Eu nada espero
E as saudades
Também não tenho.
Eu estou atenta
A ver passar
tudo o que passa.
Eu estou aqui
No meu lugar
Sempre a correr
Para quem passar.
……
Eu sou assim ninguém m’entende
Não sei mudar!
Chamam-me fonte,
Eu acho bem
É o meu nome. Quero-lhe bem…
Se não me entendem…
Que hei-de eu fazer?
Eu sou a fonte
Estou a correr…
Almada Negreiros
«Eu, português, conheço pelo menos dois portugais; um o dos portugueses, e outro o das portuguesadas. Eu creio firmemente que querer servir Portugal em portuguesadas é a mesmíssima coisa que meter-lha capilé p’ras veias. Portuguesadas são excelentes para fins de festa que tenham outro fim que não seja o de acabar com a festa.
Não há maior inimigo do português do que as portuguesadas…
A portuguesada é uma tremenda falta de pontaria do português.
E por este andar o nosso querido Portugal irá sistematicamente sendo substituído pelas portuguesadas.
O monumento ao marquês de Pombal o que é senão uma grandíssima portuguesada com todos os seus matadores? Aquilo afinal resume-se a contenda de Loja de Sacristia! Da história do Marquês está lá tudo em pedra, bronze e leão; mas qual é o português que aprenderá alguma coisa da história do Marquês porque lho tenha ensinado aquele monumento? Nem patavina!
Um forasteiro das festas da cidade de Lisboa, em 1934, teve de prolongar a estada na capital depois de terminado o programa de festejos. E o pobre provinciano andava intrigadíssimo pelo facto de a C.M.L. não ter ainda mandado apear “aquilo” da Rotunda se as festas já tinham acabado há muito tempo!
Com mil raios, é esta a melhor crítica, a mais justa que temos ouvido, sobre este monumental monumento» (Negreiros, Almada, Obras completas, Editorial Estampa, 6 p.183)
vou cortar umas couves tronchudas para a Consoada!
A nossa profissão é como a dos padres: Conhecemos segredos e histórias inimagináveis, algumas delas divertidas, outras escabrosas. Umas podemos contar, outras, por questões deontológicas, não.
Os processos de divórcio litigioso, são dos mais pródigos nestas histórias a que umas vezes assistimos divertidos, outras, surpreendidos, de a tanto ser capaz a miséria humana.
Pois num destes processos, a mulher acusava o homem de adultério, que ele, evidentemente, negava.
- Isso -contrapunha ele- são imaginações da tua cabeça!
-Ai são? –indignou-se ela- E aquele passeio a Fátima, com os meus pais?
-Qual passeio?
-Quando fizeste aquela travagem brusca…
-Que travagem?
-Quando o sapato de senhora te veio parar à frente…
-Que sapato?
-Aquele que julgaste ser da tua amásia…
-Que amásia?
-Não disfarces… -atirou ela irónica- tu todo simpatia a mostrares-nos a paisagem, para te desfazeres do sapato pela janela…-e acertiva- ou julgas que não reparei?…
-Reparaste em quê? -defendeu-se ele como pode- lá vens outra vez com a tua imaginação!
-Ai é imaginação? Então porque é que ao sairmos –rematou ela triunfante- a minha mãe, ao calçar-se, deu por falta de um dos sapatos?
Não se dando por vencido, ele replicou:
-Posso jurar que a tua mãe se esqueceu do sapato em casa…
-Ai sim?
-Sim… quando entrou no carro já vinha sem ele, que eu bem vi…
Era tudo isto o que nela se destacava:
Com toda a sua depravação
E muita experiência no amor
E todos os homens – incontáveis- que por ela passaram,
Havia instantes – quase raríssimos-
Em que parecia uma criança.
Nos seus trinta e tal anos de beleza,
E de prazer carnal
Tinha instantes em que, paradoxalmente,
Parecia uma criança.
A criança de 10 anos, regressou da escola, chorando copiosamente.
-Que tens filha? – quis saber o pai.
