Este poema, com título de Adoração, que se segue, do livro Cantares de Leonardo Coimbra, foi comparado, por Àlvaro Ribeiro, pela sua beleza, ao Cântico dos Cânticos de Salomão, e de facto, é-o:
Deixa tombar os teus cabelos, amor do meu desvairo!
Revoltos, negros, torcidos como serpentes, trouxe-os Dante da sua viagem ao Inferno.
Solta os teus cabelos, oh meu Amor violento! que eles são a floresta negra dos incêndios, saques e pilhagens.
Cavalos loucos de violência e medo, salteadores com os despojos de cidades mouras: oh minha encantada moira, acorda, solta os teus cabelos de Noite e com eles açoita barbaramente o meu negro corpo de bárbaro!
Vamos incendiar o mundo, oh meu amor moreno!
Quero que o planeta sinta derreterem-se-lhe os ossos ao fogo violento dessa paixão.
Lembras-te, minha Eva de ébano, meu brilhante preto, da primeira noite em que nos encontrámos na terra, tombados, expulsos daquele longínquo céu?
Foram os teus cabelos que nos vestiram e taparam, aos nossos olhos quase ceguinhos, a saudade do Céu que se afastava.
Enlaçados descíamos o negro poço do esquecimento, tombando para a Terra, e o Céu já mal deixava ouvir suas harmonias, de nós fugindo como relâmpagos.
E ficamos sozinhos, embrulhados no manto dos teus cabelos.
Solta esses cabelos: que o vento de loucura que varre o mundo tos leve em suas asas velozes e sejam algas imensas nas ondas da ventaneira!
Vamos sobre as cidades espalhar a loucura da nossa paixão.
A nossa carne grita o ódio que nos separou e quer destruir-se numa fúria impossível. Somos dois e cada um de nós quer perder-se ou perder o outro na chama da sua paixão luxuriosa.
É como o Mar em fúria destruindo os rochedos, engolindo as terras, as naus e as gentes.
O nosso desejo é feito dum ódio misterioso: hei-de queimar-te, dissolver-te em mim, oh meu amor moreno, de cabelos selvagens flutuando ao vento da loucura!
És a bandeira inimiga, trapejante e heróica, desafiando a cobardia do amor masculino; hei-de vencer-te, ter-te como escrava no harém da minha maldade.
Aí hás-de agonizar, morrer, perdendo essa lembrança que é réstia de luz a brilhar na escuridão dos teus cabelos, se o vento os leva para a esteira dos teus olhos…
Ah! não! Meu Amor bondoso, perdoa.
Morena de terra é a tua carne, negros de Noite são os teus cabelos; mas os teus olhos, os teus olhos são sorvedouros de alma por onde tombam todas as maldades e, nas folhas mortas que os encontram, canta logo a nova primavera.
Perdoa, meu Amor; que os teus cabelos fizeram uma tempestade tamanha que em seus ninhos e covis acordaram as aves de rapina, as feras cobiçosas e fez-se um coro de uivos na Noite.
Aperta os teus cabelos, meu Amor sereno, deixa-me saber ser bom e sonhar.
Aquela Noite, a primeira noite do nosso esquecimento vamos a lembrar, oh meu amor piedoso?
Colhíamos açucenas nos jardins da alma e, de repente, fomos envolvidos duma nuvem densa, duma fantástica e tormentosa nuvem, tomou-nos um rodopio e enlaçados ficamos sempre a prender-nos, mas com ódio e violência.
Hoje, se soltas os teus cabelos negros relembro o turbilhão daquela Noite e, se os tomas e apertas, relembro, mais e mais, as açucenas do jardim das almas…
Como eram, meu amor, aquelas açucenas?
Deixa-me ver-te os olhos; eles são as crateras da alma, no fundo, muito no fundo, brilham serenos os astros daquele Jardim.
Estende agora os teus cabelos negros: olha como flutuam leves e sedosos e são carícias alongadas, que os vão enlaçar nas árvores onde a seiva acorda e canta uma remota lembrança como a nossa…
Os teus cabelos são agora cometas do Infinito lembrando as alegrias da Origem.
Oh minha Eva sem pecado! És a árvore da vida, a fonte da minha ternura, e os teus negros cabelos soltos são raios de Sol perdidos na Noite.
