Negro
Mais negro que os fogueiros ào inferno;
Gordo,
Mais gordo que as mulheres de um rei negróide;
Bufão,
Mais bufão do que Noto, Eolo e Bóreas à compita;
Veloz,
Mais veloz que os golfinhos de Nereu –
Entrou na praça o boi galhardo.
Escarvando,
Olfacteou o argiloso chão,
Com um ar de Satã alucinado.
Depois,
Erguendo a cabeça,
Achou pequenas a pequenez da praça
E a amplidão dos céus.
Depois, ainda,
Mugiu
Em ódio clamoroso e clangoroso.
Então,
A praça entrou nos delírios do pavor.
O forcão
Quedou-se desamparado
No meio do terreiro
E os capinhas galgaram em pamco
O espaço que os separava das trincheiras.
Sozinho,
No meio da praça,
O boi,
Já gigante,
Mais se agigantava.
Empoleirado num carro,
Exalçado a lenha
E enfeitado a colchas,
O tamborileiro rufava,
Querendo rebentar o velho bode.
Então os solteiros ganharam coragem
E, saltando aos magotes para a arena,
Imobilizaram o boi
Entre os aplausos dos homens
E os gritos das mulheres.
Manuel Leal Freire
Ricardo Paula, Pintura "o abraço do mar III"
Como se o mar me prendesse os braços
e eu ficasse no chão sem vontade
de fazer e de construir
como se os lábios
ficassem presos
e fosse impossivel sorrir.
Sorrir aos amigos
e escutar as conversas
as histórias da força
dessa luta de quem recomeça a viver
Como se o mar me prendesse os braços
e fosse como a corrente que prende os barcos
e eu ficasse no chão sem vontade.
Como se a liberdade
fosse aquele acto
que cai e se levanta
como se faz no teatro.
Lobo Duarte
Muitas àguas leva a Côa,
Junto à vila do Sabugal;
Quando as àguas vão crescidas,
Ninguém passa no pontal.
O meu rio vai tão cheio,
Que não o posso atravessar!
Vai cheio de mil dores...
Ninguém o póde passar!
Foje a Còa, fujo eu,
Cada um com o seu fado,
Sempre em direcção ao mar,
Qual de nós o mais pesado?
Eu levando meus desgostos;
Ele, a rama dos salgueiros...
Qual de nós o mais pesado,
Correndo ambos ligeiros?
Mas debaixo da velha ponte,
Onde a àgua faz remanso,
Quando beija os salgueiros,
Tem a Côa bom descanso.
As àguas do arco grande,
Aos pés da velha muralha,
Em noite de lua cheia,
Há lá melhor mortalha?
O luar batendo nas àguas,
E nos salgueiros como ladrão,
Assim me roubou a Còa,
A alma e o coração.
Estas àguas da velha ponte,
Por querer seus amores,
Na alma me deixaram,
Mil penas e mil dores.
Mansas àguas tem a Côa,
E salgueiros ao Luar!
Mas quando a cheia é de máguas,
Ninguém as póde passar!
Obs: O meu avô Lourenço Martins, devido à sua conhecida paixão da pesca, foi o homem do concelho do Sabugal que mais conheceu e amou o Côa. Ele tratava o rio como mulher; «a Côa», pela fertilidade das suas àguas. Este poema é, glozando uma cantiga de Antero de Quental, homenagem aos dois.
Alla me tienes contigo
Serranica de aragon
El alma y el coraçon.
Serranica tu querer
Me tiene passado en ti
Yo por tuyo me hazer
He me desecho de mi
Dende el dia que te vi
Me robou tua perficion
El alma y el coraçon
Mil penas y mil dolores
Porquerette tus amores
Serranica me han robado
En alma me han dexado
Tus oios me han salteado
En bosque como ladron
El alma y el coraçon.
Tienes me outro totoznado
En nada perezco yo
Sy soy algo soy traslado
Del rostro que dios te dio
Tu vista me salteo
Tudo con mucha razon
El alma y el coraçon.
Si yo antes mio era
Luego en verte tuyo fuy
Que tu vista lastímera
Me lhevo luego tras si
Donde estoy estoy en ti
E assi tienes ocasion
De tenerme el coraçon.
El querer queyo te quiero
Por te ver linda e galana
Es causa que todo entero
Alla me tengas serrana
Robaste me de inhumana
Con tu rostro y discrecion
El alma y el coraçon.
El dia que te mire
Passe en ti my proprio ser
El mio mismo ser
Por mas cerca te tener
Tu procuras me traer
El alma y el coraçon
Presos en tu perdicion.
