Entrara nos boqueirões
Já mais negros que os carvões
Todo o pão de uma fornada.
A mulher do lavrador
Ergueu então ao Senhor
Velha reza salmeada.
Á sua voz de comando,
Ergueu-se o corvo do bando.
Filhos, criados, mendigos.
Era noite de nevão,
Uns esperavam o pão,
Outros do friofugidos.
Em louvor de São Vicente
A fornada se acrescente
Disse a velha em tom de brasa.
Por Deus e Santa Maria,
Pão nosso de cada dia
Haja sempre em nossa casa,
Em louvor de Santa Teresa
Não se acabe o pão na mesa
Mesmo de quem nos consome
Ladrões, citotes da vila.
Que nem sequer tal quadrilha
Aprenda o sabor da fome
O gado na mangedoura
O bicho-fero na loura
A cada a sua ração.
Em louvor de Santa Marta
O pão se parta e reparta.
É esta a minha oração.
Ouvi-me, Senhor Jesus,
Pra vos rogar, eu me pus
De joelhos sobre as pás.
Ouvi-me plo que sofreste.
Plo muito que padeceste
De Pilatos pra Caifás.
A Maria, vossa mãe,
Mae de nós todos também
Desde as horas do Calvário
Eu quero pedir ainda
Duas coisas, qual mais linda
Plas contas do meu rosario..
Que o nosso irmão que, primeiro,
Face a Deus, juiz inteiro,
Para pagar compareça,
Nao sofra mais do que um susto,
Leve insígnias de justo
Por sobre a cruz da cabeça.
E que a alma que o tormento
Há mais tempo o fogo bento
Requiem e no Purgatório
Voe já lesta prós Céus,
Fique á direita de Deus,
Entre no seu oratório.
Terminada a santa prece
A gente que reza esquece
Suas mágoas, tantas são.
Do forno, sai uma bola,
A velha reparte-a toda
Todos são filhos de Adão
Da bola sai uma luz
Ei-la pelos céus em cruz
Cada cruz uma barquinha
E todas de justos cheias
Rebentaram-se as cadeias
Coa força da ladainha...
(Manuel Freire)
Obs: Se tiver tempo, um dia explicarei a chave deste poema. Só adianto que se insere na mesma cosmogonia de toda a obra de Leal Freire. Duplo sacerdócio; 1 -Homem, Lavrador, pai ; 2- Mulher, dona de casa, mãe, correspondente a uma teogonia baseada nas triologias Homem, trabalho, pão; correspondentes às triologias Amor, acção, pensamento; Saber, sofrimento humano, palavra/oração; Liberdade, igualdade, fraternidade e Pai, filho, Espírito Santo.
5- Da Natureza à Alma
«O povo Inglês é um povo mudo; podem praticar grandes façanhas, mas não de escrevê-las», disse Carlyle, dos ingleses.
E acrescentava, com vaidade, no seu poema épico, que os feitos dos ingless está descrito na superfície da terra.
Contrapunha, humilde, Unamuno, que mais modestamente, e mais silencioso ainda, o povo Basco escreveu na superfície da terra e nos caminhos do mar seu poema; um poema de trabalho paciente, na América latina, mais que em qualquer outra. Mas durante séculos viveu no silêncio histórico, nas profundidades da vida, falando a sua língua milenária; viveu nas suas montanhas de carvalhos, faias, olmos, freixos e nogueiras, matizadas de ervas, bouças e prados, ouvindo chamar o oceano que contra elas rompe, e vendo sorrir o sol atrás da chuva suave e lenta, entre castelos de nuvens.
E concluía: «As montanhas verdes e o encrespado Cantábrico são o que nos fez».
De facto, como tão bem observou Unamuno, é a Natureza e o meio que fazem os povos.
O homem encontra-se determinado pela natureza, a qual engloba tanto o seu próprio corpo, como o mundo exterior. E justamente a efectividade do próprio corpo, os poderosos impulsos animais que o governam, a fome, o impulso sexual, a velhice, a morte, determinam o seu sentimento vital e sua relação com o meio.
Esta constituição vital, que Platão já descrevia na vida presenteira dos terratenentes e sua doutrina hedonista, combatida por Heráclito, encontra expressão na filosofia epicurista, que S. Paulo desdenhou, está presente numa grande parte de literatura de todos os povos, e ressuou nas canções provençais, na poesia cortesã alemã, na epopeia francesa e alemã de Tristão, nas éclogas e pastorais do nosso Bernardim, depara-se-nos igualmente, na filosofia do século XVIII.
