Quando era miúdo
- ao tempo que isso já lá vai-
entretinha-me à beira do rio
a atirar pedras
só para as ver fazer ricochete
e ouvir o grasnar dos patos a levantarem
assustados
entre a sombra dos arbustos,
passando baixos,
junto à água.
Depois
deitava-me no restolho,
esquecido de tudo
ouvido colado ao chão,
a ouvir
o canto das cigarras
e das raízes.
Minha mãe chamava-me então do cimo das eiras
Eu fingia não ouvir
E colava cada vez mais o ouvido ao chão
Para melhor sentir
Aquele poema que a terra me dizia!
Um velho vai a uma casa de meninas e pergunta pela Natacha. A “Madame” adverte-o:
- A Natacha leva 1.00,00€ por sessão; o senhor não prefere antes outra menina mais em conta?
- Não, não… Quero a Natacha – insiste o velho.
O velho voltou nas duas noites seguintes também e pediu a Natacha. Esta, intrigada com a fortuna do velho, quis saber de onde era ele.
-De Famalicão – lhe respondeu o velho.
-Tem graça… também eu!
-Sim… eu já sabia…
-Como assim?
-É que sou o advogado a quem suas irmãs encarregaram de entregar as tornas de 3.000,00€ que lhe couberam de herança…
Somos um país pequeno e pobre e que não tem
senão mar
muito passado e muita História e cada vez menos
memória
país que já não sabe quem é quem
país de tantos tão pequenos
país a passar
para o outro lado de si mesmo e para a margem
onde já não quer chegar. País de muito mar
e pouca viagem.
Manuel Alegre
A velha nogueira sobre o muro do jardim,
À sombra da qual minha mãe descansava,
Foi secando lentamente
E agonizou.
Mandei o Paulo arrancá-la com o tractor
E com ela também as roseiras do meu pai;
Mas o que verdadeiramente ordenei ao Paulo que arrancasse,
Com aquela nogueira e aquelas roseiras…
Foram as últimas lembranças
De minha mãe
E de meu pai
Naquele jardim.
E com elas
as minhas raízes.
Em o Banquete, Platão descreve um banquete que decorreu em casa de Agatão, em 416 a. C., o qual festejava a sua primeira vitória no festival do teatro de Dionísio em Atenas.
A historia, que é contada em segunda mão, relata uma discussão entre doze convidados, incluindo Sócrates e quatro atenienses ilustres: Aristófanes (dramaturgo), Pausânias ( discípulo do Sofista Pródico) e Alcíbades (estadista ateniense e admirador de Sócrates).
À saída dos banhos públicos, Sócrates, vestido com as suas melhores roupas, encontra Aristódemo e convida-o a acompanhá-lo. Agatão (cujo nome significa cavalheiro), da-lhes as boas vindas, senta Sócrtaes à sua esquerda e saúda Aristodemo. Depois de prestarem homenagem aos deuses, Exímaco, um médico, introduz o tópico da discussão do dia: O Amor. Os convidados falam por ordem, da esquerda para a direita, à volta da mesa, até quem cada membro tenha dado a sua opinião. Discorrem sobre o amor, até que chega Alcibíades embriagado e rezingão, que zomba por todos ainda se encontrarem sóbrios e depois aludindo aos seus rejeitados avanços homossexuais sobre Sócrates, que no entanto aceitaria os de Agatão, provoca-o:
«[…]Nunca haverá um homem que se lhe compare, nem antigo nem moderno, a menos que não tentemos compará-lo com qualquer dos homens, mas sim com os silenos e sátiros, os quais os compararei a ele é à sua conversa».
Estas palavras de Alcibíades, lidas atentamente, são uma crítica às maneiras aristocráticas de Sócrates, que só bebe o vinho ritual. È igual a todos os homens, diz Alcibíades por despeito, só se distingue deles por não beber como os Silenos e Sátiros, verdadeiros foliões (de philoinia – etimologicamente os que gostam de vinho ) os quais bebiam o vinho não misturado na cratera, o que era considerado um sinal de incultura e barbárie.
Sócrates, ignora-o e continua a conversa, discutindo tragédia e comédia até horas tardias com Agatão e Aristófanes, até que sai, pela madrugada.
A análise mais detalhada do diálogo, quem tiver curiosidade intelectual, poderá fazê-lo em Ross, T.M. Essaus in Greeck Philosophy, Oxford, Clarendon, 1969 e também em Skemp, Joseph Bright, Plato, Oxford, Carendon Press, 1976, acompanhando com o texto integral de o Banquete traduzido pelas Publicações Europa América, edição de bolso, n.º 168.
