Quando R. arrumou os papéis, fechou o portátil, e se levantou da secretária para espreitar à janela, nevava. Dali não se via vivalma; aquela neve tardia de Abril estendia-se a seus pés, cobrindo todo o largo e o casario, como uma capa. Permaneceu assim, longo tempo, apoiado sobre o parapeito, elevando o seu olhar para o vazio aparente e vendo a sua respiração embaciar o vidro.
Decidiu voltar à secretária; pela porta entreaberta via os funcionários na sala contígua, ocupados a ultimarem o expediente do dia; algumas pessoas, no corredor, ainda esperavam por audiência.
Assim, ele mesmo foi à porta e mandou-os entrar.
Um velho, vestido humildemente, olhos baixos, chapéu na mão, levantou-se. Os outros, no banco corrido, viraram-se para escutarem melhor:
O velho desculpou-se amavelmente por vir incomodar àquela hora tardia, apresentou-se como dono do estabelecimento no cantinho do largo, em frente da fontinha redonda, e depois disse:
—O largo fica bonito, sim senhor… calçada nova, pedras novas… jardim novo… agora vinha era saber onde fica a minha passagem.
R. alisou o cabelo e olhou o homem de alto abaixo:
— Mas qual passagem?
—Ora —disse o velho, fitando R. nos olhos—, a do meu estabelecimento, que, evidentemente, fica tapada com as suas obras!
—Mas deixaremos um carreirinho a pé, pelo jardim… — defendeu-se R., ainda surpreendido.
—Quero que se cosa o carreirinho! —foi a resposta, e R. percebeu que tinha ali um problema bem sério, quando o velho se voltou para o banco, abrindo os braços para a assistência:
—Vou ter de passar com a mercadoria pelo ar; querem lá ver?
R. nem queria acreditar no que estava a acontecer.
—Ó P. traz-me cá o projecto do largo! – Gritou R. para a sala de expediente — temos um projecto; não temos?
Instantes depois, da outra porta entreaberta surgiu um assessor com um molho de papéis, que deixou na mesa de reuniões. R. mandou o velho acercar-se, e desenrolando um dos papéis sobre a mesa, exclamou triunfante:
—Está a ver homem… — e apontou-lhe na planta—— até vai ficar com um passeio, uma fonte e um jardim com medronheiros… e tudo sem gastar um tostão!
O homem baixou os olhos sobre a planta, onde viu projectado um jardim; no jardim um acesso para uma porta do seu estabelecimento, ficando a porta da casa sem qualquer acesso; e não se conteve:
—Que se cosa o passeio, o jardim, a fonte e os medronhos! — e virando costas a R.— badamerda as obras! —e alcançando a porta, desaparecendo no corredor— vem tudo abaixo a camartelo!
R. enrolou a planta, e engoliu em seco…