Primeiro episódio:
Quem compra desfaz no animal.
Quem vende, põe-no nos cornos da lua.
A vaca é mirada, espreitada, apalpada da cabeça ao rabo.
E, por fim, passeada para se ver como pisa e anda.
Se é leiteira, sopesam-lhe os úberes ajoujados, passam-lhe a mão por entre as pernas, não vá ela ter cócegas ou escoicear.
E dão-lhe palmadinhas nos lombos, a ver se é mansa.
Logo o vendedor acorre a desfazer receios:
-Não se atarante, esta vaca pode ordenhá-la uma criança
Depois, passa a gabar as qualidades que não se veem - as encobertas
Mas o comprador, orelhas moucas à catrefa de qualidades apontadas, vai observando e debicando nos defeitos:
-Não é praininha das costas, é pesadona, é esquadrilhada, os sinais são maus...
Quando a querem para açougue, onde certos defeitos não contam, dizem que a querem para trabalho.
E, então carregam-lhe no que se lhes afigura defeito:
-Casco de palma raso, mal encabeçada de cornos, alta de cernelha ...
As negociações estendem-se, delongam-se, prolongam-se
-O animal é bom, diz-lho quem sabe - afirma, enérgico, o vendedor.
O comprador rosna.
-Nem todos dirão que serve!
Escamado, gestos esbandalhados, o outro retruca, olhos perros e voz troante:
-Quem disser que não serve, vai preso
O comprador abana a cabeça como ressabiado.
-Não vou com essa, não como lérias.
E o dono da vaca, terminante
Já lhe disse - a vaca não tem defeitos
O mercador retruca desconfiado
-Em casa é que se vai ver se os tem ou não, na feira tudo são cantigas.
Ferido, pelo dito supeitoso, o homem da vaca cresce para o outro, exalta-se, faz roda, descobre-se e de chapéu na mão, olhos candidos de apóstolo alçados aos céus, conclama em tom religioso
-Deus Nosso Senhor me dê a mim, á minha mulher e aos meus filhos, os defeitos que esta vaca tiver.
Segundo episódio:
Finalmente, após varios diálogos a fazer e a desfazer no animal, assentam em que a vaca serve, mas não se chegam ao preço.
Marralham para trás. Marralham para a frente. Nada. E, de novo, a coisa empanca.
Mas alguém que, encostado ao varapau, coca a cena, aproxima-se, mete bedelho.
É o Misseiro, diplomata de tamancos, chapéu para a nuca e véstia ao ombro.
Mediador interesseiro que leva sempre rasca na assadura, quer seja pelo vendedor, quer seja pelo comprado, quando não por ambos.
Chega-se á fala.
Então em contratos?
Conversamos, responde com pastoral simplicidade bíblica o vendedor, como se não conhecesse aquele tipório
Então o misseiro vira-se para comprador
-Quanto é que ele pede?
-Doze notas
-Pois não pede por largo, não senhor.
O comprador trava.
-Há que vir para baixo .
-Quanto lhe oferece?
-Sete notas.
-Já não falta tudo, dê-lhe dez.
-Dou-lhe oito.
O vendedor, desprendido
-Dê-me o ganho e vou á vida, são onze notas.
-O quê—arrede o cavalo da chuva
E, outra vez, o negócio emperra.
Intervém, então, um segundo misseiro.
-Um a gemer, outro a gemer, não se faz nada, arrume-se com isto. Rache-se a diferença ao meio.
-Pronto, diz o comprador—fica em nove.
-Aqui está o sinal .
E mete uma nota à força, entre a camisa aberta e o peito do vendedor, que reponta ainda, mas que os misseiros contêm.
-É bom negócio, arrume e vá rabear para a feira.
Leal Freire (in vilarmaior1)