Quinta-feira, 4 de Novembro de 2010

 

  

                 Na Igreja matriz de Vilar Maior existe uma pia baptismal, oriunda da antiga igreja da Senhora do Castelo, que é intrigante, não tanto pela sua forma em caldeirão, mas pelos símbolos da sua face exterior, que apresenta, num friso superior, a repetição de uma figura humana estilizada, e uma corda em todo o seu perímetro, separando do friso inferior, onde estão representados vários círculos concêntricos repetidos. (fig 1).

                 Este monumento monolítico, que é semelhante a um existente na Igreja da misericórdia de Alfaiates, tem na sua face exterior um conjunto de símbolos que também estavam reproduzidos no primitivo pórtico românico da Igreja da Senhora do Castelo, o que com toda a certeza prova que a sua data é a desta primitiva Igreja, à qual se destinou.

                Sabemos que raros são os fenómenos mágico-religiosos que não implicam, um certo simbolismo. E isto já vem da antiguidade, por exemplo quando certas pedras (de que temos dois exemplos também no museu de Vilar Maior, e outros objectos adquiriram qualidade mágico-religiosa graças a uma teofania (manifestação da divindade), hierofania (Manifestação do sagrado) ou cratofania  mediatas, isto é, através de um simbolismo que lhes confere um valor mágico e religioso.

                Explicando: Um objecto, porque representa o sagrado, torna-se também sagrado, podendo, por isso, ser encarado como uma hierofania, portador de uma realidade trans-espacial, que introduz no mundo profano.

                Umas vezes, esta hierofanização faz-se, como é o caso das referidas pedras do museu de Vilar Maior, de forma pouco transparente, mas outras vezes, como é o caso desta pia baptismal, por símbolos evidentes, que se revelam pela forma dos mesmos, tal como tem sido apreendida pela experiência mágico-religiosa de toda a humanidade, cujas raízes vêm já da simbologia pré-histórica.

               O sentido destes símbolos da pia baptismal pode ser penetrado pelo seu estudo particular como prolongamento de uma hierofania integrada na sacralidade das águas e cosmologias aquáticas que lhe está subjacente, como forma autónoma de revelação que prolonga aquela numa epifania particular, no contexto funcional em que a pia se insere.

               Naturalmente que à primeira vista, a um leigo, este sentido não se manifesta de forma evidente nos símbolos da pia baptismal, que são vistos, pela generalidade das pessoas que a têm examinado, como um conjunto de desenhos curiosos e não como um conjunto interdependente que apresenta uma «linguagem» inacessível a qualquer leigo.

               Mas se falarmos, ainda que de forma resumida, das várias hierofanias aquáticas, como a simbologia da imersão nas águas (baptismo, dilúvio, «Atlântida»), da purificação pela água (baptismo, libações funerárias, banhos rituais, etc), e as relacionarmos com os símbolos da pia baptismal, qualquer pessoa menos atenta perceberá que não são por acaso aquelas suas formas e que as mesmas têm um significado coerente.

              As tradições do dilúvio (comuns a várias civilizações) ligam-se quase todas à ideia de reabsorção da humanidade na água e à instauração de uma nova era, com uma nova humanidade. Nestes mitos neptunianos, as águas precedem toda a criação e reintegram-na periodicamente a fim de a purificar e regenerar; a humanidade desaparece periodicamente no dilúvio ou na inundação por causa dos seus pecados, reaparecendo sob nova forma, retomando o mesmo destino.

               Da mesma forma, O Baptismo significa o apagar do pecado original da primitiva humanidade, filha de Eva, renascendo o neófito como homem da nova era, filho da nova Eva, mãe de Cristo, readquirindo a graça perdida em ordem à sua salvação. Como dizia S. Tomás de Aquino no seu tratado sobre os artigos da fé e sacramentos da Igreja, «Effectus autem Baptismi est remissio culpae originalis et actualis, et etiam totius culpae et poenae, ita quod baptizatis non est aliqua satisfactio iniungenda pro peccatis praeteritis, sed statim morientes post Baptismum introducuntur ad gloriam Dei» [o efeito do baptismo, é a remissão do pecado original actual, e mesmo de toda a falta e toda a pena, de forma que não é preciso fazer nenhuma reparação pelos pecados passados ; mas os que morrerem logo depois do baptismo, são imediatamente introduzidos na glória de Deus].