Os teus cabelos são a impossibilidade da tua nudez; se deixas tombar os vestidos logo eles caem a vestir-te das tintas misteriosas da Noite: são uma criação do teu pudor, os guardas invencíveis do teu Jardim, as delicadezas brandas que envolvem o suave mistério das almas.
Os teus cabelos são a cercadura do teu recato, o amaciamento que te cerca e vai no ar a distância a levar o teu vegetal aroma de acácia.
Já foste acácia e no Jardim secreto, onde vivias, eu fui o pobre jardineiro que te colhia as flores.
Tombavam-te do corpo como asas de insecto afogando-me em deliquescente perfume.
Hoje os teus cabelos são lembrança vegetal e angélica e, se os soltas, o vento que os toma é a própria saudade do Jardim das almas.
Vamos, meu Amor saudoso; que os teus cabelos flutuem ao sopro do Mistério, e, Eva sem pecado, leva-me contigo para a saudade do Céu.
Que Deus te cubra de bênçãos como de flores de acácia cobre a minha pobre alma a piedade do teu amor!
Deixa-me deitar a mão aos teus cabelos soltos, e, no carro de Osíris, atravessemos o firmamento.
Canta, meu Amor piedoso: Como o Céu se aproxima, como renasce a lembrança e vamos sendo aleluias de luz pelas Alturas!
Que a mão de Deus segure os teus cabelos e piedosamente nos leve para o seu Amor!
(Leonardo Coimbra in Cantares. Renascença Portuguesa, 1914, pp. 93-97).
O incendio do sol-pôr exala um fumo rôxo
Que ás cousas vela a face…
A macerada flôr da solidão renasce;
O seu perfume é fria e branda magua,
Bruma que já foi agua…
Todo sombra e luar esvoaça o môcho;
Uma nuvem enorme, ao longe, no poente
Desvenda o coração que se deslumbra
E abraza intimamente…
O silencio a crescer, é onda que se espalha…
Sente-se vir o outomno; é já noitinha, orvalha…
Nos êrmos pinheiraes gemem as noitibós
E vultos de mulher, sumidos na penumbra,
Passam cantando, além, com lagrimas na voz…
Ó tristeza do mundo em tardes outomnaes!
Longinqua dôr beijando-nos o rôsto…
Crepusculo esfumado em intimo desgôsto,
Bôca da noite acêsa em frios ais…
Aparição soturna, vaga imagem
Do mêdo e do misterio…
Que solidão escura na paisagem!
Tem phantasmas e cruzes,
Tem ciprestes ao vento e moribundas luzes,
Como se fosse um grande cemiterio.
Olho em volta de mim, cheio de mêdo… Tudo
É morta indiferença, espectro mudo!
É o Verbo original arrefecido
Em fragaredos brutos convertido;
Extinto Fiat Lux, cadaver que fluctua
No ceu nocturno e fundo…
As almas que partiram d'este mundo
Voltam na luz da lua.
São phantasmas em neve amortalhados,
Eternamente tristes e calados…
São sonhos esvaidos, nevoa fria,
Perfis de fumo e de melancolia…
Vagas formas de imagem ilusoria
Que a lua merencoria
Molda em penumbra e cêra
Na noite transparente de chimera.
E todavia eu sinto
Um acordar de instinto,
Um palpitar de viva claridade
Em cada cousa obscura…
O aroma d'uma flôr quem sabe se é ternura?
A noite não será phantastica saudade?
A deusa que semeia estrelas no Infinito
E corôa de lagrimas divinas
A extatica tragedia das ruinas,
Toda em versos de marmore e granito?
Misteriosamente
Sobe da terra um sonho transcendente;
Emanação de mistica tristeza,
Como o fumo d'um lar
Que tem, junto do fogo, alminhas a rezar.
Mas, ai, a Natureza,
Reservada e offendida, afasta-se de nós!
E na sua mudez arrefecida
Congela a minha voz…
Um silencio mortal separa-me de tudo!
E como a sombra tragica da vida,
Vou pelo mundo além;
Enorme espectro mudo,
Monstruosa presença de ninguem!
