foto retirada do blog "Kaos"
A lenda de Ícaro, em que este, com o pai, Dédalo, foge do labirinto do Minotauro, fabricando umas asas de cera, é uma parábola que pode muito bem ser interpretada desta forma:
Deslumbrado pelo esplendor do Sol, desprezando o conselho do pai (a sensatez), esquece os seus limites, subindo acima do que é seguro, caindo desamparado no oceano.
De facto, em várias circunstâncias da vida, encontramos estes casos de ascensão fulgurante, seguida de uma rápida queda, o que, aliás, corresponde ao movimento da parábola.
O sucesso embriagante de Sócrates, a sua inconsciência dos limites éticos, foram prelúdio da sua queda…
E irónico, é esta queda estar também associada, como a de Ícaro, ao “Sol”!
Saibam quantos este público instrumento virem, que aos dez dias do mês de Fevereiro de dois mil e dez, nas casas de Elvas, aonde eu tabelião de ofício, vim a rogo da Exma. República para lhe lançar as minhas notas em testamento, com as testemunhas abaixo assinadas, estando a dita Senhora República enferma de cama, com os assistentes à cabeceira, sendo todos eles pessoas ilustres e conhecidas, e de mim, tabelião, conhecidos e tendo por mim sido perguntado à dita senhora, se estava de seu perfeito juízo, e era de sua livre e espontânea vontade fazer o seu testamento solene, pela dita senhora me foi dito que sim, e para que chegasse ao conhecimento de todos, o desejava fazer público e aberto; pois que pretendia enquanto lhe restasse alento, dispor dos seus bens, e que tomava esta resolução por se achar muito falta de forças e sentir todos os seus membros muito relaxados, pelo que o ditou da forma seguinte, para que se cumprisse tudo o que nele se dispõe, anulando, derrogando e dando sem efeito os que anteriormente tenha feito:
Em primeiro lugar declara, ser filha legítima de pais direitos, sem aleijões solapapos, e se chamava seu pai Afonso Costa, por antenomásia o “mata-frades”, e sua mãe Carbonária, e deste matrimónio houve três filhas, o mais velha que era sua irmã, morreu de bexigas doidas aos dezasseis anos, e que se chamava primeira República, a do meio, também sua irmã, que morreu de uma queda de cadeira aos sessenta e quatro, e se chamava segunda República, todas elas sem dinastia conhecida. Declara ainda que tem a idade de noventa e nove anos, feitos pelas vindimas, e é natural de Aljubarrota, tetraneta da padeira, de quem herdou as pás do forno, umas herdades na Serra da Estrela, uma terra de semeadura no Vimioso, estas casas novas em Elvas, com portas para o céu e telhado ladrilhado e junto às mesmas um moinho, que mói toda a qualidade de grão. Possui mais ainda um prédio rústico na Vila do Sabugal, que paga de sisa mil reis anuais e tem de pensão dois frangos pelo Carnaval aos frades de Santa Maria de Aguiar. É ainda senhora e possuidora na Vila de Idanha, dum olival, vinha e um mato que ainda não foi cortado, e mais a adega da vinha, um lagar de azeite e umas casa junto à adega, com pasto para animais de dois pés e para os de quatro pés um vasto campo de restolho. Declara que tudo são bens livres, e em muito bom estado, porque nunca tiveram outro senhorio, do tudo o que vai testar com a mobília de sua casa, peças de oiro, diamantes, brilhantes, esmeraldas, pedras, pedregulhos, bens móveis, loiças, cacos, tarecos, que tudo tem serventia.
Nomeia por seu testamenteiro, ao José de Sousa, seu vizinho lá da serra, ao qual, na falta de herdeiros forçados, institui por herdeiro de metade dos seus bens. Em segundo lugar, a Teixeira dos Santos, compadre e parceiro de bisca daquele. Ao primeiro fica a disposição do seu funeral, e o segundo receberá os cabidos do primeiro, que são muito amigos de panela e tigela.
