Quando saiu o meu artigo sobre o ethos do povo raiano, o José Nunes Martins, de Malcata, observou que o referido ali, a respeito do povo raiano, se aplicava também ao povo português.
Tratou-se de uma observação inteligente, que me fez pensar. De facto, em resultado de uma feliz conjugação da herança étnica e paisagem própria de Riba-Côa, que são as mesmas que se verificam no todo do território nacional, as mesmas características da alma portuguesa manifestam-se a do povo raiano, como talvez em nenhum outro. São precisamente essas circunstâncias étnicas e de paisagem, que estão na origem na religiosidade cristã e pagã do povo raiano, afloradas na parte final do artigo sobre o Aspecto Sagrado das Capeias.
Daí que, o que se afirma do povo da raia pode extrapolar-se para o português e para se analisar a alma portuguesa pode-se tomar como exemplo a particularidade da alma ribacudana.
Existe um livrinho, de 120 páginas, com o título Arte de Ser Português, editado em 1920, escrito por Pascoais para leitura no ensino público, a fim de incutir na juventude o sentido patriótico, que aborda esta questão da alma do povo português.
Trata-se de um livro muito importante porque resume a doutrina do “existencialismo lusitano”, e ao qual nos cingimos, para transpor para a alma ribacudana tudo o que no mesmo Pascoais refere a propósito da alma portuguesa.
O pensamento subjacente a esta obra, que Pascoais já exprimira em vários artigos da Águia, e desenvolve na Saudade e o Saudosismo (em forma de polémica epistolar com António Sérgio), é a de que ser português é uma arte e como tal, digna de cultura.
Por isso caberia aos professores, trabalhando como se escultores fossem, modelar as almas dos jovens para lhes imprimir os traços da raça lusíada. Traços estes que lhe dão personalidade própria, «a qual se projecta em lembrança do passado, e em esperança e desejo do futuro».
Isto é, o fim desta arte seria «a renascença de Portugal, tentada pela reintegração dos portugueses no carácter que por tradição e herança lhes pertence, para que eles ganhem uma nova actividade moral e social, subordinada a um objectivo comum e superior».
As descobertas teriam sido o início desta obra, e desde então a pátria tem dormido. Despertando, saberia continuá-la.
A Raça, em Pascoais, não tem o sentido pejorativo, conotado com o Estado Novo, sendo apenas um «certo número de qualidades electivas, próprias de um povo, organizado em pátria, isto é, independente sob o ponto de vista político e moral».
Estas qualidades são, ainda segundo ele, de natureza animal e espiritual e resultam do meio físico (paisagem) e da herança étnica (tradição), histórica, jurídica, literária, artística, religiosa e económica.
Na Raça portuguesa a sua herança étnica está nos povos que primitivamente habitaram a península e dos quais descendem os portugueses, castelhanos, vascos, andaluzes, catalães, galegos, etc.
Esses povos pertenciam a dois ramos. O ariano (galegos, romanos, godos, celtas, tec.) e o semita (fenícios, judeus e árabes).
Dos primeiros veio a civilização greco-romana, o culto pela forma, a beleza como representação da realidade próxima e tangível (naturalismo), o paganismo e o panteísmo; dos segundos veio a civilização judaico-cristã, bíblica, o culto de espírito, a unidade divina, a beleza concebida para além da matéria.
Ao primeiro corresponde a verdadeira alegria terrestre, a infância, a superfície angélica da vida, o naturalismo, o amor carnal que continua a vida; ao segundo a dor salvadora que nos eleva ao céu, o sonho da redenção, o espiritualismo judaico, o amor ideal que purifica e diviniza.
Do ponto de vista étnico, o indivíduo, porque não cabe dentro dos seus limites individuais, porque é um ser social, herda as qualidades da família e da sua raça. Assim sendo, o português participa também desta herança étnica e histórica, «adquirindo uma segunda vida que mais vasta, domina a sua existência como indivíduo».
Por sua vez, exceptuando a planície monótona do Alentejo, de cariz mourisco, resume Pascoais a paisagem portuguesa aos planaltos desnudos de Trás-os-Montes, de hostil aridez judaica, e ao Minho viridente, alegre e colorido, de vales e pradarias, de matriz celta e ariana, que estão de acordo pela sua apetência dolorosa com o genuíno semita, e pela sua apetência alegre com o genuíno ariano.