Vivo sósinho e triste, assujeitado
Ao meu phantasma errante e desgraçado,
Em ermos de abandono;
Ermos de Portugal,
Onde a alma do sol divaga com o outomno
N'um sempiterno idilio sepulcral.
Sou nada, e quero ser!
Quero ser tudo, e eu! Quero viver
A vida misteriosa…
Interrogo o silencio e a noite rumorosa
De sombras e segredos…
Contemplo comovido os astros e os penedos,
E fico a ouvir as fontes n'um eterno
Queixume que ergue a voz durante o negro inverno!
Passo horas a aspirar o aroma d'uma flôr;
Sombra que eu vejo em pétalas de côr
Esparsas, ondeantes,
Nas virgens claridades madrugantes.
E a pura sensação que me domina,
É qual longinqua Apparição divina
Que me seduz e afaga…
E de estrela em estrela é alma que divaga…
Quantas vezes me sento á beira d'um abismo,
Sobre escarpados blócos;
E em mim perdido scismo…
E ouço apenas cair nos tenebrosos fundos,
As lagrimas de luz que vêm dos outros mundos
E a neve do silencio em negros flócos.
Absorvo-me na noite e no misterio;
Erro, ao luar, em êrmo cemiterio,
Sob as azas geladas do nordeste;
Interrogo na vala a sombra do cipreste
Rumorosa d'um funebre desgosto,
Com gestos espectraes ás horas do sol-posto…
E n'um doido, febril deslumbramento,
Vejo-me sepultado em pensamento
E durmo, durmo, durmo a Eternidade…
Subito, acordo e volto á claridade!
Sáio da fria cova;
Uma sombra infantil cái d'esta imagem nova
Que sobre mim baixou do sol a arder…
Que alegria, meu Deus, tornar a ser!
E sinto um novo amor por tudo quanto existe!
Reso de joelhos vendo a tarde triste,
Pintada a sangue, em longes de pinhaes…
Vendo imagens de estrela em charcos de agua,
O oiro caido ao chão das arvores outomnaes
E as nevoas, frias tunicas de magua,
Vestindo outeiros nus…
Vendo o fumo de rusticas lareiras,
Onde ha velhas fiando em negras preguiceiras
O livido lençol que as ha de amortalhar,
E rezam n'uma voz de sombra: amen Jesus…
E ficam-se a scismar…
Lá fóra, ouve-se uivar phantastica alcateia
E andam Bruxas a rir…
Rangem velhinhas portas,
Treme a luz da candeia,
A cinza sobe no ar, as brazas mortas
Começam a luzir…
Eu amo tudo: os ramos comovidos
Em diáfano marmore esculpidos
E esse velhinho tronco, em flôr, que renasceu
Ao sentir a impressão azul que vem do ceu…
Com que ternura beijo a luz do dia,
Que em meus ouvidos de alma é lirica harmonia…
Tenho ocultas palavras transcendentes
Para as nuvens somnambulas, dormentes,
Para a sombra nupcial e mistica d'um lirio,
Para a afflição da inercia escrita n'um rochedo
E para a Dôr que faz gritar um arvoredo
Em noites de delirio.
Mas este amor é grande soffrimento!
De que nos serve amar o que não ama?
Ser dolorosa chama,
Sobre campos de neve, errando, ao vento?
Andar a perseguir um Anjo fugitivo!
Entre turbas de mortos não ser mais
Do que um espectro vivo?
Ser doido cataclismo!
Ser desprendida folha,
Entregue aos vendavaes,
A voar, a voar em negros vôos afflictos!
Olhar seu proprio sêr como quem olha
O fundo d'um abysmo!
E querendo esconder nas sombras o seu rôsto,
Para chorar tão intimo desgosto,
Ter de invocar a noite em altos gritos!
Ó meu vulto perdido em trevas misteriosas!
Cégo, a bater de encontro ás brutas cousas,
Coberto de feridas, a sangrar…
Sou como a sombra em lagrimas do mar;
Nuvem desfeita em chuva;
Um enorme phantasma de viuva
A rezar e a chorar na solidão sem fim!
Noite de horror sempre abraçada a mim!