Deixa ao Pinto de Portovelha o bordão de seu pai, para com ele sacudir tudo o que for empenado; porque enquanto dá neles não dá no chão, nem no sobrado. Ao Lacão da taberna, deixa o moinho, para ir picando as mós, e ter cuidado nas velas, tendo tudo em boa ordem, poderá receber o produto do que moer. Ao primeiro testamenteiro, em paga do seu trabalho, deixa o prédio da Idanha, que desde logo possuirá, bem entendido, com as condições seguintes: Será obrigado, para exorcizar as pragas que ali grassaram, mandando amassar um bolo de vinte alqueires, coberto de maçã, para fazer uma fogaça. Ao segundo testamenteiro, deixa as ditas pás do forno, que fizeram proezas em Aljubarrota, para virar o bolo, e depois de cosido o porá num andor, e convidando quem nele pegue, para correr a vila.
Deixa o lugar de azeite, as casas novas, a adega, o pasto, para lá irem pastar todos os políticos de Lisboa, que querem comer sem trabalhar, nem servir o Estado, e caso ainda não fiquem satisfeitos, deixa também o campo junto.
Por fim, deixa todo o remanescente, que ficar ao seu herdeiro e testamenteiro Teixeira dos Santos, bens móveis, loiça, talões da dívida pública, promissórias, papéis, papelões, cobre. Latão e tudo quanto couber em mão, incluindo o bacio, a vassoura do mesmo, e um baraço de cordas, para que de tudo faça leilão e no fim se enforque.
Que todas estas disposições faz com as condições e seguintes ónus para os seus testamenteiros:
1 - Amortizem todos os papéis da dívida pública, em que a dita senhora está empenhada.
2 - Paguem igualmente os milhões da dívida pública que eles mesmos contraíram, para cujo fim deixa as ilhas da Madeira e dos Açores, que poderão servir-lhes de hipoteca.
3 - Mandem rezar trintário anual de sufrágio pelas duas manas, Primeira e Segunda Repúblicas.
E vendo eu que a dita senhora República estava mesmo a finar-se, e que já tinha dado dois arranques mortais, por mim, tabelião, lhe foi perguntado se queria fazer mais alguma disposição, e então, a Exma. senhora, moribunda testadora, disse que para os seus grandes pecados lhe serem perdoados, livre e espontaneamente perdoava todos os agravos, enxovalhos, injúrias, contra ela, excelentíssima testadora, feitos, e entrando neste meio tempo um excelentíssimo senhor, lhe disse que se vinha despedir dela para sempre e que bem sabia os serviços que lhe havia feito, esperando do seu arrependimento que lhe deixasse ficar qualquer coisa útil, quando não fosse no continente, ao menos nas desertas, ao que a Excelentíssima testadora anuiu, e dando-lhe um ronco, disse que lhe iam esquecendo uns quantos bastardos a quem deixava ficar, para viverem, e dividirem entre si, também a ilha das Berlengas.
Tudo o mais que no continente tem, deixa hipotecado ao capital internacional.
A final, disse que queria ser enterrada sem pompa nem grandeza, e no caso de lhe quererem fazer as honras militares, lhes rogava não mandarem dar descargas, para não atemorizarem a vizinhança, mas que desejava ir de caixão à cova, e que era de sua última vontade que os seus testamenteiros cumprissem e fizessem cumprir esta sua última e espontânea disposição.
Saibam quantos o presente testamento virem, que atestando eu, Tabelião de Notas e defeitos, insigne não só nas faculdades de toda a lei, literatura, física e artes mecânicas, que defeito algum acho na feitura deste testamento, tendo feito à testadora as perguntas do estilo, nele não há qualquer emenda ou entrelinha, podendo sem receio assinarem as testemunhas presentes, sendo a primeira, pela sua dignidade, o barbeiro desta cidade, dia e era ut supra.
João das Notas
(Tabelião)
José De Sousa – barbeiro da cidade
Pedro Beiça-Grande – mimo de ofício
Responso por alma da testadora:
Libera mé Domine, anima mea, e dignatus aplacare, contra mé ila periodiqueira.
Surge Janeiro frio e pardacento,
Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em São bento
E o Decreto da fome é publicado.
Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.
E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,
Também faz o pequeno “sacrifício”
De trinta contos – só! – por seu ofício
Receber, a bem dele... e da nação.
Soneto (quase) inédito) de José Régio
- Em memória de Aurélio Cunha Bengala