Ela esperou, esperou e tornou esperar à janela que dava para o largo. As brasas a morrerem na lareira, as febras em "vinha de alhos", e dele, nem rasto! A mãe espicaçou-a da cozinha: “ Se aquilo era já assim antes de casar, o que seria depois!" E farta de esperar, resolveu que ele precisava era de uma boa lição. Quando chegasse para jantar, veria as persianas corridas, as luzes apagadas e havia de bater com o nariz no portão. Depois pensou que devia ter havido algum contratempo: Talvez a mãe o não deixasse vir; não arranjou boleia; entreteu-se nos copos… sei lá!
A Noite estava amena. De longe vinha o som nítido da música do arraial. E ela que ainda queria dar um pezinho de dança! A mãe espicaçou-a de novo: “ Eu não te avisei? Ele não é de fiar!” O relógio do corredor bateu as 22. Na televisão começou o genérico do telejornal. Esperou ainda até ao fecho do noticiário. Aquilo era demais! A mãe, da cozinha, insistiu “que fosse para dentro, que àquelas horas ele já não vinha!” Ela fechou a janela, correu as persianas e foi-se deitar. Ná, ele vai ver como é!
Minutos depois, o roncar de uma moto quebrou o silêncio do largo. A seguir silêncio novamente. Passos... O cão latiu. Depois bateram ao portão. Ela levantou-se, afastou ligeiramente a persiana e espreitou por um canto da janela, às escuras. Era ele que vinha com o primo. A mãe perguntou da cozinha ”se queria que abrisse”. E ela do quarto, voltando a enfiar-se nos lençóis: Não; ele que vá para o raio que o parta!
O Barbeiro escanhoando o pescoço do cliente:
-Dizem que tens uma prima casadoira; é verdade, Jorge?
-Sim, Barbosa.
Limpando-lhe o queixo à toalha:
-E que além de bonita e prendada, é certinha…
-Sim, Barbosa.
Despedindo-se:
-E recomendas-me, Jorge?
-Claro, Barbosa; com ela podes dormir tranquilo!
Com duas palmadinhas nas bochechas para avivar as cores:
- Impecável!
I
Há tempos, no jardim central de Pedrógão Grande, em frente do Lar da Santa Casa, três velhotes conversavam sentados num dos bancos:
-Estou mesmo mal – dizia o primeiro- fui outro dia ao médico e ele receitou-me 2.000$00 de medicamentos!
-Isso não é nada –contrapôs o segundo- eu estou bem pior; também fui ao médico e ele receitou-me 5.000$00 de medicamentos!
- Ui… –rematou o terceiro- ainda vocês se queixam… Também fui ao médico e ele não me receitou nada… Já estou completamente desenganado!
II
A Mariana, que tem uns olhos azuis de morrer, é desembaraçada e se expressa bem para a idade, chegando outro dia do infantário, virou-se para a mãe:
-Sabes, mãe; já tenho namorado.
-Ah sim?
-Sim…Chama-se Miguel
E nem dando tempo à mãe para comentar, atalhou imediatamente:
-Posso trazê-lo cá para casa?
Afinal
Foi boato
Espalhado aos quatro ventos...
Mariquinhas
Afinal não casou.
Não teve
vestido de tafetá,
noivo de casaca,
bolo de três andares
com recheio de amêndoa
Nem convidados vestidos
a perceito.
Mariquinhas não casou!
Mas
Exibe de facto na mão esquerda
um vistoso anel
para que todos julguem
que finalmente
desencalhou.
Acorda o campo molhado
Da orvalhada matinal
Que o sol dissipa.
O dia nasce radioso. Mais um dia
Em que o sol levanta do restolho com as perdizes
Voando sobre a copa dos freixos,
No limite do rio.
A minha alma hoje não voará para muito longe.
Ficará aqui na espessura do salgueiral
Onde veio amarrar uma toutinegra.
È aí que elas cantam!
E a minha alma entende-as como ninguém!
Oh, se entende!
Orvalhada, sol, freixos, rio, salgueiral, toutinegra,
Encantos dissimulados na paisagem
Que o sol matinal revela.