O interessante é queorque Platão situa a discussão filosófica, no contexto de um banquete. Isto explica-se pelo culto dionisíaco e a veneração do vinho no arcaísmo e um conceito de vida muito próprio da aristocracia daquele tempo e que Sócrates também seguia.
O próprio texto Homérico contém numerosas referências ao vinho, com o qual se apagam as chamas da fogueira de Heitor e de Prácolo ( Ilíada, XXIII, 230 e XXIV). Como nas sociedades orientais, esta bebida, resultado da fermentação da uva, ocupava o centro dos rituais, quer gregos, quer etruscos, quer romanos.
O vinho não era indispensável à vida, mas nas sociedades arcaicas era indispensável ao espírito. Vindo de um processo de vinificação, está do lado da cultura e não da natureza. O vinho é uma droga (pharmakon) que permite uma comunicação directa com os deuses, provocando o entusiasmo (enteos- que significa etimologicamente ser inspirado por deus).
E o vinho (oinos) bebia-se na antiguidade cortado com água, numa mistura feita na cratera (daí Krasi, nome do vinho no grego moderno) antes do banquete, que era invariavelmente em homenagem a Dionísio, deus do vinho e da vinha, e onde as taças (thasos) circulavam ritualmente da esquerda para a direita, entre os convidados, pela mesma ordem em que lhes era concedida a palavra.
O banquete era composto, em primeiro lugar, por um repasto de carne (dais) ligado ao sacrifício (thusia) e confundindo-se com ele; não se comia sem ter oferecido um sacrifício aos deuses, que obviamente não ingerindo alimentos, se contentavam com os odores destes.
A seguir prolongava-se a refeição bebendo (symposion) e falava-se, recitava-se poesia discutia-se filosofia e cantava-se. Um dos homens ( simposiarca) organizava as coisas, mandava encher as taças e concedia a palavra.
Esses symposion organizados em torno da palavra , da música e do vinho, caracterizavam uma arte de viver e um ideal da aristocracia arcaica grega. Era uma maneira de pensar e de ser entre a aristocracia de Cólon, de Éfeso, de Mileto, de Samos, de Mitilene e de outras cidades da Grécia oriental nos séc. VII e VI a.C.
Sócrates pertencia a este círculo de nobres amantes da symposia, de mísica e de poesia, como Safo, e de boa mesa, apreciadores de perfumes, e unguentos; pessoas de cabeleira cuidada (nas palavras de Hiponax de Éfeso) com longas túnicas a roçar o chão, apreciadores de banhos e massagens e cujo modo de vida se traduzia num habrosuné ( luxo), que Mazzarino resumiria séculos mais tarde no conceito de “alegria individual”.
Também poderia fazer a analogia entre o Banquete, o culto a Dionísio, os doze convivas, o repasto da carne sacrificial partida e repartida igualitariamente entre os convivas, a celebração em torno do vinho e do tema do amor, com a última ceia de Cristo e o último mandamento que Este deixou aos seus discípulos: «amai-vos uns aos outros como eu vos amei». E já agora podíamos associar Alcibíades á figura de Judas e Agatão à de João.
Mas isso seria assunto para a cristologia, semiótica, história da cultura clássica, que envolveria erudição e abordagem teológica, que não cabem na despretensão deste blogue.
Mas retomando o fio à meada, resumidamente o que é esta “alegria individual” de que fala Mazarino? É nem mais nem menos que a máxima satisfatória que Sócrates enunciou no Banquete:
O amor sente falta de beleza e de verdade. Qualquer pessoa que veja a beleza com os olhos da alma será «[…] amiga de Deus e imortal, se é que algum homem o pode ser».
O amor é pois beleza e verdade. E isto só se aprende com os olhos da alma.
Sentara-se à secretária
E nada lhe ocorria;
Nem uma palavra;
Nem um verso.
Bateram timidamente à porta,
Era quase meia-noite,
E a maneira de bater…
O que será?
Era a Rosa Maria,
A criada da pensão,
Que vinha atarefada,
Do arranjo dos quartos
E perguntou:
-Venho incomodar?
-Não. O que há?
-Nunca lhe pedi nada…
Se não fosse muita maçada…
Não andei na escola…
Escrevia-me uma carta ao meu rapaz?