-Já não sou virgem… - e fungando- sou uma vaca!
-Estás a ver –recrimina o pai à mãe- isto só aconteceu pelo mau exemplo que dás, saindo de casa de mini saia curtíssima –e dirigindo-se à filha mais velha- e tu não és diferente… sempre na pouca vergonha com o teu namorado aqui no sofá da sala!...
- Já que falamos nisso –remata a mulher- não estás a esquecer também as tuas frequentes noitadas com umas e com outras?
E chamando a petiz de parte, indaga a mãe com doçura:
-Ouve cá, meu amor; conta à mãezinha o que se passou…
-A professora tirou-me de Virgem Maria e pôs a Vanessa… Agora – explicou a criança desconsolada- sou a vaca!...
-Que faz Σόκρατες, na passadeira vermelha?
Είναι οί Ευροκρατογ νά φθάσουν σήμρα.(1)
-Porque parou toda a cidade?
Είναι οί Ευροκρατογ νά φθάσουν σήμρα.
-Porque se levantou tão cedo Σόκρατες
e está em pé às portas da cidade
no seu fato cinzento e gravata azul?
Είναι οί Ευροκρατογ νά φθάσουν σήμρα…
E ele espera pacientemente
as delegações dos Eurocratas. Até preparou
um discurso de boas vindas
a congratular-se pelo acontecimento.
-Porque se engalanou o mosteiro
Em luzes amarelas e azuis
E no salão do museu dos coches,
onde já se alimentou a ração de fava muita cavalgadura,
serviram agora um lauto almoço de cataplana de marisco?
Γιαι οί Ευροκρατοι θά φθάσουν σήμρα.
Καί τέτοια πράγμάτα θαμπώνου τούς Ευροκρατους.(2)
- Porque, findo o repasto, caímos na tristeza de todos os dias
(como as pessoas ficaram sérias outra vez)
e voltámos cabisbaixos a nossas casas?
È porque isto já lá não vai com passadeiras vermelhas,
já lá não vai com discursos
nem com almoços de cerimónia
só “para inglês ver”!
É que findo o repasto, os Eurocratas vão-se embora
E nós ficamos sozinhos neste miserável país.
Καί τώρα κ’ κοί Ευροκρατοι δέν ηλθαν?(3)
(*) À espera dos Eurocratas
(1) Os Eurocratas hão-de chegar hoje
(2) Porque os Eurocratas chegarão hoje e tais coisas deslumbram os Eurocratas.
(3) E agora que vai ser de nós sem os eurocratas?
Às vezes tenho ideias, felizes…
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despegam…
Depois de escrever, leio…
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor que eu…
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?…
A última roupa estendida ao sol
E a velha Angelina chamava:
-Minina, vem comer!
E eu ansiosa:
-Posso, mãe?
-Podes…
Corria para o fundo do quintal,
Onde Angelina me servia em folha de bananeira
Pirão com peixe seco, em óleo de palma.
-Não tens garfo, Angelina?
-Come assim c’um mão, minina…
Explicava Angelina com doçura,
Levando a mão à boca.
-Ah, que saudades da velha Angelina…
-Suspira a menina, já mulher,
à frente de um Cherne no Tavares Rico-
-Aquilo sim… é que eram tempos!
Agora sei que sou um caçador. Nada mais
que um caçador.
cacei de salto e de batida e de largada
sobretudo de espera. Palavras
imagens
rimas
combinações de sons e de sinais.
Tentei muitas vezes acertar no alvo
alguns amores saíram largos
outros perto demais
armadilha fatal
caçador caçado.
A história passou baixo e aos ziguezagues
Entre sombras e arbustos à beira de água
a história como a galinhola.
Ouvi o grito da narceja ao, levantar
mas era o bater da ilusão lírica
era o tempo a fugir
ou talvez Deus o sentido sem sentido.
Agora sei que não fiz senão caçar
o poema o sopro os anjos que passavam
a peça solitária
os olhos da corça à noite
as aves dos milagres os teus braços
eternidade de passagem lebre corredora.
