Joaquim Correia, caracterizava há cem anos o povo da raia da seguinte forma:
«Povo religioso, sem grandes fanatismos, é, como os vizinhos espanhóis, alegre, divertido, sentimental e apaixonado pela música, poesia e pelos touros».
Esta frase resumindo psicologicamente o povo ribacudano, foi escrita na transição do seculo XIX para o XX, e assim sendo, refere-se ao seu tempo, não forçosamente ao actual.
O ethos, caracter de um povo, sentimento vital, depende das relações fundamentais dos homens que o compõem: o mundo, o outro e a transcendência. É justamente a efectividade do próprio corpo, os poderosos impulsos animais que o governam, a fome, o impulso sexual, a velhice, a morte, que determinam o sentimento vital de um povo e sua relação com o meio.
E em cada época apresenta-se um novo e diferente desafio, e, é próprio do ser humano dar a resposta adequada conforme o lugar, tempo, costumes, etc. Cada grupo, aos poucos, cria um modo próprio habitual de compreender o mundo; a isto é que se chama ethos.
Portanto o ethos de um povo, o modo como vê o mundo e se relaciona com ele, a origem dos seus valores, as normas que estruturam a sociedade, os indivíduos que a compõem, os costumes, a moral, o mundo simbólico e mítico que sustentam a sua vida, é diferente, consoante o contexto espácio-temporal.
De facto, o ethos emerge num mundo cultural, de um grupo, num período da história. As pessoas, no dia-a-dia diante das coisas adquirem hábitos, atitudes, modo de agir, e dão significados às coisas e actos. Isto constitui uma maneira de ser e de habitar o mundo. É a maneira como cada homem e cada cultura vivem o ser.
E como é óbvio, havendo história do ser, forçosamente há história do ethos; Diferindo a sociedade ribacudana actual, da do tempo de Joaquim Correia, lógico é que o ethos que ele definiu como sendo o do povo de Riba-Côa, não é o mesmo hoje.
Especificamente a Riba-Côa do tempo presente de Joaquim Correia, caracterizava-se por uma sociedade rural, essencialmente agrícola, de fronteira, isolada, católica, tradicional e analfabeta, assente num território razoavelmente povoado, com a pirâmide etária equilibrada, climaticamente inóspito e pobre.
Estas condicionantes do meio, sobretudo o caminho que diariamente o agricultor fazia para as lides do campo, onde recolhia tudo o que tem substância em seu redor, o enigma do perene e do grande, do céu e da terra, penetrando o homem e convidando-o a uma longa e serena reflexão sobre a criação, é que contribuíram para o ethos do povo de Riba-Côa, como o definiu Joaquim Correia. E isto não deferiu muito, durante séculos, até meados do século XX.
Mas esta perspetiva, à excepção da pobreza, das condições climáticas e de algumas manifestações de religiosidade, não se repete hoje: Temos uma sociedade rural, mas que já não vive da agricultura, instruída nas camadas mais jovens, mas fortemente envelhecida, num território desertificado.
Resumidamente, porque o espaço de um post ou de um artigo de jornal não permite aprofundar, a sociedade ribacudana desde há vários séculos e até meados do século XX, era essencialmente agrícola, o que condicionava particularmente as suas manifestações culturais e hábitos.
Hoje é uma sociedade cada vez mais desenraizada da terra, e como tal, perdendo as manifestações culturais e hábitos daquele tempo, à medida que desaparecem as gerações mais velhas, ainda criadas naquela tradição.
A situação de penúria mantem-se. Mas no tempo de Joaquim Correia o sustento de uma terra inóspita impunha aos seus habitantes uma forma de vida, coincidente com o ciclo agrícola, e uma experiência própria de vivências do quotidiano para superar a necessidade de comer e viver. O estado de alma que caracterizava esta existência era a angústia, um sentimento positivo provocado pela necessidade de suplantar o estado estético, a sua matéria, finitude, e alcançar o estado ético, mais próximo do seu fim espiritual e da infinitude, que o impele a procurar permanentemente as possibilidades de realização, numa acção sobre o seu destino e o tempo futuro. A poesia de Leal Freire é a manifestação ética, sublime e única, da totalidade experiencial, da relação com o sagrado, conexão com o universo, do homem ribacudano deste tempo.