(Vilancete do Marquês de Santilhana in Espejo De Enamorados, séc XVI)
Konstantinos vivia na megapolis de Atenas; foi a crise que o levou a desfazer-se do apatamento citadino, e regressar com a mulher à aldeia paterna.
Hoje vive de transportar os turistas pelos caminhos ingremes e sinuosos da colina, entre a praia e a aldeia, com as suas duas mulas.
Recuperou a casa paterna e, numa pequena depressão da colina, para lá da aldeia, em pequeno campo herdado, tem uma horta, meia dúzia de ovelhas e um velho burro.
A esse burro anónimo, que aluguei para companheiro acidental da minha viagem solitária, tive eu a honra de pôr nome.
Não é que o bicho, a certo ponto do nosso passeio, tomado pela mosca, arrancou comigo em correria desabrida, escarpa abaixo?
Nem os rogos e vergastadas o estancaram; salvou-me um proverbial muro, sobre o mar, onde esbarrou o animal.
Por isso, refeito do susto, dei-lhe o nome de Sócrates; o político, não o filósofo...
Konstantinos e a mulher gostaram:
- Socrates? Very nice, indeed!
Não perceberam a “nuance”...
D’aquele esguio telhado
-Onde tu sabes que eu moro,
Eu acho os astros d’um ouro
Já bastante mareado!
Nenhum deles vai à trança
Dos teus cabelos cumpridos!
Por isso meu peito lança
Ao teu telhado gemidos!
Se eu fosse Deus, minha amada!
-Dar-te-ia, Satan m’ esfole!
Uma cartinha fechada,
Servindo de lacre o sol.
Mas sou um prédio em ruinas!
-Não tenho nada comigo,
Sou um mendigo,
Que tomo o sol de esquinas.
Divago roto e contente!...
-Odeio um lente – e o filósofo!
E sob este azul clemente,
Triunfo alegre e faminto!
Meus deuses são Vico e Dante!-
E gosto, no meu caminho,
Encontrar Minerva Amante,
E as Musas cheias de Vinho.
Como um barco sem amarra,
Navego, turgidas velas,
E desafo as estrelas,
À noite, sobre a guitarra|
E a cabelo louro ou preto-
Fragilidades de barro!
Envio sempre um soneto
Na mortalha de um cigarro!
Erro sem norte e sem tino!
Ninguém me’estende o seu braço.
Quer-me por força o destino
Comendador ou palhaço!
Post scriptum:
Desculpa-me, flor amada!
-Ó minha musa divina!
Não fui hontem à escada,
Porque empenhei a batina!
(Gomes Leal, in Claridades do Sul)
PS: Resumindo; os copos fazem mossa!
A lua já se pôs,
As Plêiades também:
Meia-noite; foge o tempo,
E chora um mocho,
No silêncio do jardim.
Vem, meu amado.
Vem até este gracioso bosque de macieiras, onde a água fresca canta entre as raizes das árvores, e a trémula sombra da figueira desce um sono pesado sobre as minhas pálpebras.
Vem, meu amado.
Trancemos juntos multiflores coroas de ramos de sândalo e murta,
Que pomos em meus cabelos,
Vem, segreda-me palavras doces ao ouvido, e minha alma te ouvirá cativa e amorosa, e as nossas noites serão como os regatos tranquilos cobertos de flores primaveris, ou roseiras brancas, cujo perfume a brisa sopra docemente, em fragâncias doces ao olfacto;
E meus lábios serão teus lábios, meus cabelos serão os teus cabelos, como a raiz é da flor, a flor é da abelha e da abelha é do pólen.
Vem, decansa a cabeça nos meus seios, bebe a doçura da minha boca, que eu sou o mel de que teus lábios gostam.
Vem, amado do meu coração!
Vem; vem, que toda eu te quero!
Vem; procura o calor das minhas coxas,
Que começam a estremecer;
E verás como, chamando-te com as minhas mãos, e puxando-te para o meu leito, um fogo urgente me sobe pela carne, um frio suor me recobre;
E como, no transporte doce da minha alma,
Sacudindo os cabelos orvalhados de estrelas,
Pálida, perdida, febril,
Um frémito me abalando...
O corpo se me arrepiando...
Respirando a custo...
Caio num langor profundo...
E morro.
Cai a lua, caem as plêiades;
Meia-noite; passa o tempo,
E eu, aqui deitada, sozinha,
Ouvindo o pranto do mocho,
Nada mais ouvindo que o pranto,
Morrendo de tristeza.