A muitas milhas do mar, num território do interior, encontra-se um misterioso vale entre as montanhas, separado do resto dos homens; a Terra dos Cegos.
Há muitos anos esse vale estava tão aberto ao mundo, que era fácil alcançar as suas diversificadas pradarias, atravessando medonhos barrancos, montes e florestas.
Aconteceu então que um grande cataclismo arruinou o país, a noite durou sete dias na capital, a água ferveu no rio, e os peixes mortos flutuaram até ao mar; por toda a parte houve deslizamentos de terra, rápida seca que tornou os campos improdutivos; e todo aquele território se afundou, desprendendo-se com um ruído de trovões de toda a terra envolvente, separando para sempre a Terra dos Cegos dos caminhos explorados pelos homens.
Desde então, todos os que ficaram naquela depressão inacessível e expugnável viram-se por força obrigados a esquecer amigos e familiares que tinham deixado lá em cima, tendo que iniciar uma nova vida no mundo mais abaixo.
Alta, bem alta, por todos os lados, erguia-se uma parede de rocha verde-acinzentada que não deixava que ninguém entrasse ou saísse.
Contudo, o vale continuou a ter água doce, pastos, clima ameno, encostas de rico solo fértil, florestas de pinheiros e carvalhos, mananciais abundantes proporcionando ricas pastagens verdes, que a irrigação alargava a toda a extensão do vale. Os animais criaram-se bem e multiplicaram-se, proporcionando alimento abundante; mas um estranho mal se abateu sobre aquela felicidade: no meio da pequena população daquele vale agora isolado e esquecido, uma doença nasceu e progrediu. Os velhos tornaram-se trôpegos e vacilantes, os jovens foram perdendo a visão, e as crianças que deles nasceram, nunca chegaram a ver. A diminuição da visão foi tão gradual, que só se deram conta do que se passava, depois de perdida. No início guiavam as crianças cegas por aqui e por ali, até que todos passaram a conhecer maravilhosamente bem todo o vale; quando, por fim, a visão morreu entre eles, a raça sobreviveu, porque já se tinham adaptado à sua nova condição e meio.
E tal como a vida daquela gente se adaptou, também o sistema de se governarem se alterou:
Eles não só eram todos cegos, como todos iguais, e os seus pequenos problemas eram resolvidos pela pluralidade das vozes. Distinguiam perfeitamente pelo toque a nova moeda que tiveram de cunhar; o se paladar e olfato eram mais apurados do que quando tinham dois olhos.
Argumentavam perfeitamente sobre os quatro sentidos, o mesmo é dizer que eles conheciam tudo o que é permitido saber. E viviam tão tranquila e afortunadamente quanto seria de esperar.
Infelizmente, um deles, o único que, por aqueles acasos raros que a ciência não explica, ficara com um olho são, invocando a autoridade, que um o seu olho lhe conferia em terra de cegos, afirmou ser o único com noções claras sobre o sentido da vista; fez-se escutar, intrigou, formou entusiastas: foi, por fim, reconhecido como o líder da comunidade. Pôs-se a deliberar soberanamente sobre as cores, e tudo se perdeu.
O primeiro ditador formou a princípio um pequeno conselho, através do qual se fez senhor de todas as esmolas. Pelo que ninguém ousava resistir-lhe. Decidiu que todos os hábitos eram brancos: os cegos acreditaram nele; não falavam senão dos seus belos hábitos brancos, ainda que nem um só tivesse essa cor.
Passou algum tempo, até que, por capricho da genética, nasceu entre eles uma criança com dois olhos sãos. A criança cresceu, e troçou dos seus hábitos brancos, que eram de todas as cores, menos brancos.
Foram queixar-se ao ditador, que os recebeu muito mal, chamando-lhes rebeldes, inovadores, livres-pensadores, que se deixavam seduzir pelas opiniões erróneas daquele que tinha dois olhos, ousando duvidar da infalibilidade do seu mestre.
Esta disputa deu origem a dois partidos. O ditador, para os apaziguar, decretou um acórdão segundo o qual todos os seus hábitos eram vermelhos. Não havia um único hábito vermelho entre eles. Foram alvo de troça ainda maior: novas queixas da parte da comunidade.
