Antes, há mais de quarenta anos, Coimbra era a cidade dos Estudantes, Doutores, Engenheiros e Médicos. Era a cidade dos amores de estudante. Hoje conserva o galhardete de Ciências Medicinais e pouco mais.

 A verdade é como o sol. Faz ver tudo e não se deixa olhar (Victor Hugo). Veio a reforma do ensino superior, a criação de muitas universidades, com inúmeros e inúteis cursos, que proliferaram como ninhos de andorinha em edifícios públicos. Assim, foi criado um polo universitário no coração do Bairro Alto – cantado por muitos fadistas -, o Papa-Açorda.

Ali muitos alunos privilegiados e reitores se reuniam em encontros filo-gastronómicos, apurando o paladar e dissertando variadíssimas teses. O requisito sine qua non para participar no banquete era a manifesta pouca profundidade das matérias, pois filosofar de grande à mesa pode provocar azias indesejáveis. Os meninos queriam-se especialistas em assuntos gerais e o melhor aluno em retórica de generalidades recebia, cuspido pelo Magnífico Reitor, o caroço de uma azeitona. O ritual, dizem os antropólogos, significava a passagem de conhecimento do mestre para o aprendiz. O pupilo engolia o caroço da eminência parda, e, ao fim de pouco tempo, tornava-se uma barra em matemática, ciência política, economia, desporto, artes e tartes.

O Papa-Açorda era igualmente um sítio very nice para qualquer turista londrino se empanturrar enquanto durasse um Chelsea- Arsenal. O corpo docente, adepto de métodos modernos de ensino, viu no Papa-Açorda o triatlo perfeito do aluno exemplar: comer bem, beber ainda melhor e aprender inglês técnico com adeptos fervorosos.

Um dia, o aluno Pinóquio encontrou-se com o Magnífico Reitor do Instituto do Prior Técnico e queixou-se de dificuldades na língua inglesa. O Reitor deu 3 palmadas na barriga e o exame de inglês técnico foi imediatamente reservado para uma sala do Papa-Açorda. Era um cantinho resguardado, onde ninguém ouviria os arrotos de qualquer um dos intervenientes.

Ora bem, o mestre e o aprendiz marcaram encontro para Domingo no Príncipe Real. Deram umas voltas nocturnas, exercitando a língua inglesa, até o apetite e a hora do exame coincidirem. Encaminharam-se para o Papa-Açorda. Foi-lhes apresentada a lista de refeições, em que cada prato custava a módica quantia de cinquenta euros por cabeça. “50 vezes dois é igual a 100, elementar meu caro watson”, dichotou o Pinóquio para conquistar o bom humor do Magnífico Reitor. “2 cabeças pensam melhor que uma”, parodiou o Magnífico.

Além dos habituais ingleses bêbedos e franceses chiques da “Filosofia da Não-Profundidade” (uma disciplina muito difícil de contornar na Sorbonne e daí virem em erasmus a Portugal), mostravam-se na passadeira social do Papa-Açorda políticos de gosto refinado e muitas excelências de apetite voraz. Proxenetas aperaltados, homens de negócios e banqueiros falidos não gostavam de ficar à porta e não descansaram enquanto não montaram esquemas de crédito- “todos ganhavam”. A “piolheira”, na expressão do Rei D. Carlos recuperada por um médio empresário,  “tem a tasca da esquina para enganar o estômago”.

No topo do menu do Papa-Açorda, apareciam joaquinzinhos fritos. Pinóquio e o Magnífico Reitor coligaram-se logo na rejeição de uma comida tão prosaica. “Além disso, vêm de Espanha e desconhecemos os circunstancialismos meta-higiénicos na travessia fronteiriça para o Estado-Nação Português”- disse o Pinóquio a um Reitor estupefacto com a verve do orador. “Menino Pinóquio, se não chegar a Primeiro-Ministro, terá lugar de destaque como comentador político”, profetizou o Magnífico.

Seguiu-se Açorda Real de lagosta e gambas. “O pão é produção endógena, mas os restantes ingredientes são exógenos. A luminescência do crustáceo não engana. Temos que salvaguardar a produção nacional para que as divisas não saiam do Banco do Estado”- esclareceu Pinóquio. “O menino será um grande patriota e em economia ninguém o levará preso”- ufanou-se o Magnífico pelo discípulo que criara.

Veio a indicação de robalos com molhos alentejanos, e aí foi a vez do Magnífico se enfadar (enfardar é que não havia meio): “Estes robalos são de aviário, estou farto de comida de aviário, já me chegam as minhas atribuições profissionais”. Pinóquio riu-se cinicamente.

Não podia faltar o malvado cabrito assado, alimentado a farinhas de origem duvidosa, talvez resultantes do esmagamento de ossos. Como o bacalhau, é incluído em todos os menus de qualquer casa de pasto, de norte a sul do país. “Temos que apostar em recursos alimentares de qualidade diferenciadora, se queremos ser competitivos”- disse Pinóquio. “Concordo…absolutamente”, anuiu o Magnífico.

Na listagem apareceu o arroz de lampreia. “Tanta hemoglobina saturada hiper-sensibiliza-me. Apesar de não me inscrever nas ideias religiosas dos discípulos de Jeová, o sangue dá-me asco”- disse Pinóquio. “Os maçónicos não comem arroz de lampreia”- sentenciou o Magnífico.  “Que tal um prato vegetariano, Pinóquio?”, perguntou o docente. “Quando for eleito Presidente da República pela soberania popular e o médico me interditar o consumo de carne, só comerei hortaliça nacional. Agora, excelentíssimo Reitor, o meu estômago está em abstinência há muitas horas e de manhã tive uma maratona no parque Eduardo Sétimo”, respondeu prolixamente o Pinóquio.

Restava o último prato – Alcatra da Terceira- e já não havia mais alternativas. O Magnífico lamentou a posta à mirandesa não estar discriminada positivamente no menu e o aluno Pinóquio contentou-se por não contemplar na gastronomia local a espetada madeirense. Quanto ao cherne, especialidade da casa em tempos, fora exportado enlatado para Bruxelas.

Escolhida a Alcatra da Terceira, esta foi logo regada com os melhores vinhos e abençoada com arrotos de bom uísque escocês (sugestão de 2 ingleses bêbedos que acenavam 2 notas de 100 euros na direcção da janela). O Magnífico Reitor do Instituto do Prior Técnico, de barriga cheia a abarrotar, teve necessidade de desapertar o cinto e exclamou de satisfação: “o Pinóquio merece uma nota de 20 valores! Responda-me só, em inglês técnico, como lhe soube a Alcatra da Terceira?” O Pinóquio ficou apreensivo, não sabia o que dizer. Mas debaixo da mesa escondia-se um miúdo pobre para comer os restos e algumas migalhas. O miúdo olhou satisfeito para o Pinóquio e disse: “Very Good”. O Pinóquio só teve que repetir ao Magnífico o que ouvira debaixo da mesa.

Pinóquio não cabia em si de tão grande contentamento e, de nariz vermelho, fruto dos néctares nacionais e algum excesso de pimenta no prato, exclamou: “Magnífico, com quinze já fico very good”. “Combinado, Pinóquio, as cábulas debaixo da mesa tiraram-te 5 valores. Tens 15 e um caroço de azeitona”, cuspiu o Magnífico. E riram-se como 2 deputados da mesma bancada.

Lá fora passou uma flor das vielas, o nariz do aluno Pinóquio inchou e o reitor disse-lhe, piscando o olho: “Talvez seja melhor passares pela prova oral, vais passar com distinção.”

António Alves Fernandes in "Cinco Quinas"