano, ilusão da realidade. Esta espécie de “Música” é perigosa; e quem inadvertidamente se entrega a ela, arruína-se.
À “Música” das Sereias, contrapunha-se na Odisseia a dos Aedos, espécie de trovadores da antiguidade, que sendo inspirados pelos deuses, são a sua voz poética, e transmitiam através do canto a memória e a glória das façanhas dos heróis.
Há duas espécies de “Música”, portanto: A das Sereias, uma “Música” artificial, enganosa, que leva á perdição; e a do Aedo, instrumental, de função cívica, formadora da consciência colectiva do povo.
Mas é difícil distinguir entre as duas, porque a “Música das Sereias” passa-se muitas vezes pela outra, ao fazer os incautos acreditarem que também é inspirada na sabedoria dos deuses:
«Vem aqui! Vem a nós! Ó Ulisses, glorioso! Honra dos Aqueus! Pára teu navio e vem escutar as nossas vozes! Jamais um navio passou por aqui sem que tenha sido escutada a doce voz que sai de nossas bocas, e cada um regressou tendo delas desfrutado e se tornado mais rico em saber, pois nós sabemos os males, todos os males que os deuses, nos campos de Tróia, infligiram aos homens de Argos e de Tróia, e nós sabemos também tudo o que se passa sobre a terra fecunda.»
No entanto, Ulisses, avisado por Circe, soube que a recompensa, ao contrario do que lhe dizem as “Sereias”, é a perdição.
O herói, acatando o conselho da feiticeira, pede aos companheiros que tapem os ouvidos com cera e o amarrem ao mastro. A tripulação zarpa e, não dando ouvidos ao herói, que no momento em que ouve o canto das sereias, pede que o desamarrem, deste modo chegam à Ítaca.
Para além da sua beleza literária, esta passagem é uma alegoria com vários sentidos possíveis. De todos, gosto daquele que vê em Ulisses amarrado ao mastro a imagem da auto-repressão do indivíduo indiferenciado, que se transfigura num sujeito identitário; do homem comum, em herói interprete de um destino colectivo; do homem que tem de reprimir as suas pulsões naturais, para se tornar chefe; do chefe que se domina a si próprio para ser digno de mandar.
E os que obedecem, como os remadores, confiando no chefe, pela sua capacidade de auto-domínio, tapam os ouvidos, e cumprem as suas tarefas de marinheiros, levando o trirreme até Ítaca.
A nossa tragédia é também mais Grega, do que se imagina!
Cavaco ouve embevecido o canto do aprofundamento da “Europa Unida”, “Música” que nos tem levado à perdição; e para maior desgraça, não consegue superar as pulsões mediocres da sua perssonalidade, para se transfigurar num chefe respeitado, que todos sigam.
Mas numa coisa, contudo, é diferente a nossa tragédia à Grega:
O Ulisses homérico, teve feiticeira a Círce para o avisar do engano; O nosso Ulisses, para mal dos nossos pecados, tem a beata Maria, que só reza ladaínhas e jaculatórias!