Disse que sim
E esperou que ela ditasse:
- Meu querido João do coração
Estimo que esta te vá encontrar de saúde
Em companhia dos teus
A quem mando muitas saudades.
Dá também saudades à minha mãe
E diz-lhe que fico bem.
Esta carta é para te dizer
Que ainda não me esqueci de ti
E que morro de saudades tuas
Meu João do coração.
Fico só até acabar o mês
E depois volto para ti
E para a nossa terra.
Vai-me esperar à estação,
No carro do primo Isidro,
Quando to mandar dizer.
Tua querida Rosa do coração
E saudades.
No envelope:
João Firmino da Rosa
-A Rua não é precisa - disse ela-
Vai lá ter mesmo assim.
-Moinhos de Carvide-
3100 Pombal.
A seguir ao arco, escadas a subir. Passando a taberna, mais escadas. Depois um patamar e mais escadas; uma curva à esquerda, mais escadas e a leitaria Brilhante; outra curva à direita e mais escadas até à estrada.
Chego cansado diante à Igreja, a cabeça a latejar. Descansando as pernas dou uma vista de olhos aos jornais no quiosque.
Retemperadas as forças, há mais escadas a subir, coladas ao edifício do mercado: Um lanço interminável dali à Costa Do Castelo, ao Chapitô.
A cabeça explode!
E as pernas desfalecem!
Depois é tudo a descer, pela Rua da Saudade, até ao Limoeiro.
Demorou o processo
Nas estantes da primeira secção
Porque nenhum juiz o movimentava
Por excesso de pendência.
Aos poucos
Ficou esquecido
Entre os outros processos
Aguardando o despacho saneador
A seguir ao oferecimento dos articulados
E as partes civis
Foram perdendo interesse
Nos autos e no litígio
Acabando por se comporem
Extra-judicialmente:
O Autor cedeu uns metros ao fundo da extrema
Para a reclamada servidão
E o Réu permitiu a passagem e obras
De consolidação no muro do primeiro;
E assim,
Mais uma vez se fez justiça
Por cansaço
Das partes!
Falar do trigo e não dizer
O joio. Percorrer
Em voo raso os campos
Sem pousar
Os pés no chão. Abrir
Um fruto e sentir
No ar o cheiro
A alfazema. Pequenas coisas,
Dirás, que nada
Significam perante
Esta outra, maior; dizer
O indizível. Ou esta:
Entrar sem bússola
Na floresta e não perder
O rumo. Ou essa outra, maior
Que todas e cujo
Nome por precaução
Omites. Que é preciso,
As vezes,
Não acordar o silêncio.
Albano Martins
Vilar Maior
Pelo Outono,
Onde os verdes e amarelos
são tão variados como ninguém sonha
E os pores do sol tão suaves
Como ainda ninguém viu
E os carvalhais mais extensos que o tempo
Que nos sobra.
Vilar Maior
Pelo Outono,
Onde as tardes são as mais luminosas
E as noites sinfonias de estrelas
E no rumor do rio podemos escutar o silêncio profundo
das almas adormecidas.
Vilar Maior
Pelo Outono,
O meu quintal num extremo do povo
E a Figueira sobre o jardim e sobre o pátio
A dar-se com a minha alma
E a deitar os figos mais doces
Que alguma vez provei.
Vilar Maior
Pelo Outono...
Ou
De como pode ser tão doce
A existência!
Mês de Novembro em Salamanca
E um calor como há muito não sentia.
O quarto dava para um pátio interior
Com roupa a secar;
No corredor
Os passos da mãe;
Pela janela aberta
O arrulhar das pombas,
No pequeno pátio.
Mês de Novembro em Salamanca
E um calor como há muito não sentia.
Os touros mortos
Deixando rasto de sangue na praça;
As prelecções matinais na faculdade;
O refresco numa esplanada da Plaza Mayor
A seguir à siesta
E a meio da tarde ela entrando pelo quarto,
A sentar-se no chão,
Abrindo o leque preto
E a refrescá-lo com aquele vento.
Mês de Novembro em Salamanca
E um calor como há muito não sentia.
O leque aberto no chão…
Depois ela voltava a pegar no leque
A fechá-lo e abri-lo,
Como fazem as espanholas
E despia-se.
Mês de Novembro em Salamanca
E um calor como há muito não sentia.
O leque abrindo e fechando
Como fazem as espanholas
Eles nus
No chão daquele quarto,
E os passos da mãe
No corredor.
Mês de Novembro em Salamanca…
E um calor como há muito não sentia.
