O Conselho de um grupo editorial aprovou com "louvor" a publicação de um livro meu; 296 páginas, formato 14X21, capa cartonada e plastificada sem abas, a 4 cores.
A crítica vinha numa simpáctica carta de "enreda tolos":
"... É muito gratificante saber... que os criadores continuam comprometidos com a qualidade, com a responsabilidade de passar para tantas mãos um livro bem escrito. Aqui temos a real certeza de que o sacro dever de expressar a palvra escrita foi cumprido. A nossa equipa, que o leu linha por linha... identificou um talento nato, preocupado com a carga conotativa de cada palavra... parabéns pelo livro, pela obra apaixonante que criou e esperamos publicar e assim fazer reconhecer de forma tão genial... e "blá blá bla"!
Depois deste palavreado todo, em anexo juntaram um contrato em que todos os lucros da primeira edição era para eles!
Ora bolas!... E o processo criativo não vale nada?
Não querem ir dar uma curva, não?
Joaquim, António e José
são os filhos que teve da Amélia
o Zé da Ruvina.
Três rapagões
emigrados em França,
que aparecem cá na aldeia
todos os anos pelo Natal
e por Agosto.
Quim, Tó e Zé,
são os três filhos varões do Zé da Ruvina.
Três rapagões bons compinchas,
já pais de filhos
e que todos tratam carinhosamente por
Quim, Tó e Zé
da Amélia.
Quim, Tó e Zé da Amélia,
lá longe em França,
mas três compinchas
dos bons
Bem perto no coração!
Lisboa, Janeiro de 1940
Publicado no Jornal do Fundão em 12 de Agosto de 1994
Quis a sorte que nos viesse às mãos um texto quase inédito de António José Saraiva. Publicado num jornal escolar de reduzida tiragem, António José Saraiva traduziu, como sempre depois, o seu amor à Gardunha, às Donas e ao Fundão. Já nos últimos meses de vida, em inquérito de um jornal, A.J.S. considerava o Fundão a mais bela terra e a melhor para viver, O grande pensador, honra e glória do país, aqui veio repousar para sempre. Deve o Fundão, agradecido, dizer quanto se honra e orgulha de ter entre os seus maiores um homem de tão alta craveira intelectual e moral, grande Mestre do pensamento.
"Na minha aldeia há uma fonte na encosta de uma serra (onde por sorte bebi também bastas vezes ), escondida entre quatro paredes de pedra tosca, cuja água corre por uma telha de barro. Três léguas ao redor não há água mais fresca nem mais caridosa. Por ali passam, pisando a estrada, os homens que descem da serra a caminho do mercado, e param para dar de beber à égua e aos pequenos que vêm escondidos no fundo da carroça; ali descansam, na frescura, as cabrinhas escorreitas que arrebitam a orelha para escutar o rumor que faz a água caindo da telha; e os bois, que transportam blocos arrancados às pedreiras barrentas, e não podem dessedentar-se debaixo do jugo, saboreiam ao passar a frescura que a fonte espalha naquele ermo.
Como os bois, as cabrinhas montesas, e também os homens, eu fui dos que aproveitaram a caridade desta fonte. Era-me familiar o seu murmúrio, que eu percebia de longe; e conhecia todos os segredos da sua frescura. Via correr com divina limpidez a água que se espraiava depois no meio de uma pequena floresta de ervas e avencas; e ouvia-a embebendo-me no segredo da sua música, que não era monótona aos meus ouvidos. Mais grossa ou mais fina, alta ou baixa, esta música entristecia ao entardecer; e à noite, debaixo das estrelas nítidas, parecia fazer-se mais nítida e mais penetrante. De vez em quando, eu molhava na fonte a língua, a garganta, os dentes, e nesses momentos senti mais toscamente, na casta limpidez da água, a grossura da minha boca.
Todas as manhãs a fonte acolhia os meus bons dias debaixo da luz do sol. O seu correr era alegre, e na areia que nele rolava brilhavam grãos de oiro. Molhava os meus olhos afugentando deles o sono, e a minha boca, abrindo-a ao ar da manhã.
Todas as noites me despedia dela. Ia passo a passo, sem ruído, de ouvido à escuta, procurá-la. O seu murmúrio, difuso e fosco ao longe, aguçava-se, e cortava, por fim, como uma lâmina; não sei o que sentia nele de augusto e longo. Quando eu partia reparava que o rumor era mais nítido e mais só.
Havia dias que eu não visitava a minha fonte. A solidão das montanhas é infinita; e eu penetrava dentro dela, como em menino visitava a igreja para sentir o terror da hóstia sagrada. Mas depois de transpor vales e montes, regressando à aldeia, eu escutava o vento a ver se ele me trazia o doce murmúrio familiar; e, sentindo os pés inchados e quentes dentro das botas, ia à beira da telha refrescar a boca curtida no sol.