Agora sei que sou um caçador
e que por mais que acerte haverá sempre
um tiro um pouco lento
ou demasiado à frente
uma perdiz que escapa mesmo ferida
uma perdiz ao vento
uma perdiz. Ou talvez o tempo. Ou talvez a vida.
Dorna
Já caíam as primeiras folhas de Outono. Ouvia-se de vez em quando o assobio longínquo das árvores fustigadas pelo vento e o ruído do portão da rua a bater.
Estava a família do morto e os convidados à volta do caixão; algumas velhas de xaile preto pelos ombros, muito chorosas, e alguns homens. Cheirava a mofo e fazia frio; uma mulher passou com uma braseira, que encaixou no estrado de madeira, ao canto da salinha.
Formou-se então uma roda de quatro velhas à volta da braseira e uma delas, ao ouvido, para outra:
- Foi da fermentação do mosto… - e referindo-se à viúva- aqui a Maria foi dar com ele já desacordado na dorna… - na dorna?- Sim, na dorna… ainda o tiraram, mas já foi tarde…
A outra persignando-se – morte santa; nem um ai… - e, chorosa, julgando que limpava as lágrimas ao lenço, levantou a saia e mostrou as calças à antiga.
Um dos homens começou a rir; um riso que se pegou a todos os que choravam.
De repente sentiu-se um cheiro a queimado.
-Está alguma coisa a arder -avisou alguém.
As velhas levantaram-se, aflitas.
-É o meu xaile… -a viúva em pânico- é o meu xaile…- labaredas- ai acudam!...
E todos acudiram a apagar o fogo, esquecendo por momentos o morto.
Bati à porta do gabinete e fui entrando. O juiz de círculo estava sentando à secretária, no extremo da sala, entre duas pilhas de processos. Interrompeu a escrita; e levantandando-se, dirigiu-se à porta, cumprimentando-me afavelmente:
-Então doutor… o que o traz por cá, tão longe da sua Comarca? – e dando-me uma palmada nas costas – há anos que o não via –aperta-me com força- com tem passado, o meu amigo?
-Menos mal, senhor doutor…menos mal…
E pondo-me a mão no ombro – vá sente-se – e fez-me sentar numa poltrona atrás da porta - sente-se homem… sente-se e conte-me… -sorriu, enigmático- vá lá meu amigo, conte-me… está quente, ou não, essa poltrona?
-Hum… - hesitei- parece-me quente, doutor… porque pergunta?
-É que você nem faz ideia de quem esteve aí sentado antes de si…
-E quem foi, doutor… quem foi?
-Uma gaja muito boa… uma loiraça do caraças…
-Não me diga…
- Imagine você –explicou então, divertido- que a tipa não me larga o gabinete…
- Hum… é coisa séria…já estou a ver, doutor…
-Qual quê!… é a minha vizinha do andar de cima… está a divorciar-se… e o processo dela, veja bem, calhou-me na distribuição!...
-Estou a ver a cena…-ri, divertido.
-Pois…e os funcionários já gozam com a situação…
-Não diga…
-Digo, pois… são todos os dias bocas do género: «então senhor doutor… ah… anda a “comer” a loiraça, não anda?»
-Não diga…ora essa…-finjo-me muito chocado- e o doutor sem o proveito…
-Nem mais… eu bem lhes respondo… ela é que dorme por cima de mim; não o contrário… mas ninguém me leva a sério…
Rimos os dois. E ele, rematou a conversa por ali:
-Ah, que azar ela ser minha vizinha…
-Pois… faço ideia…
- Ah catano!... nem sei o que lhe fazia…
Sozinho, sentado na fraga
A ver a aldeia do outro lado do rio.
Um pássaro negro voa no céu infinito…
As primeiras sombras beijam os telhados,
Quando o horizonte se tinge de vermelho.
São Horas de regressar
Descendo pelo caminho
Do Poço da Andorinha.
O meu colega Vitorino Pereira é um pessoa simples e de aguda inteligência.
