E neste meu reino, até cinjo uma velha espada, de magnífica lâmina de Toledo, com que me investi em cavaleiro, e outro dia, fui dar entre os trastes do sótão, com uma velha bacia de barbear, que bem areada dará um magnífico elmo de mambrino.
Devo ter desenterrado com a bacia o espectro de um cavaleiro de triste figura, que me deu vontade incontrolável em albardar a glorinha e ir por esses campos fora, de forquilha na mão a fazer justiça aos fracos e a defender a honra das damas, dia sim dia não.
Dia sim, dia não… que não há pachorra para tanta falta de honra!
Dia sim dia não...
Que cansa ir por estas serranias fora, tão longe da civilização, indiferente aos castigos e medos, fitando unicamente, sob a cúpula de estrelas, o voo tutelar e invisível dos espectros das almas atormentadas.
Rei… e cavaleiro...
Mas dia sim, dia não!
Chegado de véspera, visitei a aldeia vizinha. Ao passar numa das ruas, uma idosa, cumprimentando-me, chamou-me pelo “petit nom” de infância. Fiquei suspenso no tempo, breves instantes.
-Menino! - E quase ao ouvido - menino Joãozinho!
Além do “petit nom”… A familiaridade do trato, como se eu ainda fosse criança!.
Uma onda de ternura subiu-me dos pés, passou pelo coração, percorreu o corpo, aflorando aos lábios, em sorriso. E estremecendo:
-Ah?... Que foi?
Reconheci naquela idosa a senhora, que ao ver-me passar, petiz, pela mão de minha mãe, descia o balcão com um regaço de goluseimas.
O marido espreitando em camisa interior ao balcão, ainda a repreendeu:
-Ó mulher… então! – e dirigindo-se-me – queira vossa insolência desculpar – era assim que dizia excelência - os modos da minha mulher.
Ó homem – justificou-se ela - já andei aqui com o menino ao colo! - E abrindo o avental. - não foi, menino?
-Sim… foi.
No regaço... exibiu o seu tesouro: biscoitos, galhetas espanholas, rebuçados de vários sabores e cores, com e sem recheio; alguns chocolates.
E servi-me com o mesmo à vontade de quando era criança.
As alturas do céu atraem-me. Este BLOG fica por aqui. Há-de espernear... debater-se... mas acabará por definhar... morrer.
Este rio que corre
para trazer
a frescura à terra
sem se deter.
Um fio de vida estendido entre as hortas, um pouco acima
do açude,
como um cordão umbilical
saído do ventre da terra, desenrolado entre as montanhas,
até ao mar. Ao fim da tarde sentei-me nas resguardas, um instante, só para o ver correr, enleando-se
no mata-cães da ponte.
Na claridade do fundo arenoso
vi, aflorar à superfície,
os limos numa tonalidade avermelhada,
pronunciado o fim de Julho
e um barbo bolinando,
corrente abaixo.
O Manel chamou do balcão.
A mancha vermelha que tingia os limos, ergueu-se
para alcançar as nuvens.
Levantei-me no alento breve
e vermelho
do céu incendiado;
E outro rio correu,
generoso,
para trazer
a frescura aos meus lábios,
na adega do Manel.
O Manuelino surgiu por volta de meados de quatrocentos em Portugal, interrompendo as primeiras iniciativas renascentistas do Hospital das Caldas e da Igreja de Todos os Santos, com o Infante D. Fernando, Duque de Beja, por influência mudéajar do vizinho andaluz. O primeiro arquitecto do Duque foi Joâo de Toledo e depois João de Arruda, que trabalhou no Mosteiro da Batalha, podendo-se ver os primórdios deste estilo ligado à casa de Ducal de Beja, no que resta no Paço Ducal e no Convento da Senhora da Conceição em Beja.