Nesta concepção do mundo, a vontade subordina-se à vida impulsiva que rege o corpo e às suas relações com o mundo externo: o pensar e a actividade finalista por ele dirigida encontram-se aqui ao serviço desta animalidade, reduzem-se a proporcionar-lhe satisfação.
Quando tal constituição vital se transforma em filosofia, surge o naturalismo, que, de forma uniforme, desde Demócrito, Protágoras, Epicuro e Lucrécio, a Hobbes, afirma ser o processo da natureza a única e integral realidade; fora dela, nada havendo; a vida espiritual distingue-se da natureza física só formalmente como consciência, de acordo com as propriedades nesta contidas, e a determinidade conteudalmente vazia da consciência brota da realidade física, segundo a causalidade natural.
As experiências do impulso vital, independentemente das construções filosóficas, ebabulações poéticas, levavaram sempre, e isso é que nos interessa, ao mesmo: ao sossego de ânimo, à paz de espírito, que surge em quem acolhe em si a conexão permanente e duradoira do universo.
No poema de Leal Freire, encontramos também a expressão desta constituição anímica. Ele vive em si a força libertadora da grande mundividência cósmica, astronómica e geográfica, que a paisagem particular e a Terra de Riba-Côa criaram.
O universo geográfico, as suas leis gerais, o nascimento de um sistema cósmico próprio, a história da Terra que sustenta animais e homens, por último, produz um homem particular, emergente de um universo cósmico:
«vem á ceia as courelas(10)/cada uma traz seus mimos/dá o quintal bagatelas
a veiga fartos arrimos// Das bouças vêm canhotos(11)/Que um bento calor evolam
E até os manigotos/Mandam cheiros que consolam// Vinhedos, chões e vergéis(12)/Primasias se disputam/Nem as rochas são revéis/Em dura freima labutam.// As do monte mandam coelhos(13)/As da ribeira bordalos/Pirilampos são espelhos/A cegarrega é dos ralos.»
E o homem que resulta, em Leal Freire, desta cosmogonia é piedoso; um bom pai, há semelhança de Lucrécio, que dizia «ser piedoso quem com ânimo sereno contempla o universo»:
«O lavrador, que é bom pai,/A ver se a ceia é pra todos/Não manda, que ele proprio vai.»
Um homem livre que, superando o fundamento mecaniscista do naturalismo, reconhece, como o ideal natrualista de Fuerbach, Deus, na imortalidade e na ordem invisível das coisas:
«Na mesa, que é um altarzinho(9)/Que branca toalha cobre/
[...]
As Almas Santas dos Céus(14)/Também descem para a mesa/A noite, negra de breu,/ Resplandesce com a reza.»
Uma natureza provida de alma, impregnada da interioridade, que nela interpolaram a religião e a poesia.
Uma natureza que covida a uma atitude contemplativa, intuitiva, estética ou artística, quando o sujeito repousa, por assim dizer, nela do trabalho do conhecimento científico-natural e da acção que decorre no contexto das nossas necessidades, dos fins assim originados e da sua realização exterior.
Nesta atitude contemplativa alarga-se o seu sentimento vital, em que se experimentam pessoalmente a riqueza da vida, o valor e a felicidade da existência, numa espécie de simpatía universal.
Graças a tal estado anímico que a realidade suscita, voltamos nela a encontrá-los. E na medida em que alargamos o nosso próprio sentimento vital à simpatía com o todo cósmico e experimentamos este parentesco com todos os fenómenos do real, intensifica-se a alegria da vida e cresce a consciência da própria força vital, tal é a complexão anímica em que o indivíduo se sente um só com o nexo divino das coisas e aparentado assim a todos os outros membros deste vínculo.
Ninguém expressou com maior beleza do que Goethe esta constituição anímica:
Celebra a ventura de «sentir e saborear» a natureza». «Não só permites a fria visita de surpresa, mas deixas-me perscrutar o seu seio profundo, como no peito de um amigo». «Fazes passar diante de mim a série do vivente e ensinas-me a conhecer os meus irmãos no silencioso bosque, no ar e na água».