O ditador enfureceu-se; os outros cegos também: debateram-se longamente, e a concórdia só foi restabelecida quando deliberaram cegar também o único que de entre eles ainda tinha dois olhos sãos.
A partir daí, nunca mais se contestou o juízo sobre a cor dos seus hábitos.
E continuaram todos muito felizes para sempre.
Cegos, e felizes!
Primeiro episódio:
Quem compra desfaz no animal.
Quem vende, põe-no nos cornos da lua.
A vaca é mirada, espreitada, apalpada da cabeça ao rabo.
E, por fim, passeada para se ver como pisa e anda.
Se é leiteira, sopesam-lhe os úberes ajoujados, passam-lhe a mão por entre as pernas, não vá ela ter cócegas ou escoicear.
E dão-lhe palmadinhas nos lombos, a ver se é mansa.
Logo o vendedor acorre a desfazer receios:
-Não se atarante, esta vaca pode ordenhá-la uma criança
Depois, passa a gabar as qualidades que não se veem - as encobertas
Mas o comprador, orelhas moucas à catrefa de qualidades apontadas, vai observando e debicando nos defeitos:
-Não é praininha das costas, é pesadona, é esquadrilhada, os sinais são maus...
Quando a querem para açougue, onde certos defeitos não contam, dizem que a querem para trabalho.
E, então carregam-lhe no que se lhes afigura defeito:
-Casco de palma raso, mal encabeçada de cornos, alta de cernelha ...
As negociações estendem-se, delongam-se, prolongam-se
-O animal é bom, diz-lho quem sabe - afirma, enérgico, o vendedor.
O comprador rosna.
-Nem todos dirão que serve!
Escamado, gestos esbandalhados, o outro retruca, olhos perros e voz troante:
-Quem disser que não serve, vai preso
O comprador abana a cabeça como ressabiado.
-Não vou com essa, não como lérias.
E o dono da vaca, terminante
Já lhe disse - a vaca não tem defeitos
O mercador retruca desconfiado
-Em casa é que se vai ver se os tem ou não, na feira tudo são cantigas.
Ferido, pelo dito supeitoso, o homem da vaca cresce para o outro, exalta-se, faz roda, descobre-se e de chapéu na mão, olhos candidos de apóstolo alçados aos céus, conclama em tom religioso
-Deus Nosso Senhor me dê a mim, á minha mulher e aos meus filhos, os defeitos que esta vaca tiver.
Segundo episódio:
Finalmente, após varios diálogos a fazer e a desfazer no animal, assentam em que a vaca serve, mas não se chegam ao preço.
Marralham para trás. Marralham para a frente. Nada. E, de novo, a coisa empanca.
Mas alguém que, encostado ao varapau, coca a cena, aproxima-se, mete bedelho.
É o Misseiro, diplomata de tamancos, chapéu para a nuca e véstia ao ombro.
Mediador interesseiro que leva sempre rasca na assadura, quer seja pelo vendedor, quer seja pelo comprado, quando não por ambos.
Chega-se á fala.
Então em contratos?
Conversamos, responde com pastoral simplicidade bíblica o vendedor, como se não conhecesse aquele tipório
Então o misseiro vira-se para comprador
-Quanto é que ele pede?
-Doze notas
-Pois não pede por largo, não senhor.
O comprador trava.
-Há que vir para baixo .
-Quanto lhe oferece?
-Sete notas.
-Já não falta tudo, dê-lhe dez.
-Dou-lhe oito.
O vendedor, desprendido
-Dê-me o ganho e vou á vida, são onze notas.
-O quê—arrede o cavalo da chuva
E, outra vez, o negócio emperra.
Intervém, então, um segundo misseiro.
-Um a gemer, outro a gemer, não se faz nada, arrume-se com isto. Rache-se a diferença ao meio.
-Pronto, diz o comprador—fica em nove.
-Aqui está o sinal .
E mete uma nota à força, entre a camisa aberta e o peito do vendedor, que reponta ainda, mas que os misseiros contêm.
-É bom negócio, arrume e vá rabear para a feira.
Leal Freire (in vilarmaior1)