             Ou seja, quer num caso, que noutro, a função das águas é a de desintegrarem, extinguirem as formas, «lavarem os pecados», purificando e regenerando ao mesmo tempo.

              Este sentido do Baptismo, confirmou-o S. Paulo aos Romanos (6, 3): «Nós todos os que fomos baptizados em Cristo Jesus, é na morte que fomos baptizados» e mais à frente (6,11) conclui: «Também vós, vede como mortos pelo pecado, viveis por Deus em Jesus Cristo nosso Senhor». O que prova -como diz S. Tomás no capítulo 69 da”Summa Teologicae” - que pelo baptismo, o homem morto pela antiguidade do pecado, começa a viver na novidade da graça; e que o baptismo tem o poder de redimir as penas da vida presente, não nesta vida, mas pela libertação dos justos através da ressurreição, «quando os seus corpos mortais se revistam de imortalidade» ( 1 Co.15, 54).

             Não é de espantar portanto, que haja na pia baptismal esta convergência entre O Baptismo e a Teogonia da lua, porque a concepção cíclica do cosmos, a morte e ressurreição, são grandes temas que dominam todas as religiões desde a antiguidade, sendo confirmada desde a pré-histórica, nos mitos lunares com os temas da inundação e dilúvio, porque a lua era desde tempos imemoriais, pelas suas fases, o símbolo do devir rítmico, tanto do fim da vida como de um novo começo, em que o destino de todas as formas, tal como o da vida humana, é de se dissolverem para poderem reaparecer como a nova lua.

            O céu fica escuro durante três noites, mas na quarta noite volta a nascer. E assim, sendo o renascimento uma certeza, a morte não era mais que uma mudança, um renascimento numa outra espécie de «existência».

            A lua era por isso a Teofania que revelava a realidade infinita, tal como O Baptismo a perenidade do espírito, daí que aquela esteja representada, com outros elementos, nos símbolos da pia baptismal de Vilar Maior, como a seguir explicaremos.

            Porque estava sujeita à morte e no entanto continuava imortal e a sua morte nunca era um fim mas um passo para a regeneração, em todos os rituais, símbolos e mitos a lua e o homem aliaram-se num mesmo destino.

            Com efeito, a sedentarização do homem, entre o oitavo e quinto milénio antes de Cristo, mudou profundamente a estrutura social da humanidade e a ligação do homem à terra, de cujo ciclo produtivo dependia a subsistência.

            Então, a Mãe-Terra tornou-se a divindade mais importante. E a Grande-Mãe Terra e a lua interligaram-se através da fertilidade das gentes, dos animais e das colheitas porque ambas simbolizavam a regeneração e o ciclo da vida infinitamente renovado.

             Por exemplo, na Índia, quando havia inundações, a lua era considerada a manifestação da Grande-Mãe, porque governava as águas, sendo ela que fazia reviver a vegetação, a nova humanidade. Ou seja, a Grande-Mãe passou a identificar-se com a Lua.

            Estando inter-ligadas a Grande-Mãe e a Lua, também a representação das duas era a figura feminina, pois a mulher encarna o mistério do nascimento e da renovação do ciclo da vida; ou o chifre de boi, que, pela sua curvatura, lembrava um crescente. O mesmo sucedeu com a sua representação em forma de cobra, que tal como a lua, aparece e desaparece e tem muitos anéis como a lua tem dias, ou por dois olhos, o olho que tudo vê (o olho interior, do espírito), ou ainda por uma série de círculos concêntricos com uma pinta no meio, que pode ter representado o seu seio ou o seu ventre.

            E na Pia baptismal vemos a referida figura feminina estilizada no friso superior, a serpente (sob a forma de corda), a meio, e os tais círculos concêntricos no friso inferior, tudo numa metafísica lunar, que resumidamente explicámos, e cuja linguagem remete para a mudança marcada pela regeneração, numa contraposição entre a luz e a escuridão, como o renascimento espiritual do neófito, numa passagem das trevas do pecado original para a luz da graça divina de que todos recebem a graça e a santidade.