Esta constituição anímica encontra a resolução de todas as dissonâncias da vida numa harmonia universal de todas as coisas, que tão bem, como Goethe, soube resumir Leal Freire:
«A prece que ceia encerra/Manda pra longe a cizânia/A paz reina sobre a Terra.»
6 - Alma Enérgica e Sensível.
Conclui Leal Freire o seu poema com aquela magnífica saudação, que resume todo o carácter da minha raça:
« Dia um da criação (16)/A quantos na tasca estão.»
Uma saudação, curta em palavras, rude, como o que vem da força expontânea da natureza envolvente.
Não é por acaso, que o nosso folguêdo mais apreciado seja a capeia; um passatempo, em que se adestram colectivamente as forças dos homens, em confronto com a força bruta de um boi.
Um divertimento rude, para um carácter simples.
Como dizia Unamuno, a respeito povo Basco, a inteligência da minha raça também é activa, prática, enérgica. Sobreviver numa terra inóspita, de fronteira, exige mais um estética de acção, que de contemplação.
«E para quê poetas em tempos de penúria?», preguntava na 248 elegía, Pão e vinho, o poeta alemão Hölderlin.
Por isso, em séculos, não produziu nenhum poeta, nenhum filósofo, nenhum santo; mas venceu muitos exércitos invasores, munido apenas de chuços e foices.
Não que o meu povo não seja capaz de pensar, sentir.
A aridez dos cabeços, a dureza da rocha granítica, o contínuo rebentar dos bracejos entre os barrocos, a florição das giestas em Maio, o verdejar dos prados, a sombra fresca dos freixos, o murmúrio dos ribeiros a galgar as fragas, a courela, os quintais, os chãos, os vergéis com os seus mimos, um lenhador carregando ao anoitecer o seu feixe de lenha, o carro de bois carregado balançando-se nos sulcos do caminho, a geada branca sobre o campo, tudo isto se apinha, se agrupa e vibra através da nossa existência diária.
Esta fica tão perto do passo no caminho do poeta e do filósofo que se recreia, como do pastôr, que pela orvalhada sai com o seu rebanho.
Um carvalho no caminho, um freixo num lameiro, induzem todos à lembrança dos primeiros jogos e e das primeiras escolhas da infância. Quando às vezes caía as golpes do machado uma árvore no meio de um bosque, o pai de família procurava na floresta, a madeira seleccionada para as tábuas do soalho, para a cumeeira da casa, o jugo das vacas, a rabiça do arado; o homem mais experiente escolhia a galha mais afeiçoada para o forcão, os moços colhem o madeiro do Natal.
A rudez, o perfume da madeira do carvalho, do castanheiro e do freixo, falam sempre da lentidão e da constância com que uma árvore cresce, floresce e frotifica, abrindo a sua copa ao céu, enquanto a sua raíz mergulha na terra sustentadora.
O caminho do campo recolhe tudo o que tem substância em seu redor, o enigma do perene e do grande, do céu e da terra, penetrando o homem e convidando-o a uma longa e serena reflexão sobre a criação.
Mas esse caminho do campo, como diz Heidegger, «fala sómente enquanto haja homens que, nascidos no seu âmbito, possam ouvi-lo.»
Enquanto o ritmo da vida, o trabalho, as pausas do trabalho, se façam ainda ao ritmo do relógio da torre e dos sinos, que, ainda segundo Heidegger, «sustentam a sua própria relação com o tempo e a temporalidade».
Enquanto «Derem os sinos trindades/ Por sobre as casas da aldeia/ Toques de suavidades/ Que prenunciem a ceia», nas palavras de Leal Freire.
Pena é que só agora, quando o sino das trindades já não marca o tempo dos trabalhos do campo, o meu povo tenha aprendido a falar num idioma de cultura, que revela ao mundo o seu ethos de um profundo sentido do transendente, um saber amável, uma serenidade espiritual, generosidade e fraternidade universais, sob uma aparente rusticidade.
Um ethos de boi valente a investir no forcão, dócil a puxar o arado; generoso sempre, ao pico do garrochão ou da aguilhada. Um povo ao mesmo tempo nervo e sentimento.
Leal Freire, Manuel Pina, Pinharanda Gomes, Eduardo Lourenço, interpretes deste ethos, são poetas e pensadores, que ainda ouvem o caminho do campo, numa Riba-Côa onde rareiam cada vez mais os homens que, nascidos no seu âmbito, ainda conseguem ouvi-lo.