Por ocasião de umas negociações num inventário complicado, reunimo-nos no seu escritório, numa sala com uma mesa e duas estantes rústicas que trouxe da adega do avô, nas Cortes, aldeia dos arredores de Leiria, onde também se dedica à agricultura.
O cabeça-de-casal no inventário, homem a rondar os oitenta, já viúvo, juntou-se recentemente com uma senhora, que nas palavras maliciosas do Vitorino Pereira, “só lá vai a casa, para fazer o almoço e limpar o pó”.
-Pois…-contrapus eu- a limpar o pó…conte-me coisas, a ver se acredito…
-Ó colega – sorriu- a gente sabe como é; até os bichos têm medo da solidão...
Então, levantando os olhos do relatório de avaliação da verba principal, fixou-me uns breves segundos com aqueles seus olhos pequeninos, redondos, penetrantes, e contou a seguinte história:
-Quer ver como as coisas são, colega? Até a natureza nos dá ensinamentos para a vida… - e recostando-se na cadeira, pondo de lado o processo- Tinha lá na quinta uma cadela de raça e um cão rafeiro; A cadela era cheia de “pedegree” e o cão apareceu por lá, ladino, a namorar a cadela e foi ficando, tendo várias ninhadas com a cadela, até que esta morreu há coisa de um mês.
- E depois, colega; que aconteceu?- quis eu saber.
-O cão andou uma semana, murcho, sem vontade de comer. Há coisa de quinze dias reparei que andava mais animado; eu sem lhe saber o motivo. Mas quando me levantei um dia pela manhã, para vir para o escritório, tropecei numa cadelita que atravessava sorrateiramente o pátio. Ele vendo que o apanhara em flagrante, veio roçar-se nas minhas pernas a pedir um afago.
- Pois… eles sabem-na toda… -comentei.
- O mais engraçado - continuou ele- é que esta cena se repetiu nos dias seguintes. A cadelita aos poucos perdeu a vergonha, deixou de fugir e começou a ser visita regular de casa. E ele todos os dias me dava graxa a pedir autorização para que ela ficasse. Até que um certo dia, ao levantar-me reparei, para meu espanto, que tinham dormido os dois aos pés da minha cama.
- Relação assumida e conumada…-observei, divertido.
- O mais interessante – concluiu ele, alisando a barba- é que a partir deste dia, me passou a ignorar com a mesma indiferença, com que sempre o fizera.
Hoje terei nova reunião com o Vitorino para arrematar o assunto do inventário. Vou ansioso para ouvir o desenvolvimento desta história, ou, quem sabe, uma nova e interessante história, daquelas que só ele sabe contar.
«Aqui fica o registo, o Bilhete de identidade da mula de Albino Leonardo, latoeiro de profissão. A mula, para além dos transportes domésticos, servia para levar cargas de obra a todas as feiras e mercados próximos - Alfaiates, Miuzela, Freineda, Bismula. da carga faziam parte: caldeiros, baldes de regar, regadores, ogadores, lanternas, candeias, azeiteiras, funis, toupeiras, enchedeiras, copos vários, jarras, bacias ...
Para além disto, fazia regularmete as vistorias e apta a ser requisitada pelo Ministério da Guerra em caso de necessidade.
Desta mula se contam muitas histórias. Animal espantadiço, havia de derrubar o dono, corria o ano de 1948, tendo causado grave traumatismo numa das pernas de que viria a falecer. Em todas ashistórias subjaz a mulice, uma esperteza e manha própria deste solípede. Daí o dito: «Mula que faça hi! hi! e mulher que saiba latim não a quero para mim»
A herdeira da mula, foi a viúva Isabel Silva que continuou o trabalho de latoeira e a vender a obra nas feiras. Depois a idade ditou o fim da mula e a chegada do plástico ditou o fim da artista. A mulher continuou ainda por longos anos cultivando a horta do Mindagostinho cuja presa em tempo de rega era despejada de manhã e à tarde».