Cinco da tarde. Rapidamente se vai o dia.
Há dez minutos que acendi o cachimbo
E me sentei nas escadas. E aqui fiquei sentado
A ver a sombra do portão projectada no muro,
E os pardais a pousarem na figueira.
Há dez minutos que acendi o cachimbo
E a nuvem azul entra pela janela da sala
Impregnado a casa no seu aroma adocicado
O cheiro do passado – que doce cheiro!
De quando a mãe arreliada com o fumo
Protestava lá de dentro comigo.
Cinco e vinte. Cantam ainda os tordos no restolho.
Também eles em breve se calarão
E o dia adormecerá com eles.
Cinco e meia – a sombra traga o muro.
Seis em ponto – passa um bando de perdizes.
Seis e dez – A sombra galga as escadas
E traz o frio rumor da noite!
Silêncio…
Hoje não me apetece fazer nada.
É coisa importante não se fazer nada,
Por isso vou estender-me ao sol,
Nesta moleza de barriga cheia
A digerir o almoço.
Hoje não me apetece fazer nada
Nada mesmo…
Irei muito simplesmente alisar o pêlo,
Afiar os bigodes,
E deitar-me na varanda do quarto
A sonhar com a siameza do 2.º frente.
Hoje não vou fazer nada,
Nada mesmo…
Nos primórdios da nossa nacionalidade houve, desde o extremo da Aquitânia à nossa costa atlântica do Algarve uma língua comum, o romance, que teve por base o Romano-rústico falado, e que predominou fundamentalmente nos países de denominação visigótica, que absorveriam muitas das instituições romanas, entre as quais a língua, o direito e a organização administrativa.
Desse tronco comum, derivou o Provençal, que morreu à nascença; o Aragonês que morreu na infância e o Português e o Castelhano que atingiram a maturidade. Desde o início esta língua romance se exprimiu de duas formas: uma escrita, outra oral. A forma escrita, abstraindo dos documentos administrativos, que eram em latim tableónico, desenvolveu-se sob a forma poética e, como demonstram os primitivos cancioneiros, caracterizava-se num trovar com requebros cortesãos e palacianos. A forma oral, no seguimento da tradição das runas célticas, desenvolveu-se num trovar do povo rude, singelo e original, distinto daquele.
Estes trovares antigos do povo, que nos passaram pela tradição oral, é que são a origem primitiva da nossa poesia nacional, primeiro em romanço no período das taifas e depois, em galaico nalguma da nossa singular poesia trovadoresca e nas cantigas de Santa Maria de Afonso X, reaparecendo fugazmente no séc. XVI nas líricas de Bernardim e de Camões e depois, finalmente, no sec. XIX com o romantismo. Esta é a boa poesia escrita; porque sempre teve raízes no património cultural, étnico-linguístico comum que nos fez nação. Qualquer poesia sem este húmus feito da riqueza étnico-cultural do povo, é anémica! É como meter capilé p’rás veias!
Pois no tal género narrativo popular de que falava e que influenciou a nossa boa poesia escrita, havia três espécies: O romance, a xácara e o solau. No romance predominava a forma épica e contava e cantava o poeta; na xácara prevalecia a forma dramática e falavam essencialmente as personagens; o solau, mais plangente e lírico, lamentava mais que contava e tinha mais carpir.
Foi este género de poesia popular que influenciou o nosso Bernardim Ribeiro ( também ele descendente de judeus e originário da pequena Vila de Torrão, no Alentejo, e músico ) e lhe inspirou lindíssimos pastorais, baladas, madrigais e éclogas sob a forma de enigmas e alegorias, quando se apaixonou, num amor ao que parece correspondido, pelos olhos verdes e inacessíveis da bela Infanta D. Beatriz. A bela Infanta, casou com o Duque de Sabóia, a quem fora prometida, emigrando; e o poeta reuniu todos estes poemas numa novela autobiográfica, um verdadeiro "roman à clef" a que sintomaticamente chamou “As Saudades” e que é mais conhecido pelo "A menina e Moça de Bernardim".
Um pequeno trecho deste livro é um “cantar” em modo de solau, em que a boa ama da Infanta, conhecedora da paixão entre esta e Bernardim, lamenta a má ventura, que desde a nascença tem perseguido a sua querida menina. Aqui fica o trecho. Deliciem-se, porque aqui estão também, sob a forma de solau, para quem conseguir ver, as origens remotas do fado:
«Pensando-vos estou, filha,
Vossa mãe me está lembrando;
Enchem-me os olhos de água,
Nela vos estou lavando.