Como dizia S. Agostinho, O Baptismo tem por efeito incorporar os baptizados em Cristo como seus membros. Isto é, da cabeça que é Cristo decorre para todos os seus membros a plenitude da graça da virtude, como diz S. João (1, 16): «Da sua plenitude nós todos recebemos».

            Que estes sinais que identificamos na pia baptismal constituam uma linguagem com um significado, não é de espantar, porque estão na génese também da escrita primitiva que se baseava em sinais que invocavam ideias, com alguns que se podem ver nas duas estelas do Museu de Vilar Maior, os quais, lidos em qualquer idioma, tinham o mesmo significado universal.

            Por exemplo, no Extremo Oriente, a ideografia original desenvolveu-se adaptando uma série de caracteres vinculados a um elemento do pensamento. Era a chamada escrita ideográfica, que tornava possível que os asiáticos, apesar de falarem idiomas diferentes, pudessem entender-se através de uma escrita que obrigava a pensar pela abstracção da palavra. É que a melhor forma de expressar uma ideia é o símbolo e não sons que não correspondem a ideias, tanto mais que muitas vezes as palavras servem antes, não para exprimir, mas para dissimular o pensamento. Por isso a advertência à entrada da escola de Platão: «Ninguém poderá aqui entrar se não conhecer a geometria!» É que, só pelo esforço em dar sentido às figuras mais simples, o espírito pode elevar-se às concepções fundamentais da inteligência humana, elevando-se em plena inteligência, sem que nada lhe seja ditado, encontrando por si mesmo, o sentido de um traço ou de um grafismo simples.

            E aquilo que podemos descobrir sozinhos, em virtude do funcionamento autónomo do nosso entendimento, adquire um carácter de verdade, pelo menos em relação a nós mesmos. Era pois neste sentido mais profundo, de descoberta da ideia pura, não falseada pela expressão verbal, extraída de nós mesmos, que Sócrates dizia: «Conhece-te a ti mesmo!»

           Os símbolos básicos desta escrita, que mais tarde formaram os símbolos da ideografia hermética medieval, eram o círculo, a cruz, o triângulo e o quadrado, que vinculavam as noções pitagóricas da unidade, do binário, ternário e quaternário.

           Reportamo-nos aqui, por não termos espaço para mais, apenas ao círculo visível no friso inferior da pia, para vermos como estão relacionadas com os restantes símbolos da pia, e que já explicámos.

            O círculo, como figura delimitante de um conteúdo interno limitado do ambiente exterior infinito, representava a unidade.

            Explicando melhor: A unidade não pode ser representada, apenas se concebe abstractamente. O símbolo mais perfeito é um ponto matemático, imperceptível, situado na confluência de duas rectas imaginárias, ou no centro de um círculo. È este ponto, materialmente inexistente, que engendra a linha ao deslocar-se no espaço. Nascida do nada, a linha ao avançar de frente, e ao girar sobre si mesma, faz-nos conceber uma superfície que por sua vez se eleva, desce, oscila sobre um dos seus lados para dar a ideia de um sólido tridimensional. Esta geração é intelectual, e o que o espírito abstrai do nada, é a geometria.

            É esta impossibilidade de formarmos uma ideia da unidade que recorremos à figura do círculo, como símbolo tradicional daquilo que não tem princípio nem fim, que os gregos animaram sobre a forma de serpente (a Ouroboros) em anel, mordendo a própria cauda, simbolizando O Todo, a fé na unidade global, do que existe e pode ser concebido, incluindo o próprio Nada. Era o mesmo Tudo-Nada que nas cosmogonias, consistia no caos primitivo mergulhado na homogeneidade, no qual se confunde tudo o que toma forma e qualidades que o distinguem. E aqui, mais uma vez, temos o paralelismo com a Luz purificadora e regeneradora do Baptismo, que dá forma e qualidade (infunde a graça) ao neófito mergulhado na homogeneidade da graça Divina, porque o Baptismo é, antes de mais, um ritual de renascimento e criação.