E parecia-me que ela me esperava, sozinha, no ermo tranquilo. Compadecia-me a sua solidão; aproximava-me dela para que a sua música se tornasse menos queixosa. Decerto que não era ilusão minha: se eu entristecia na solidão e procurava a companhia da fonte, como não havia ela de entristecer-se longe de mim?
Era esta fonte a minha última despedida quando eu saía da minha aldeia. Manhãzinha, antes de o comboio chegar, eu entrava pela porta de umbrais de granito; pisava a humidade, fofa, sem pressa; deixava-me encharcar no regato que corria na pequena floresta de ervas e avencas; abaixava-me para esfregar as mãos na areia, e ver passar a claridade no espelho frisado onde a água se espalhava; e pedia perdão à fonte de, pela última vez, molhar na sua linfa esta minha boca pecadora. E depois ouvia, bebia, longamente, o seu rumor, que era agora - não me digais que estou enganado - uma melodia de despedida que me penetrava finamente como certas lâminas frias, ou se amortecia, ténue, na lonjura.
Era esta a fonte que existia quando, há meses, saí da minha aldeia. Não posso garantir que ainda lá esteja. E desta vez, como das outras, tive o sentimento de que me despedia dela para todo o sempre, e por isso mesmo me pareceu mais lamentoso o seu rumor. Só Deus sabe as voltas que o mundo dá; e é possível que desta vez, afinal, ao contrário das outras, a fonte espere indefinidamente por mim, enquanto vai dando de beber às cabrinhas que me viram seu amigo. Mas o que eu vos digo é que, dê o mundo as voltas que der, eu não me esquecerei da fonte que me matou a sede e a solidão, e trarei sempre comigo o pequenino orgulho de ter bebido numa água caridosa como nenhum rei do mundo bebeu ainda."
A. J. Saraiva
O cavador endireitou a espinha
E abrindo bem os braços
gritou ao vento: Eu sou
O carvalho mais largo deste regato.
E os pardais ouvindo o grito,
Vieram em bando
Poisar nos seus
Frondosos
Ramos.
Trata-se de um colega que tem no seu escritório uma excelente colecção de arte moderna, onde figuram excelentes pintores portugueses e estrangeiros.
Após o trabalho no seu gabinete, passamos a uma outra sala para tomar café. Para meu espanto, entre os diversos quadros ali expostos, um particularmente era-me familiar; e referi-o ao colega.
Foi então que me explicou ser natural, até porque se tratava de um quadro meu, datado de 1993.
Aí mais admirado fiquei porque já nem me lembrava de ter pintado tal quadro. Aproximando-me, verifiquei que de facto, no canto inferior direito do mesmo figurava a minha assinatura. Era meu; sem dúvida!
O colega lá me reavivou a memória, explicando que se intitulava Dunquerque, e que já lhe haviam oferecido em troca um outro quadro de um certo pintor francês, de que mencionou o nome. Acrescentou depois, sorrindo, que nem assim tivera coragem em se desfazer dele.
Regressando a casa investiguei, por curiosidade, na Internet, o mencionado pintor. Não é que, para meu espanto, as suas obras estão cotadas acima dos 2.500,00 euros?
Fiquei siderado! Conclui, com remorsos, que ando a perder o meu precioso tempo nas barras dos tribunais!
Dias passados, atravessando o largo frente ao tribunal e cruzando-me com o mesmo colega, admoestei-o por não ter aceite a troca. Retorquiu-me ele divertido, que esperava ansiosamente a minha morte para aumentar a cotação do quadro. Aí sim… o venderia ou trocaria.
Expus as minhas reservas: O meu nome era perfeitamente desconhecido no circuito comercial de arte. Então contra argumentou, que era precisamente nisso que estava o busílis da questão: Os meus quadros eram bons e raríssimos; a lógica era precisamente retê-los para se lhes elevar a cotação.
Não pude deixar de sorrir àquela tão linear aplicação da lei da oferta e da procura ao mercado da arte; só uma interessante variante: a da morte. E pensei cá para com os meus botões: Longe vá o agoiro, mas esta coisa da arte é negócio bem tramado!
O meu pé de jacaranda
o vento o dobra
de cá para lá
e de lá para cá.
Que grande está
o meu pé de jacaranda!
Hoje foi um dia importante. Recebi em plenas férias judiciais, um acordão num processo que ganhei sucessivamente na primeira, segunda e terceira instância contra um grande escritório de advogados em Lisboa, que patrocinava um grande banco nacional. Invoquei o conceito indeterminado da má fé, e não é que resultou?
Tive direito a jantar no "tromba rija" dos Marrazes; Na minha modéstia contentava-me com o "manjar do marquês". mas o cliente insistiu, e quem sou eu para dizer não?
Por isso já bem bebido e semi-inconsciente, deixo o post seguinte, e talvez mais um ou dois, quebrando todas as juras antigas em contrário, só esta vez.