Nasceste, filha, entre mágoa;
Pêra bem ainda vos seja!
Pois em vosso nascimento
Fortuna vos houve inveja.
Morto era o contentamento
Nenhuma alegria ouvistes;
Vossa mãe era finada,
Nós outros éramos tristes.(1)
Nada em dor, em dor criada,
Não sei onde isto há-de ir ter:
Vejo-vos, filha, fermosa,
Com olhos verdes crescer.
Não era esta graça vossa
Pêra nascer em desterro;
Mas haja a desventura
Que pôs mais nisto que erro!
Tinha aqui sua sepultura
Vossa mãe, e a mágoa nós!
Não éreis vós, filha, não
Pêro morreram por vós.
Não ouvem fados razão
Nem se consentem rogar;
De vosso pai hei mor dó,
Que de si se há-de queixar.(2)
Eu vos ouvi a vós só
Primeiro que outrem ninguém;
Não fôreis vós se eu não fora;
Não sei se me fiz mal se bem.(3)
Mas não pode ser, senhora,
Pêra mal nenhum nascerdes,
Com esse riso gracioso
Que tendes sob olhos verdes.(4)
Conforto, mas duvidoso,
Me é este que tomo assi’!
Deus vos dê melhor ventura
Do que tiveste ‘té aqui
A Dita (5) e a Fermosura,
Dizem patranhas antigas,
Que pelejaram um dia,
Sendo dantes muito amigas(6).»
Depois desta pequena lição, que ninguém me pediu, sobre o solau, Bernardim e as possíveis origens do fado, vou – como uma vez disse o Vasco Polido Valente ao José António Saraiva- pregar para outra freguesia, que aqui ninguém me paga para isto!
Bom fim de semana; e não se estraguem!
(1) Alusão à morte da mãe da infanta, no parto.
(2) Alusão ao casamento contratado, da infanta com o Duque de Sabóia.
(3) Alusão ao amor da ama pela Infanta, mas também metáfora do amor de Bernardim por esta. As palavras da ama são, sob disfarce, as de Bernardim.
(4) Aqui Bernardim revela-se: É ele que fala pela boca da ama.
(5) Sorte
(6) Interpretação literal: A Infanta é formosa e a beleza atrai o azar. Beleza e sorte nunca andam juntas na mesma pessoa. Interpretação ontológica: Era demasiada sorte, tanta beleza só para ele, Bernardim; a sorte e a formosura juntas, acabam, tarde ou cedo, em azar; está escrito no destino… no “fado”… já o “diziam patranhas antigas”!
«Vilar Maior, 11 de Dezembro de 1977
Queridos e saudosos filhos e netinhos;
Em primeiro de tudo em resposta à vossa estimada carta esperamos que esta vos encontre gozando muita saúde paz e alegria, são os nossos desejos.
Nós, como é costume e Nosso Senhor quer. O recado que mandaste já foi entregue e já deves receber breve se Deus quiser.
O enchido é que custa muito a secar porque chove muito. A ribeira anda nas hortas. Na vossa casa lá pus baldes e alguidares; tudo está bem.
O que desejamos é que tenhais a consoada alegre e Natal feliz e o Menino Jesus que venha nascer no coração de todos e o ano novo cheio de bênçãos do céu.
Por hoje mais nada. Adeus até à vossa resposta. Adeus; muitos abraços e beijos para todos, destes vossos pais que muito vos querem e desejam o vosso bem. Adeus e mil saudades. Adeus.
O João já está ao pé de vós ou não?
Cumprimentos de quem escreve»*
* Nas aldeias do interior rural, quase ninguém sabia ler. Havia sempre uma pessoa, rudimentarmente instruída nas letras, que percorria as casas dos lavradores para ler as cartas que chegavam no correio e escrever outras, que invariavelmente eram ditadas. Em Vilar Maior, quem desempenhou muitos anos essa função de ler e escrever cartas ditadas, foi a Ti Elvira Polónia. Supra uma carta ditada pelos meus avós à Elvira Polónia, que por sua vez a passou ao papel, fez agora trinta anos. Está explicado o “cumprimentos de quem escreve”.