A alma lusíada tem a sua origem na fusão dos antigos povos da península e na paisagem. Nas belas palavras de Pascoais «esta bela flor espiritual brotou de uma haste mergulha as raízes na terra e no sangue, entre os quais se estabeleceram verdadeiros laços de parentesco».
Ou seja, a paisagem é fonte psíquica da raça, porque ainda segundo Pascoais «tem uma alma que actua com amor ou dor sobre as nossas ideias ou sentimentos; transmitindo-lhes, o quer que é da sua essência, da sua vaga e remota qualidade que, neles, conquista acção moral e consciente».
Foram destes dois sangues, que equivalendo-se em energia «deram à Raça lusitana as suas próprias qualidades superiores», e trabalhadas e combinadas desta forma feliz pela paisagem, resultaram na criação da alma portuguesa.
Foi da combinação entre a herança e a paisagem que esta alma, absorveu por essa razão na sua feição religiosa a ideia pagã e a cristã, dualismo este de que resultaria o saudosismo.
É precisamente na paisagem original da região do Tâmega, segundo Pascoais a que conjuga a paisagem dolorosa de Trás-os-Montes e a paisagem alegre do Minho, onde a voz do sangue (herança) e da terra (paisagem), estabelece o diálogo que caracteriza o carácter desta complexa fisionomia dualista portuguesa, alegre e ao mesmo tempo dolorosa; materialista e ao mesmo tempo espiritual.
Ora, é aqui divergimos de Pascoais: Podendo concordar que na região do Tâmega se reúnam os dois elementos da paisagem; falta-lhe sempre o elemento semita da origem étnica, que só existe abaixo do Douro.
Sucede também que, mais que na região do Tâmega, é na região de Cima-Côa que se reúnem de forma clara o elemento paisagístico e étnico na sua plenitude.
Em nenhuma parte do território português se concentram tanto a paisagem de contrastes, a aparência alegre dos verdes campos minhotos, com a mágoa e a dor silenciosa dos ermos transmontanos, como na paisagem mediata e extática dos lameiros, veigas, hortas, cabeços, tapadas e planalto de Cima-Côa.
Em nenhuma parte as brancas nuvens do céu, aonde sob o beijo da chuva amorosa vão beber os ramos sequiosos dos carvalhos e dos freixos; a linfa que, nascendo nos corações dos montes, atravessa os vales estreitos, envolvendo as pedras musgosas, viridificando regatos e prados.
Em nenhuma parte o sol irrompendo ébrio de fortaleza acima dos carvalhais, energia vital que todo o mundo inunda, sangue revigorante da videira, essência de cor que a verdura floresce e a terra alegra num íntimo acordar.
Em nenhuma parte a brancura da lua, entre o arvoredo, projectando no silêncio da noite inquietas formas de luz e de sombras, almas sem corpo, espíritos mortos, onde os olhos bebem a luz das estrelas, e os ouvidos escutam o sinistro lamento da paisagem.
Em nenhuma parte o imenso clarão que a todo o ser deslumbra e incendeia de loucura e alucinação; a branda luz como o roçar de asas de uma ave, convidando ao sonho e à viagem.
Em nenhum outro lugar, como em Cima-Côa, existe tão bem resumido este sentido alegre e plástico do mundo, inspirando uma religião sui generis, tão pagã como cristã.
(continua)
Perguntaram-me um dia destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidência
é serem meus (digamos assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas que acontece
a todos os da sua espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema nobre),
mas um tema não chega para um poema
nem sequer para um poema sobre;
porque é o poema o tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam de mais à poesia,
ou de menos, o que vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa do tempo certo
de onde possa, como o gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos abstractos,
literários, gatos-palavras,
desprezível comércio de que não me orgulharia
(embora a eles tanto lhes desse).
Por fim, não existem «os meus gatos»,
existem uns tantos gatos-gatos,
um gato, outro gato, outro gato,
que por um expediente singular
(que, aliás, também absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e adjectivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos em minha casa
e outros na minha cabeça.
Ora só os da cabeça alcançaria
(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso por uma prosa,
e mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa.
Manuel António Pina