No "suz" de Marrocos floresceu um renascimento cultural e artístico com a dinastia saadita, ligado á exploração da cana de açucar, comércio com o Sudão e contrabando com Portugal. Muitos do artífices marroquinos foram recrutados para as obras manuelinas, como o convento de Tomar. A recém descoberta charola de Tomar - entaipada durante séculos- é por isso em estilo marroquino como os da madrassa de Marrakeche e a janela do capítulo em estilo hiper-realista, foi lavrada por dois mestres pedreiros marroquinos, Belumida e Ali Mohamed, sob direcção de Diogo de Arruda.
Por questão de "logística", e a poupança é logística, arranjei casa nos arredores da cidade. Com a tensão alta, diz o médico que devido aos condimentos, deixei de fumar e de beber. Mas os "condimentos"... e os "petiscos" serão a minha perdição. É que, tenho uma costela bem marroquina. Gerações de "Valentes" - Jões Valentes, Manuéis Valentes, Antónios Valentes- viveram em Al Jadida (Mazagão) desde 1562 até 1769, resistindo a 9 cercos bem complicados. Iá! ah am marraxi!
No planalto, um corte à direita, que tomámos. E aí começámos a descer vertiginosamente aquela estrada sinuosa – a que levavam os mercadores do outro lado da fronteira, no séc. XII, à feira franca. Dois ou três quilómetros depois, avistámos numa quebrada da encosta, a povoação amuralhada. À nossa frente, os dois torrões defensivos sobre a porta medieval, com um verrão de cada lado e os telhados das casas espreitando por cima do muro.
O frio daquele dia de Março, ficou esquecido, ante a inesperada, incomparável beleza daquele lugar. Atravessámos uma ponte, que galgava um pequeno arroio todo rodeado de verdura, e chegámos a um terreiro com um cruzeiro a meio.
O divino artista, que está lá em cima, compusera certamente num dia de calma inspiração, este quadro magnífico só para nós. A rusticidade das fragas musgosas a pique sobre o rio, a antiguidade celta dos verrões a lembrar tempos de antanho, os fofos de verdura formando um prado e descendo em diferentes matizes até ao Côa, os carvalhos quase sagrados subindo penosamente as encostas, o vento a trazer o cheiro característico das lareiras, a majestade e doçura do lugar, a tonalidade difusa da luz da manhã, nem mestre Malhoa, conseguiria retratar!
Para além da porta, depois de algumas casas em granito, seguimos a rua esguia e tortuosa, entre alpendres de casas meio apalaçadas. Numa esquina esbarrámos num escudo de armas de velha pedra, roído de musgo, grandemente afidalgado. Mais adiante, um recanto formava um pequeno largo, para onde abria um portal renascentista de rara beleza, adoçado a uma pequena capela. E quase ao fundo da rua, um portão abria-se para um curral de lavrador, cuidadosamente empedrado. Dentro, um cão ladrava com furor.
Assim chegámos ao largo principal no centro da aldeia, onde o edifício brasonado da antiga câmara assentava sobre um bonito chafariz de granito e uma rua subia, íngreme, em socalco, entre fileiras de casas térreas e pobres, levando ao castelo e á antiga matriz.
Já íamos sensivelmente a meio desta rua, quando uma porta se abriu e um rosto espreitou, vindo do escuro. Era uma velha, com madeixas brancas, embrulhada na sua mantilha preta.
- Esta rua - quisemos nós saber- vai dar ao castelo?
A velha abriu mais a porta, para nos observar.
- Sim… para o castelo.
E o rosto da velha encheu-se de curiosidade. Quis saber de onde éramos; onde havíamos dormido. Mentimos:
- De Lisboa…
- E onde ficaram? – insistiu.
Mentindo de novo:
- Na Guarda…
- Querem entar?