Vozes ideais e amadas
Daqueles que morreram, e daqueles que são
Para nós perdidos como mortos.
Às vezes nos nossos sonhos falam;
Às vezes no pensamento as ouve a mente.
E como com o seu som por um momento regressam
Sons da primeira poesia da nossa vida-
Qual música, à noite, longínqua, que se apaga.
Konstandinos Kavafis
Hoje foi nomeado, como há muito se aguardava, para a arquidiocese de Évora (o segundo a par do arcebispado de Braga em dignidade na hierarquia católica portuguesa) o Professor Doutor José Sanches Alves, meu antigo mestre de Antropologia Biológica e também meu patrício de Riba Côa, o que é uma dupla alegria.
Trata-se de um filho de modestos agricultores da Lageosa da Raia, que sendo Doutorado em Psicologia e professor da Universidade de Évora e do Instituto Superior de Teologia de Évora durante anos, sempre foi inteiramente fiel às suas origens humildes e pessoa acessível e tolerante.
Além de mestre que muito admirei, foi a pessoa que teve comigo a conversa decisiva e aberta que me levou a mudar de vocação e ingressar em Direito. Foi portanto uma das pessoas importantes na minha vida.
Aqui lhe deixo um forte abraço transcudano e votos de felicidades para o seu novo cargo.
O Ti João Rito do Soito, velho contrabandista (e também descendente de antigos judeus que se fixaram na fronteira portuguesa na sequência do édito dos Reis Católicos), é um homem simples, de coração na boca e genuíno, como o é, de resto, toda a gente da nossa “raia”.
Dele contam-se muitas histórias divertidas. Uma das que ficou célebre, foi quando o Tony Carreira foi actuar ao Soito e andando perdido, procurou ao Ti João Rito onde era o campo das festas.
-Não me diga -retorquiu-lhe este- que vossemecê também vai ver aquele paneleiro do Tony Carreira…
E o Tony Carreira, contam os presentes, atordoado com a inusitada resposta, engoliu em seco e teve que se “desenrascar” sozinho…
«Nós todos, inclusive os expostos, temos todos as nossas árvores genealógicas do mesmo tamanho. Lá no tamanho das árvores somos todos iguais. Mas é precisamente nas árvores que está a diferença. Vê-se perfeitamente que a cada um aconteceu qualquer coisa que se não passou com mais ninguém. E aconteceu-nos antes ainda de nós termos nascido. É a árvore genealógica. Esse segredo do nosso segredo. Esse mistério do nosso mistério. Nós somos hoje o último fruto dessa árvore secular, secularmente secular! O fruto! Mas por mais genuíno que seja o fruto da sua árvore, esta nasce tão incomparavelmente anterior à Bíblia que não se vê da árvore senão o que está mesmo ao pé do fruto, e até isto quase sempre se ignora e muitas vezes mentiu-se. Contudo o fruto nasceu. E o que é o nosso instinto senão uma memória que é a nossa e que já nos pertencia antes de termos nascido? E o nosso feitio moral e físico? E a nossa vontade? E a nossa tendência? E a nossa vocação? Não vem tudo isto de longe, de tão longe que a memória viva não atinge, mas que apesar disso vem dirigindo-se para cada um de nós através de séculos e séculos, desencontrados, de altos e baixos, como se quis ou pôde ser? Não! Não somos um fruto qualquer, somos qualquer outro fruto.
Claro está que todo aquele que tenha a veleidade de querer servir-se da sua árvore genealógica como de uma estatística para deduzir-se não faz senão aleijar-se. Como antes se disse, é completamente impossível conhecer inteira uma árvore genealógica; o que pode é cada um possuí-la toda no seu carácter. A árvore genealógica não funciona como ciência. É mesmo o contrário de ciência: mistério! Um mistério que se espelha só em cada um de nós! Um verdadeiro mistério humano, que ultrapassa a sociedade e a ciência, que respira apenas ar de Arte e de Religião.» (Almada Negreiros: Obras completas, Editorial Estampa, 2, pp. 17-17).
Assumi as rízes
E os frutos.
Cansei-me de ser fonte!
Agora sou um velho carvalho
Que dá sombra ao lameiro.
Cansei-me de ser fonte...
Ia eu pela Rua de Cima e ao chegar à esquina do Rasteiro, o professor Mário, o Manuel “batateiro”, o Gata e o Cunha, mesários da irmandade, vinham a subir as escadinhas da misericórdia.
