Quando subia para o tribunal cruzei-me com duas senhoras, que desciam o largo de braço dado. Trata-se de pessoas de avançada idade, que presumo irmãs, porque as vejo sempre juntas, anacronicamente vestidas à anos sessenta, com chapéu na cabeça e luvas de pelica calçadas.
Depois, quando fui tirar fotocópias à papelaria, estavam as duas na fila do registo do euro milhões conferindo os boletins da semana anterior e registando novos boletins. «É um ritual semanal, disse-me a funcionária, no qual gastam mais de trinta euros.»
Não pude deixar de sorrir; o optimismo de duas velhinhas que já pouco têm a esperar da vida, ainda sonhando com o euro milhões.
Subi ao primeiro andar da sala de audiências e, imbuído daquele espírito positivo, mandei às malvas o meu estado deprimido pelas notícias da manhã sobre a crise, e abri assim as contra alegações ao pedido de condenação do Ministério Público:
- Com o devido respeito, meritíssima, as coisas não são tão feias como a senhora procuradora as pinta!
E discorri leve e animadamente durante uns minutos vincando a justiça da minha causa, atrevendo-me a pedir, no fim, a absolvição da arguida.
A juíza, sorriu, complacente. E tive a certeza de que, apesar das circunstâncias, foram umas belas alegações!
Vinte anos de mina
escavando pirite
Capacete na cabeça
galochas calçadas
mês a meio,
dinheiro em falta.
À saída do turno
pára no Álvaro
Pede cigarros,
bebe duas minis,
e compra fiados,
cem gramas de fome,
meio litro de miséria.
“António Grande”
vinte anos de mina,
conta pendurada
na venda do Inferno.
Começou por dizer que «gostava de malhar em toda esquerda»; a «proletária» e a «chique». Implicitamente também gostaria de malhar no Manuel Alegre, que alinha com a “esquerda chique”; depois veio “corrigir o tiro”, dizendo que ao pé deste era insignificante. O inusitado mea culpa de Santos Silva, cá para mim, tem uma explicação:
Nos passos perdidos da Assembleia, Santos Silva é abruptamente interpelado por Alegre, que agarrando-o pelos colarinhos, lhe grita:
-Retire já o que disse!
Santos Silva, temeroso, balbuciou:
- Camarada… Mas camarada…
-Retire as palavras – e apertando-lhe o gasganete - retire!
Santos Silva, sufocando, esganiçou:
-Por quem é, camarada – e afrouxando o garrote que o sufocava - não queria ofender…
-Você malha em quem? – e sacudindo-o - malha em quem? Diga lá agora?!
-Eu explico…
-As explicações são estas; convoca a imprensa e diz: «declaro que ao pé do Alegre, não sou ninguém».
- Então, camarada… por quem é; isso era dar o dito por não dito…
-Ou isso, ou um olho negro; escolha!
Anémico, miudinho, alimentado a queques, Santos Silva é o tipo de homem que tomba com uma rabanada de vento. Uma palmadinha amiga nas costas e perde os sentidos; vai-se-lhe o apetite, mirra, cai à cama e, daí a semanas, morre de tísica. Em suma; se uma carícia afável na face o põe a caldos de galinha, já podem vocês imaginar o efeito de um murro bem assente no toutiço.
Aí têm vocês pois, a razão porque, anunciou solenemente aos jornalistas:
-Ao pé do Manuel Alegre, meus senhores, sou um pigmeu!
Incrédulos, estes ainda confirmaram:
-Não estará a ironizar?
E ele, peremptório, para que não houvesse dúvida:
-Não, não estou!
Aquilo foi medo!
Resta saber do quê...
Conhecia-a há muito tempo.
Vira-a pela primeira vez à saída da missa
E gostou logo dela;
Mais uma saída, encontrou-a no comércio,
Depois a meio da semana, na padaria; pediu-lhe namoro, ela disse que sim,
Se os pais consentissem. Vieram a seguir os beijos ao portão.
Depois veio aquela coisa difícil, aquele momento chato de que nenhum homem gosta.
Falou aos pais dela; que sim senhor, que era moço de respeito e bom rapaz; ela esperava-o lá fora, no quintal. Abraçaram-se. O resto, adivinham como é:
Horas a fio, na salinha da costura; ela: "bordei mais um paninho do enxoval; queres ver?” Até que um dia, não suportando mais a espera, ele mordiscando-lhe a orelha, lhe segredou o pedido.
E ela, afastando-o, ciciou: "aqui não"...
"aqui não"...
Respeitai a adolescência
Cabos da Guarda Fiscal!
Deus que fez homens morenos
Não lhes pode querer mal.
Olhai para as suas mãos:
-Dedos de púrpura e seda…
-Bandidos? – Porém, cristãos
Que se benzem na Alameda…
Ai! Quantos assim se benzeram
Porque, sem dó, os matais!
E tantos não conheceram
Nem sequer os próprios Pais!
Filhos das ervas… No entanto,
Deram fruto; deram flor.
Ó milagre desse espanto
De sonho, seja onde for!
Cada passo, ao vento e à neve,
Mede cem léguas de medo,
E a sombra, apenas, se atreve
A, de penedo em penedo,
Sustendo a respiração,
Ir, sozinha, àquela hora,
Onde aqueles homens vão,
Enquanto a morte os namora…
E, no relógio, os ponteiros
Dão, sempre o mesmo sinal:
-De um lado, carabineiros;
Do outro, a Guarda Fiscal!
Pedro Homem de Mello