E sem esperar resposta, escancarou a porta. Salvando um degrau, entrámos numa salinha térrea, com paredes rebocadas a caliça, enegrecida pelo tempo. Pelos cantos, alfaias e objectos espalhados no chão ou dependurados do tecto, oferecendo uma perspectiva do quotidiano rural de há décadas atrás; no tecto baixo em carvalho, algumas manchas negras da chuva; junto à pequena janela, de um só vidro, um balcão improvisado, com garrafas de variados licores caseiros e uma velhinha máquina de café instantâneo. Tu, maravilhada, balbuciaste:
- É tão rústico!
Contrapus:
- Não é não… é simples!
Conheci o Ahmed na sua loja da Medina. Despojado das minhas roupas europeias, quis comprar um fez. Experimentei vários, mas todos me ficavam apertados. Estes berberes, pensava eu enquanto experimentava fez atrás de fez, têm as cabeças pequenas!
Como não queria deixar fugir o cliente, tentou impigir-me um turbante em seda, cor índigo. Ia bem, dizia, com a minha jebla azul. Acabei por levar o turbante, que me colocou à maneira tauregue. Queria 250 dirah’s; ofereci 50. Desceu para 200 e o preço acabou em 100, ainda assim, acima do preço normal. No fim ainda ouvi o remoque:
-Portugal... Espanha... falidos!
No outro dia pela tardinha cruzámo-nos no passeio da Moahamed V e fomos tomar um chá de menta ao café da esquina, mesmo defronte do minarete.
Estávamos a ver passar o trânsito caótico e as pessoas para a última reza da tarde, quando de repente me tapa os olhos:
- Não olhes! – e explicou- vai passar um Mercedes cinzento, descapotável, com um homem e uma mulher...
- Sim... e depois?
- Qual é a cor do cabelo da mulher? – E riu-se.
- Louro... é louro?
Destapando-me os olhos: - Acertaste!
Rimo-nos os dois. È que numa cidade de quinhentas mil almas, com noventa e tal por cento de berberes, as probabilidades eram de 1/50.000!
É claro que o mercedes descapotável deu uma ajudinha!
Com saudades tuas
desenhei-te no chão:
Uma folha de palmeira, é o cabelo;
duas tâmaras, os olhos;
areia vermelha, a boca:
areia branca, a lágrimas que por ti verti.
O vento levou a palma.
-Que mal fica um rosto sem madeixas!-
como-te os olhos,
uma das sandálias apaga a boca,
a outra
as lágrimas.
Ia o vermelho tabuleiro abaixo,
vinha o verde tabuleiro acima:
-Olá vermelho!
-Badamerda!
Pararam a meio:
-Porque me ofendes?
-Ora... porque és verde!
Passa o azul:
-Olá malta!
E os dois em coro:
-Badamerda!
Era sempre pela calada da noite, gelo de Inverno ou fresca a madrugada de Verão, a lua clara no céu apontando o caminho, que os contrabandistas passavam a fronteira, caminhos recruzados, veredas escusas, cabeços, pastos, assomando ao cruzeiro e metendo quelha abaixo, com as cargas e alimárias:
“Ò da casa...”
Meu avô abria a portada da sala, depois a janela; espreitava:
“Quem vem lá?...”
E os vultos descarregavam as mulas, encostavam as cargas, meu avô subia a tranca, abria a porta, candeia na mão, franqueava o palheiro, feno á vontade para os animais.
A avó Maria Emília levantava-se, sonolenta, para avivar o lume, fazer o café, fritar peixe de rio. O avô enchia a jarra de louça verde e oferecia... O vinho, o café, os peixes e acomodação para toda aquela gente.
Os vultos desaparelhavam as mulas, estendiam as mantas de trapo no chão e descansavam.
Sobre a manhã, antes de o sol se levantar, aparelhavam as mulas, ajustavam as cargas e pediam sempre a conta, que o avô, ofendido, recusava:
“Lume e tecto, não se negam a ninguém...”
E eles lá partiam para as restantes duas léguas até ao apeadeiro do Rochoso.
Era assim naquele tempo, a casa do meu avô!