Mas o homem ribacudano de hoje abandonou a rabiça do arado, já não tem o contrabando como alternativa de subsistência, e ainda não encontrou outro modo de vida, não tendo para comer e viver outro caminho, senão o da emigração. Por isso voltou-se sobre o seu próprio vazio, que o assalta sob a figura do Tédio, um sentimento negativo, pelo qual o homem, perante as possibilidades envolventes que lhe permitem a realização do seu fim, nem se apercebe dessas possibilidades. Uma total ausência de vontade, uma incapacidade de ver as possibilidades que lhe permitem superar o estado estético. Uma estagnação no tempo do não ser, uma incapacidade de futuro.
O tédio, como sentimento negativo da alma, anda associado à melancolia, pois esta, mais não é que o sentimento que, perante as possibilidades, as vê, mas se recusa a aceita-las.
O Tédio associado à melancolia gera o vazio da alma. E foi este vazio de alma que arruinou o homem de Riba-Côa. Ele perdeu o caminho em que aprendeu a essência da pobreza; a tal necessidade de subsistência, geradora da angústia, que lhe aguçou o engenho e lhe permitiu sobreviver na terra inóspita de fronteira.
Esta é a pior das pobrezas, porque é a que nasce da incapacidade de pensar verdadeiramente, de escutar atentamente o ethos, que está no já pensado e dito e de distinguir em ambos o único e o antigo, transformando esta escuta num saber.
E como é possível captar o ethos? É através e indo além das evidências. É indo além da historicidade das manifestações de grupos, buscando captar o ser. Essa captação do ser dá-se dialeticamente, como algo dinâmico, sempre num renovado “vir a ser”/ “poder ser”.
Essa dialética, como dizia um certo autor, «faz-se no diálogo com o outro, o “face a face”, numa negação da totalidade firmando a finitude. É nas manifestações espontâneas, nas relações simples entre sujeitos que o ethos aflora. Neste vasculhar de relações quotidianas percebe-se o ethos de um povo, num saber que brota de experiências fecundas. Nas relações valorativas e normativas que permeiam contextos sociais, políticos e culturais». As manifestações culturais, as realizações colectivas e de grupo, são um bom exemplo de ethos manifestado.
Só se descobre o ethos, dinamizando as relações de alteridade dos indivíduos, pelas quais o espirito subjectivo de cada um procura objectivar-se nos outros e no meio e regressa a si trazendo dessa viagem ao mundo dos homens e das coisas a partilha de sentimentos comuns que o identificam com uma comunidade.
Numa sociedade melancólica, dominada pelo tédio, de total ausência de vontade, individualista e egoísta, não se manifesta o ethos, o impulso vital que permite a uma comunidade “vir a ser”/”poder ser”!...
O homem de Riba-Côa hoje é profundamente melancólico... E é precisamente aqui que está a razão do seu não futuro, do seu não “poder ser”/ “vir a ser” como povo!
E a sua maior tragédia nem é este vazio de alma, a estagnação no tempo presente do não ser; mas o estar refém de uma elite dirigente incapaz de fomentar, escutar e interpretar este ethos.
É ao pico da garrocha que a índole bovina, generosa e forte, do povo ribacudano se revela. É na provocação e na adversidade que o povo ribacudano age.
Foi ao forcão, não no pasto, que este boi aprimorou a raça; foi no jugo, não à manjedoura, que ele robusteceu o coração.
«Melancólico de alma, índole bovina, só picando-o, ele se move!»
Por isso, esta é para mim a verdadeira frase que caracteriza o povo raiano.