Ó noite, onde ha soluços e estertores
E procissões infindas de clamores…
Multidões de phantasticas mulheres,
A cantar, a cantar sinistros miséréres…
Sombras que o vento leva…
Doidos perfis de fogo a rir na treva
Que nos desvenda as lividas entranhas,
Com nuvens e contornos de montanhas,
Com arvores agitadas de anciedades,
Com desgrenhadas, intimas saudades
E tragicos desejos que arrefecem,
Soes que n'um mar de sangue desfalecem!
Sou a noite em que o mundo se consome:
As cousas mais humildes e sem nome,
As estrelas, os Deuses, tudo quanto
Se amortalha na sombra do meu canto
Que chora a sua eterna imperfeição!
Sou tempestade, noite, solidão,
O frio esquecimento,
A sombra do luar bailando com o vento,
Um gemido de nevoa, uma ternura, um ai,
Phantasma d'uma lagrima que cáe.
Ó triste solidão que me rodeia!
Ó minha amada e pequenina aldeia!
Ó aves a cantar para ninguem!
Flôres que o inverno emurchece,
Mãos erguidas na tarde que arrefece,
Implorando o silencio, a noite, as cousas mortas
E os ventos de terror batendo ás portas,
Sem destino, a correr por esse mundo além!
Almas crucificadas de abandono
Entregues a uma eterna viuvez,
Transparentes de fina palidez,
Rezando ao Deus da Morte as orações do outomno…
E tu, meu coração amante que palpitas
Nas trevas infinitas!
E ardes n'uma fogueira desvairada
E doido te consomes para nada!
Caio por terra morto de cançasso,
A propria terra foge ao meu abraço!
Foge de mim tambem meu proprio sêr,
Vulto de cinza e poeira…
Homens, nem mesmo a dôr é verdadeira!
Sou ilusoria imagem a soffrer
A tragica mentira que a formou!
E pelo mundo vou
Na êrma escuridão, chorando afflicto,
Como creança perdida no Infinito,
Entre soturnos Deuses fabulosos
E mundos de terror vertiginosos…
O alto sete-estrelo!
Sol velhinho com brancas no cabelo!
Silencio emudecendo a musica dos ninhos!
Loucura que ergue o mar em ondas e soluços
E, exausto, sobre a praia, o faz cair de bruços!
Ó pinheiraes sósinhos!
Ó tragedias de fraga e terra! Ó êrmos montes!
Calvarios a sangrar!
Corações de mulher desfeitos em luar!
Martirisadas fontes!
Medonhos arvoredos!
Chimericos penedos!
Lobos uivando a magua que os consome
Á lua que prateia a serra fragarosa…
Magros vultos de pêlo arripiado
Com um sinistro olhar incendiado;
Ferozes esqueletos que têm fome…
Aparições da Plebe tenebrosa;
Odios vivos, relampagos de dôr;
Archotes acendidos,
Na noite da desgraça transmitidos,
De mão em mão, com tragico furor!
Lobos famintos, doidos e profetas!
Leões cheios de sombra e de melancolia!
Feras que devoraes por simpatia,
Bramindo, como cantam os poetas!
Meu sonho é comungar a Natureza;
Paisagens de alegria e de tristeza,
Desertos ao luar, visões de outrora,
Nuvens relampejando…
O silencio nocturno, a musica da aurora
Em notas de oiro voando…
Quero sentir o amor, o soffrimento
Que apaga a luz do sol e faz gritar o vento
E sufoca de lagrimas as fontes
Na solidão dos montes…
Quero sentir o vago, o indefinido
D'um astro a palpitar nas ondas reflectido.
Quero ser a ilusão, a nuvem, a chimera,
A divina alegria, a virgem Primavera
Que nos desenha, além, n'um fundo escuro e frio,
Doirada porta em flor aberta sobre o estio…
Quero brilhar na luz e crepitar
No fogo, e me perder em fumo pelo ar!
Quero tecer os caules verdejantes
E ser em rosa murcha orvalhos scintilantes.
Quero abranger o mundo
E o claro ceu profundo;
E ter nos olhos meus
As estrelas e as lagrimas de Deus,
E em meus braços o gesto de carinho
Que tem um ramo em flôr,
Quando ampara e protege com amor
Uma avesinha dentro do seu ninho…
(Da terceira Fala do «Jesus e Pan»)
Teixeira de Pascoaes