E uma toutinegra canta: Sê, sê, sê…
Responde outra, duas galhas mais acima:
Livre, livre, livre…
Está agora nos escaparates um livro "Marquês de Soveral, Homem do Douro e do Mundo" estadista dos últimos tempos da monarquia, embaixador em Inglaterra, intimo de Eduardo VII, do grupo "Os Vencidos da Vida" com Eça, Ramalho Ortigão e outros, Ministro dos Negócios Estrangeiros, também envolvido no escândalo dos adiantamentos à casa real e das despesas confidenciais do ministério, que precipitaram a queda da monarquia.
Ao contrário de muitos que comeram às mãos da monarquia e “borregaram” cobardemente no 5 de Outubro, Soveral, manteve-se indefectível da monarquia., acompanhando o último rei no exílio de Inglaterra, onde timha muitos amigos.
Ainda não li o livro, mas deixo aqui um episódio que demonstra bem o carácter deste homem e que vem nas “memórias” do Raul Brandão:
Logo após a implantação da República, estava o Soveral no seu escritório, quando lhe entra, porta dentro o Malaquias, comandante da Guarda Municipal, que se vinha justificar a rendição da guarda a 5 de Outubro:
- Que querias que fizesse…diz-me tu? Se me morreram trinta homens…todos varados pela metralha dos revoltosos!
-Pois fica sabendo que eram os únicos homens de coragem que tinha a guarda! – Respondeu secamente Soveral, recusando-lhe o aperto de mão.
-Então não temos mais nada a dizer um ao outro…
-Pois não… Vai beber da merda!
E o Malaquias saiu com o rabinho entre as pernas.
Precisaríamos de ser ainda mais simples,
Tão simples que pudéssemos entrar
Na simplicidade do vento,
Da poalha do sol,
Da roupa estendida a arquejar ao vento.
Não há desespero no mundo,
Nem esperança.
Há apenas a simplicidade do vento,
Do sol,
Da roupa,
Da corda;
Há apenas a simplicidade da água,
Os seus vergões de mulher grávida;
Há apenas a água,
O calhau,
A simples necessidade de nascer e morrer.
Seria necessário poder entrar sem estremecer
Nas coisas
Como as coisas.
Porquê este frenesim no nosso coração?
Porquê este eterno enervamento dos nossos nervos?
O pensamento nada constrói. O sentimento esgota-nos.
Apertamos os dentes e sangramos
E nada criamos.
Dedilhamos as coisas
Como uma chuva em cada gota
Tivesse medo de se magoar.
Nós somos os pequenos frenéticos do mundo.
Nós não entramos.
Jean Rousselot
Há meses postei aqui um texto em que deitava abaixo a mediocridade de muita poesia que se publica e para o qual remeto, algures neste blogue, por actual, face ao que vou dizer a seguir.
No “Correio da Manhã” de hoje vem um artigo de página sobre o novo livro de Paulo Teixeira Pinto, novel e celebrado poeta e pintor do burgo; um dois em um, que não faz por menos, poeta e pintor… um génio em duplicado!
O senhor é mais conhecido por ter comprado a “Guimarães Editores” com a choruda indemnização que recebeu quando saiu do “BCP”.
Publicou também um livro de poesia e expôs uns quadros, que vi de relance numa reportagem de TV.
Agora reincide em novo livro de poesia que traz pérolas de lirismo como esta:
«A mais
Sublime
E surpreendente
De entre todas
As palavras
Jamais ditas
Foi pronunciada
Uma só vez
Uma só vez
E calou-se
Na desventurada
Garganta
Daquele
Ali.»
Sublime! Magnífico! Trata-se sem dúvida, a crer no destaque de caixa que mereceu no citado artigo, de um texto marcante da nossa literatura, mesmo ao mais desatento leitor. Daí o destaque, presumo!
De facto é um texto que prima pela subtileza, sensibilidade, lirismo, artifícios poéticos, figuras de estilo! Em suma, um exemplo consumado do que é a verdadeira linguagem poética!
Pelo que me toca, agradeço pois a Paulo Teixeira Pinto ter dado à estampa tão magnífico texto e ao “Correio da Manhã” por me ter proporcionado a oportunidade de lê-lo.
Mas fico a saber pelo citado artigo, que terei mais oportunidades de me deleitar com tão magnífica poesia: Paulo Teixeira Pinto promete mais livros e mais exposições, porque já «tirou dois dias na semana» para se dedicar inteiramente «à pintura e à escrita». O “poeta-pintor” sacrifica a sua dourada reforma pela arte, por nós, leitores! Pelo que me cabe, registo o gesto estóico!