-Venha cá, senhor doutor – chamou o Manuel “batateiro”.
-Anda beber um copo – convidou o professor Mário. E entrámos na casa que foi dos pais do professor, nas traseiras da igreja.
Depois lá veio o Cunha com o comentário de que estavam com dificuldades em reunir gente para os corpos sociais da irmandade. Enquanto o professor enchia os copos, o Gata atalhou:
-Não é só escreveres coisas cá da terra; tens que pertencer à irmandade também.
E ficou decidido: a partir daquele momento também eu pertencia à Irmandade da Santa Casa, que é do tempo das primeiras fundadas pela Rainha D. Leonor. O professor Mário, actual provedor, dando a reunião por concluída, rematou:
-Pronto; está feito… -e cada um ergueu o seu copo de tinto- a partir de agora considera-te também irmão -e bebendo o vinho- fica decidido por unanimidade!
E foi assim que naquele penúltimo sábado do ano, ao dobrar da esquina do Rasteiro, entrei inesperadamente para a irmandade da Santa Casa de Vilar Maior!
Como dizia Almada Negreiros, a árvore genealógica de uma pessoa é como uma verdadeira árvore; de tão grande a alta que é, com os nossos antepassados mais remotos no topo, a gente só lhe vê o tronco, mas pela qualidade dos primeiros ramos, lhe adivinhamos os ultimos ramos e os frutos.
Com Fernando Pessoa, assim acontece. O messianismo e sebastianismo da sua poesia, como o de Bandarra, a fé na predestinação de Portugal no concerto das nações, como o quinto império do Padre António Vieira e a procura do conceito de “alma lusitana”, como Miguel de Unamuno o fez da alma ibérica, tem origem nas profundas raízes judaicas e cristãs de que Pessoa tinha consciência.
Pessoa, nasceu num 13 de Junho de 1888, dia do taumaturgo franciscano Santo António (que segundo uma tradição familiar, era parente dos antepassados de Pessoa) e foi em homenagem a este que lhe puseram o nome de Fernando António.
O apelido Nogueira, veio-lhe pelo lado materno de uma família da pequena nobreza açoriana, sendo o seu avô materno um reputado jurista e poeta, que foi amigo de Manuel de Arriaga. E Director-Geral do Ministério do Reino.
A sua mãe era uma senhora cultíssima, que falava vários idiomas e teve os mesmos preceptores que os infantes D. Carlos e D. Afonso.
O Açorianismo desta linha materna pode notar-se numa atmosfera insulada e marítima da sua lírica, onde os temas marítimos são frequentes.
Do seu lado paterno e Beirão vem o apelido Pessoa. O seu avô era o general António de Araújo Pessoa, que se distinguiu nas guerras liberais. E deste ramo lhe vem a ascendência judaica e o cunho messiânico da sua inclinação sebastianista e visionária, bem como uma certa exaltação do heroísmo. O seu 5.º avô foi o judeu Sancho Pessoa da Cunha, natural de Montemor-o-Velho e o seu 4.º avô, filho deste, foi o cristão-novo Gabriel Tavares Pessoa, natural do fundão.
Eis pois os factores, que efectivamente se encontram nas entrelinhas da poesia de Pessoa e que explicam o seu caso literário e humano.
Coincidem também, digo-o com franqueza, com a minha teoria de que os maiores poetas da humanidade, salvo uma ou outra honrosa excepção, ou têm ascendência judia, ou são quase todos juristas, ou filhos e netos de juristas.
As minhas raízes
Estão todas aqui.
Que o pão cresça,
De novo
Na tapada da eira
E floresçam os ramos
Da amendoeira do horto.
Chiem os carros de bois
Na Rua de Baixo,
Soem os sinos da Igreja
Às horas das trindades
E das matinas.
Já nada é como antigamente:
O vento já não traz o cheiro das lareiras
As cegonhas já não fazem ninho
No velho carvalho da Balsa.
Tudo vai morrendo lentamente
Tudo está morto…
Bem morto;
Mas todas as minhas raízes,
Ao contrário,
Estão vivas.
As roseiras do quintal,
Essas flores que meu pai plantou,
Nunca morrem.
E por isso,
As minhas raízes,
As minhas raízes mais etéreas,
Desabrocham todas as Primaveras
Em botões de rosa;
Magnificos botões de rosa
Para quem passe no caminho.