            Pelo Baptismo o neófito é regenerado para a vida espiritual, que é a vida dos fiéis de Cristo, como diz S. Paulo (Ga. 2, 20): «Eu vivo agora na Luz, eu vivo na fé ao filho de Deus». Só há Luz, só há vida para os membros que estão unidos à cabeça de onde recebem o sentido e o movimento, o que só a incorporação, pelo baptismo, no corpo de Cristo, confere. O Baptismo é pois um acto de criação de um homem novo; do homem membro do corpo de Cristo; uma criação espiritual.

Criar significa tirar do nada. Mas para que algo possa ser criado, é necessário que esse Nada seja, pelo menos, até certo ponto, substancial, mas ainda não susceptível de ser distinguido, isto é, uma Coisa em si, anterior a toda a particularização distintiva.

Como se disse acima, o Baptismo é uma criação espiritual. Dele também resulta, a partir de um ser diminuído pelo pecado original, um ser espiritual, que à semelhança de qualquer criação, que recebe ao mesmo tempo a forma e o efeito desta forma, recebe o efeito da graça do Baptismo que o distingue de todos os outros seres.

            Geometricamente aquele processo de criação a partir do Nada era dado por um ponto que marcava o centro do círculo (como o dos círculos interiores que temos na pia baptismal), muito semelhante ao esquema da fecundação do óvulo. Um centro de onde emanavam ondas circulares, como uma pedra lançada à água, era, como os antigos imaginavam, esta radiação criadora, que partindo do centro, se propagava interminavelmente em todos os sentidos através do espaço, como a luz emanando de uma lâmpada luminosa, mas que na verdade era uma Luz Infinita emanando de centros luminosos multiplicados até ao infinito e sem começo, porque não tem princípio nem fim. È a Luz “primordial” da criação com que é irradiado o neófito pelas águas do Baptismo. O Baptismo cria um homem novo, distinto do antigo pela graça divina com que é infundido, passando a pertencer a uma nova humanidade imaculada de pecado original, isto é, participativa na comunhão plena com Deus.

            Como dizia S. João (1, 14-16): «Nós o vimos, pleno de graça e de verdade, e da sua plenitude nós todos recebemos». Ou seja, ele insinua que Cristo ilumina os baptizados para que eles conheçam a verdade, e que ao infundir-lhes a graça lhes dá a fecundidade das boas obras.

           Daí que, sendo O Baptismo um ritual de regeneração e criação espiritual, o círculo com o pontinho inserido num outro círculo maior, os quais, associados à figura feminina estilizada e à serpente, símbolos antigos lunares da regeneração e criação, interpretados no contexto bíblico que vimos fazendo como simbolizando a nova Eva (mãe de Cristo que venceu a serpente do pecado original, permitindo a redenção espiritual da humanidade), estejam naturalmente lavrados na face exterior da pia baptismal de Vilar Maior.

          De facto, é interessante podermos estabelecer o mesmo paralelismo entre o significado dos símbolos da pia baptismal, com o do ritual do Baptismo, da mesma forma como S. Tomás de Aquino o fazia entre o corpo físico e espiritual, para explicar O Baptismo e os seus efeitos, quando dizia: «Como da cabeça física derivam para os membros as sensações e os movimentos, da mesma forma, da cabeça espiritual, que é Cristo, derivam para os membros o sentimento espiritual, o conhecimento da virtude, e um movimento espiritual, a impulsão da graça».

         É que o efeito essencial do Baptismo é o nascimento para a vida espiritual, tal como a Teofania da lua que figura na pia baptismal, representa a regeneração e criação da vida ciclicamente.

         Um, fala da perenidade da alma, pelo renascimento espiritual; a outra da perenidade da matéria, pela renovação cíclica da natureza. Mas, porque o ponto comum entre eles é a regeneração pela criação, esta serviu na pia baptismal de Vilar Maior, para representar e explicar de foma admirável, o outro.



publicado por Manuel Maria às 01:29 | link do post | comentar

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