E confidencia o “poeta-pintor” que ainda «tem muitos textos na gaveta» que escreveu nos «últimos dez anos». São uma verdadeira gruta de Alibábá as gavetas de Paulo Teixeira Pinto! Um manancial inesgotável de talento e inspiração que nos levará ao limbo da poesia! Fica a ameaça; cuidem-se, caros leitores!
Arre! Que estopada! É bem verdade que «presunção e água benta, cada um toma a que quer!». E este Paulo Teixeira Pinto tem das duas que sobre! Se o que ele escreve ou pinta é poesia ou arte, vou já «ali» afogar-me no Lis de caminho! Perante tamanho génio, calo-me para sempre e ninguém mais me porá a vista em cima, juro!
Mas antes, meu caro Paulo Teixeira Pinto… aqui fica um conselho, para se num feliz acaso, esta diatribe lhe chegar por entreposta pessoa; e peço-lhe que, na maior humildade e resignação cristã o aceite como uma espécie de orientação espiritual do seu antigo confessor na Opus Dei:
Faça como a «desventurada garganta» do seu “poema”; não pronuncie nem escreva uma palavra mais, não estrague nenhuma tela mais… «cale» a sua «desventurada» pena e pouse o seu desajeitado pincel para sempre… «ali», Já!
É que, ao contrário das boas críticas e dos críticos, o talento e sensibilidade artística ainda não se compram nem se vendem, meu caro Paulo Teixeira Pinto!
Esta noite desce
Para adormecer a terra
Na frescura
Da orvalhada.
A sombra estendendo-se sobre os cabeços, um pouco acima das casas,
Das arvores,
Como uma manta sobre um corpo
Fatigado
A pegar no sono.
A mancha azul e sombria a erguer-se
Para nos alcançar no balcão
E tu apanhando a roupa do arame:
-Anda, vem para dentro...
E eu:
-As abóboras, não se apanham?
E tu:
-Não… amanhã também é dia…
Nós entrando
E lá fora a lua
Azul.
Azul...
Completamente
Azul.
Vivia numa casa com um pequeno quintal e era uma gata riscada, de pelo curto, indolente; e por isso a dona a baptizou de “papa hóstias”, alcunha se dá na região às pessoas indolentes.
Sobre o muro do quintal onde vivia a gata “papa-hóstias”, uma nogueira estendia os seus ramos, cujas nozes amarelecidas caíam na estrada. Os carros ao passarem, escachavam a casca, expondo o miolo.
As galinhas da quinta, com o tempo, aprenderam a associar o roncar dos carros ao barulho da noz e corriam a disputar o fruto.
Só que às vezes passava um segundo carro, que elas, por se dar o caso de serem bichos fracos de cabaça, não eram capazes de associar à queda da noz e sucedia serem atropeladas com frequência.
Pois na quinta vivia também uma galinha, que no seu desvelo de mãe, resistiu estoicamente semanas no choco à disputa das nozes.
Mas um dia, constatando que os filhos estavam a eclodir, não resistiu ao apelo da noz, em tão má hora, que acabou atropelada pelo segundo carro que passava.
Os pintos vieram ao mundo órfãos; o primeiro ser que viram foi a gata “papa- hóstias”, que em paço indolente atravessava o pátio para o borralho da lareira.
Seguindo o seu instinto natural, os pequenos seres, em fila, seguiram a gata “papa-hóstias”, que, contrariada, se viu adoptada por tão inusitada prole.
Nos tempos seguintes, a gata “papa-hóstias” foi-se resignando a este seu novo papel e gradualmente aos tiques nervosos de galináceo, cuidando com desvelo da sua ninhada.
Era vela, por exemplo, atravessar o pátio em diagonal numa correria doida com as outras galinhas e a pôr-se a esgravatar o chão. Passou também preferir o desconforto do galinheiro ao quentinho do borralho.
O tempo passou; veio um dia em que os pintos se tornaram vistosos frangos e também o dia da festa da padroeira da vila.
A dona de casa que tinha favores a pagar ao presidente da junta, ao prior, ao professor, ao advogado, ao médico e o sargento da guarda, resolveu presenteá-los com uma tortilha de frango.
E foi assim que a gata “papa-hóstias” viu o cutelo ceifar a sua prole. Enroscou-se num canto do galinheiro, recusando todos os petiscos com que a dona a quis comprar.
E jurou nunca mais por um único ovo na vida!