O amigo convidara-o para assistirem à conferência sobre Unamuno. Chegaram atrasados, mas ainda a tempo de ouvirem aquela intervenção sobre as relações luso-espanholas, em que Portugal era menosprezado.
Aí ele pediu a palavra e falou do iberismo de Unamuno, das suas frequentes viagens a Portugal, da amizade deste com intelectuais portugueses, entre os quais, Quental, Pascoais, Nemésio; depois do grupo “Renascença”, que editara a revista Àguia e onde pontuaram Cortesão, Coimbra e Pascoais; explicou pormenorizadamente como a doutrina deste movimento fora elaborada por Unamuno a pedido do próprio Pascoais e por fim, como a poesia de Fernando Pessoa entroncava no pensamento de Unamuno.
Perante o espanto da assistência, mencionou ainda como Pessoa antes de se juntar por despeito ao Grupo “Orfeu” pertencera ao grupo “Renascença”, partilhando o seu conceito da estética, da filosofia, história e humanismo ao longo de toda a sua obra.
Lanchou depois numa tasca nos arredores da Torre de los Caballeros e para matar o tempo até ao jantar, entrou na Sé, onde o Arcebispo, que havia também assistido à palestra o conduziu à enorme sacristia e o fez sentar numa antiquíssima cadeira, precisamente a mesma, onde segundo a tradição, saíra em ombros o nosso frei Bartolomeu dos Mártires, após defender com brilho a sua tese de doutoramento no “Quadrivium”.
O Arcebispo explicou-lhe, que aquela cadeira era reservada aos portugueses ilustres que visitavam a catedral, o que o fez desconfiar que aquele lhe estava a prestar uma singela homenagem pela dissertação sobre Unamuno.
Mais convencido ficou, quando à saída pela porta lateral, perante a incredulidade dos transeuntes, o Arcebispo deu vivas a Espanha e a Portugal.
O pior foi o regresso pela madrugada, após o jantar, ébrio: Uma patrulha da guardia civil parou-o; como não trazia documentos de identificação nem do carro, acabou a noite numa cela fria da esquadra, completamente ébrio, a dar também ele vivas a Portugal e a Espanha.
Era um Medo muito medroso:
Era um Medo tão medroso, que tinha medo por tudo e por nada. Apesar de já ser um Medo adulto e de “barba rija”, assustava-se com a própria sombra na rua, pelo que andava sempre colado aos muros dos prédios; alarmavam-no as tempestades de relâmpagos à noite, das quais se escondia debaixo das mantas; evitava falar à vizinha do rés-do-chão para não fazer ciúmes ao sujeito do 2.º Esquerdo; subjugava-se ao chefe de secção lá no trabalho, que lhe distribuía pilhas e pilhas de processos sem que protestasse, só para que não lhe desse ainda mais trabalho; receava os dentes do cão da velhota do 318, ao fundo da rua, que o obrigavam todas as manhãs de Sábado a saltar o quiosque do bairro para ir comprar o Expresso três quarteirões adiante, perdendo a hora de almoço; e tinha medo de um ror de coisas mais, tão insignificantes, que seria exaustivo e doentio enumera-las também aqui.
Mas só para que fique a ideia,
Era um Medo tão medroso, que ao chegar da rua, se trancava no guarda-roupa do quarto, horas a fio às escuras, a roer as unhas e tremer dos joelhos como “varas verdes”, sem saber porquê.
Em suma…
Era um Medo tão medroso,
Que até metia medo!
Tanto…
Que ninguém se lembrava de o procurar
No Guarda-roupa
Lá do quarto.
Ovídeo escreveu também um livrinho, De Medicamine Faciei Liber (livro sobre os cuidados do rosto), que pouco mais é que uma lista em verso de receitas de cosmética; no entanto entre algumas destas receitas, dá alguns conselhos às mulheres, que são verdadeiras pérolas de sabedoria.
Não resisto a transcrever este, que vem mesmo antes da receita sobre o remédio para os papos debaixo dos olhos ou manchas na cara:
«[…] que a vossa primeira preocupação seja cuidar da formação do carácter; as qualidades da alma dão ao rosto novos atractivos. O amor que surgiu graças a um bom carácter é duradouro; a idade há-de causar estragos na vossa beleza e as rugas hão-de sulcar o vosso rosto sedutor… A virtude proporciona satisfação, dura toda a vida, por muito que seja, e, aonde ela está presente, o amor mantém-se.»