A saudação do final do poema, é o murmúrio que Leal Freire escutou, do vento acariciando as copas dos carvalhos, dos castanheiros e freixos, por esses caminhos de Riba-Côa:
«Dia um da criação, para todos os que na tasca estão!»
Para todos os que ainda consigam ouvir os sinos das trindades e o vento, da terra dos nossos pais!
1. Observação preliminar
Mestre na arte de versejar, senhor de virtualidades técnicas notáveis, Leal Freire é o maior poeta de Riba-Côa e aquele que melhor interpreta a alma do seu povo.
A simplicidade dos temas, imagens, ideias, aliada, de facto, a uma perfeição formal ímpar, concorre na sua poesia para a construção de um universo lírico de rara beleza e que fez dele um dos poetas que melhor interpreta a alma do povo Ribacudano.
A sua poesia, é, do ponto de vista técnico, um exemplo de rigor métrico, de simetria, de perfeição. O lugar de cada palavra, obedece a um desígnio sabiamente amadurecido; o mesmo se diga da escolha da forma estrófica, em quadras tão ao gosto popular; a estrutura interna dos poemas, nem curtos nem longos, revela um elevado sentido de equilíbrio, numa construção arquitectónica cuidada e minuciosa que a sabedoria de uma longa vida de escrita trazem. Há uma subtil malha de correspondências no seu interior, a deixar perceber uma verdadeira teia, onde todos os pontos se interl
igam por um fio condutor habilmente desenhado que desenvolve uma ideia simples subjacente a cada um dos seus poemas.
Mas Leal Freire é mais do que tecnicismo. Quer busque no quotidiano as suas imagens (os campos, a lavoura, os animais, os rituais da aldeia), quer as recolha no tempo cósmico, quer, enfim, as molde no universo rural, os seus textos são fiéis retratos da vida simples, com palavras simples, como convém à boa poesia.
As quadras são, como se disse, um exemplo de organização, ao mesmo tempo que uma manifestação de um espírito lírico sem par.
Esta conjugação da beleza poética e da riqueza lírica com o preciosismo técnico e inegáveis virtualidades linguísticas fazem dos seus poemas excelentes instrumentos de trabalho, tanto para a aprendizagem da língua, como para o do estudo da etnografia, e dos costumes de Riba-Côa.
Aqui se inicia, por isso, um exercício despretensioso que visa partilhar com os leitores algumas reflexões sobre a poesia de Leal Freire.
Este texto é um pequeno ensaio sobre o ethos, isto é, a alma Ribacudana, a partir da análise do poema A Ceia Do Lavrador, de Leal Freire.
2. Texto
A CEIA DO LAVRADOR
Deram os sinos trindades(1)
Por sobre as casas da aldeia
Toques de suavidades
Que prenunciam a ceia
Mas mesmo que ande de zorros(2)
O lavrador, que é bom pai,
A ver se a ceia é pra todos
Não manda, que ele proprio vai.
Começa a sua inspecçáo(3)
Plas vacas, gado mais nobre
Também cabonde ração
Prás cabras, vacas dos pobres.
Á égua, luxo da casa,(4)
Á burra, sua cestinha,
Mangedora a feno rasa
Mais até do que convinha.
Pois na pia do cevado,(5)
Que só pra comer nasceu,
É o farelo um pecado,
De fartura brada ao céu.
O gado de bico dorme(6)
Ao fusco se regalara
Os cães aguardam que enforme
O caldo que nutre e sara
Aos animais sem razão(7)
Aconchego já não falta
A seguir vem o pregão
Chamando pra mesa a malta.
Filhos, netos, jornaleiros(8)
O conhecem e de cor
Mendigos e passageiros
Também cabem em redor.
Na mesa, que é um altarzinho(9)
Que branca toalha cobre
Não falta caldo nem vinho
Nem pão. regalo do pobre.
vem á ceia as courelas(10)
cada uma traz seus mimos
dá o quintal bagatelas
a veiga fartos arrimos
Das bouças vêm canhotos(11)
Que um bento calor evolam
E até os manigotos
Mandam cheiros que consolam
Vinhedos, chões e vergéis(12)
Primasias se disputam…
Nem as rochas são revéis
Em dura freima labutam.
As do monte mandam coelhos(13)
As da ribeira bordalos
Pirilampos são espelhos
A cegarrega é dos ralos.
As Almas Santas dos Céus(14)
Também descem para a mesa
A noite, negra de breu,
Resplandesce com a reza.
E quando acaba a litânia (15)
A prece que ceia encerra
Manda pra longe a cizânia
A paz reina sobre a Terra,
Dia um da criação (16)
A quantos na tasca estão.
(Leal Freire)
3. Estrutura
Como é usual nos poemas de Leal Freire, a estrutura é simples e dominada por uma rede de correspondências externas: A - B -A- B. C-D-C-D E-F-E-F, etc.
A – Introdução (estrofe 1 e 2).
A estrofe 1 introduz o tema ( a ceia) e o tempo (à hora das trindades).
A estrofe 2 introduz a personagem (o lavrador, que é bom pai, homem bom) e justifica, ao mesmo tempo, a narração que decorre nas estrofes seguintes.
Dir-se-ia, assim, que o tempo real do poema é o que vai das trindades à oração final da ceia do lavrador, mas com um registo temporal diferente, anterior ao da sua própria cronologia, já que â manjedoura e à mesa, vem tudo o que anteriormente o campo generoso deu. Ceiam os animais e lavrador tudo o que da natureza veio.
B – Narração (da estrofe 3 à 13). Descrição do que a natureza fornece, através do alimento dos vários animais e do lavrador.
C – Conclusão (14 e 15). São duas estrofes que emergem do que se diz de3 a14, estabelecendo um paralelo entre a ceia dos animais e do lavrador. A sua unidade, de resto, é reforçada pela projecção, ou enjambement, da estrofe 9 (a mesa, que é um altarzinho) para a estrofe 14 (aonde descem as almas santas do céu), 15 (e acaba a ceia com uma prece) e o remeate do poema na 16 (com uma espécie de libação).
4. Tema
Este é mais um belo poema de Leal Freire, no qual, uma notável rede de correspondências entre a ceia dos animais e do lavrador confere unidade ao poema, faz da ligação entre o primeiro e ante-penúltimo versos, o resumo da ideia e do tema:
«Deram os sinos trindades [...] A paz reina sobre a Terra.»
São estes os versos que resumem o poema: A vida simples e tranquila do campo, ao ritmo das trindades. Uma vida espiritual no seio da natureza que a vida moderna suprimiu com a necessidade do indivíduo em prover às sua cada vez mais exigente existência corpórea.
Uma “beatus ille”, muito semelhante à áurea mediania (aurea mediocritas) já glosada na antiguidade clássica por Homero, Heráclito, Esopo na fábula do rato do Campo e do rato da cidade, e, na sequência dos estóicos, Virgílio, Horácio, também defensor de um ideal de vida calmo e sem grandes exigências, capaz de dar ao Homem a felicidade que não encontra no meio do ambiente perturbado da cidade, na glória das batalhas ou mesmo "no exercício decoroso das magistraturas" e lá fora, por Frei Luís de León, Carlyle, Tolstoy e outros, e entre nós, por Francisco Manuel de Melo, António Ferreira nalgumas das suas odes, Sá de Miranda na Carta a Mem de Sá, através do recurso também à fabula do rato do campo e do rato da cidade, e posteriormente pelos arcádicos.
Neste poema,em que Leal Freiretrata o seu tema recorrente das virtudes da vida no campo, da sua “pátria chica”, como costuma dizer, é o ritual da ceia, dos animais e dos homens, cuja hora é anunciada pelo toque das trindades, e culmina na prece final da ceia do lavrador, que traz a paz à terra.
E esta paz a que conduz esta bela vida, é magistralmente resumida na última estrofe, pela fraternidade e igualdade entre todos os homens reunidos na tasca, a qual dá à vida simples do campo um carácter espiritualidade e sagrado mais puros, mais próximos de Deus, porque mais próxima do criador e da sua criação:
«Dia um da criação (16)/A quantos na tasca estão.»
Sorrimos ao remate síngular do poema. Quem conhece o poeta, como nós,vê-o no seu geito bem Ribacudano, chapéu de abas, a entrar numa desas tascas das nossas aldeias e a oferecer uma rodada de bom graminês...
«A todos os que na tasca estão.»
Porque esta, é a natureza de Leal Freire, como homem de Riba-Côa.
(cont.)