Era uma vez um homenzinho
chamado Abdul
que tinha uma mulher
que sabia fazer cus cus
e três filhas pequenas
todas em escadina
e vivia
numa minuscula casinha
em adobe vermelho
situada numa rua tão estreita
que nela mal se cruzavam duas pessoas
ombro com ombro.
Esta é a pequena história
de um homenzinho chamado Abdul
que vivia numa rua estreita
onde nunca entrava o sol.
Conheci Aqui uns portugueses; pessoas bem divertidas. Sábado à noite fui com eles jantar à “Palmerie”, na estrada para Casablanca. È um grande bosque de palmeiras na vale de L’Houz, arredores da cidade, com grandes lagos e jardins, estendendo-se por 13.000 hectares. Aí fica um complexo turístico de cinco estrelas, com lagos, campos de golfe, piscinas, restaurantes, formando um enorme oásis entra a cidade e os arredores. Ao longe ficam os cumes do Gueliz, que nesta altura do ano já perderam o brilho da neve.
O restaurante que escolhemos tem uma grande cozinha em regime de self—service, com sala de jantar prolongando-se pela esplanada, num olival. Percorremos a colunata que vai da recepção à cozinha e atravessando esta, à saída, o assistente do “maitre” vindo ao nosso encontro, perguntou-me em francês perfeito para quantos desejava mesa. Quando percebeu que éramos portugueses, descoseu-se:
- Puxa cara – abriu um sorriso- portugueses... e a gente enrolando no francês... podemos falar português!
Era brasileiro, de nome Pedro Santana, natural de Santarém no Pará. Advogado como o pai e irmãos, resolvera fazer uma pausa na profissão e tinha chegado há mês e meio, via Casablanca.
Achei estranho... vir de tão longe assim, sozinho... sem mais; e porquê e logo para aqui, indaguei.
- Acha cara? – novo sorriso; desta vez maroto – observe!... –fez pose- agora me diga... acha mesmo?
Foi então que explicou que viera atrás de Carolina, a linda brasileira a quem ensinei Julian a dirigir uns piropos.
- Já a conheço... – disse comprometido.
- Sei... – e estendendo a carta de bebidas – ela contou! Um cara safado lhe chamou gostosa...
- Mas não fui eu...
- Sei... não, cara!
- Foi o Julian!
- Mas quem ensinou o cara foi você... – e divertido- Dá no mesmo...
Depois de alguma hesitação, escolhemos um vinho rosé. Alguém sugeriu que eu ficasse toda a noite a água.; cada piropo à Carolina, uma garrafa de castigo!
- É para aprender – concordou o Pedro – a não cantar mulher de outro... – e rindo- você me paga, cara!
- Por mim – protestei- e pelo julian...
- Bem... – condescendeu- esta a gente releva, n´é? – e deixando as garrafas no gelo- fica o aviso, cara... depois não reclama...
A seguir ás garrafas, vieram as entradas, depois o prato principal e as sobremesas. Nessa noite, entre centenas de clientes, os portugueses foram os únicos com direito a “garçon”; uma gentileza do Pedro, que provocou ciúme nos espanhóis, mesmo ao lado.
Teve outro gesto bonito: Quando soube que apanhava o avião para Casablanca, veio de propósito da “Palmerie” despedir-se; com ele a Carolina.
Trocámos endereços e prometeram visitar-me em Portugal.
Ahimii, ensinou-me a fazer as ablações. Primeiro o lado direito do corpo, começando pela cabeça em direcção aos pés. trê vezes atrás das orelhas, sempre detrás para a frente. Depois três vezes na cara, pescoço, mãos, pés.
Explica que um muçulumanos se durante o ramadão, tocar à noite numa mulher, terá que se purificar até ao nascer do sol. è para isso que servem os banhos turcos essencialmente.
- Tocar - e ponho-lhe a mão no ombro- assim, ahimii?
- Não! - ri- sabes bem. Tocar, ter relações.
- Ah! - rio eu também.
Passamos frente a um banho turco. Todos os bairros têm uma mesquita, uma escola, um fontanário e um banho turco. Quero entrar para ver os azulejos. pergunto ao Ahimii quanto custa se quiser tomar um banho. dez dirah's, diz-me ele. Acho pouco... um euro na nossa moeda. Pergunto-lhe se é misto... se também entram as mulheres.
- Não querias mais nada! -e ri-se- por dez dirah´s?.
Seguimos em frente, rompendo pela multidão, em direcção da tinturaria do Mohamed.
Vem, meu amor, desçamos ao nosso jardim.
Vejamos se a cerejeira nova pegou;
As roseiras florescem, o alecrim está em flor;
o vento trás o perfume das tílias
e a melhor figueira é a da nossa porta.
Todos lhe cobiçam os frutos roxos,
mas só para ti colherei os figos, os figos mais maduros.
Só para ti, meu amor, os colherei.
Quero conhecer uma mulher bérbere,
quero desvendar os enígnas do deserto.
Desaperto as correias das minhas sendálias,
nos seu riso de marfim
bebo o sol.
Percorrendo descalço o seu corpo,
ao longe nos cumes nevados do atlas,
O vento fustiga os carvalhos
na àrvore de jaracandá canta um pássaro
e o gemido claro dos gelos
derretendo
ao toque das minhas mãos.
O vento pára, as flores do Jaracandá caem.
cala-se o pássaro
e a montanha conseva o seu mistério.
Masmlam...
o cume nevado do Atlas
e a neve derretendo
ao toque das minhas mãos.
Pátio de um Riad (habitação de estilo andaluz)
À saída da “village”, perto da Koutobia, virei à esquerda em direcção á El-Fna. A esta hora da tarde a El-Fna transforma-se num grande palco onde desfilam até altas horas da madrugada, milhares de pessoas. Um mar impressionante de gente que nunca vi em mais lugar nenhum do mundo.
Rompi a custo pelo meio de encantadores de serpaentes, que fazem parte da tradição sagrada e ancestral proveniente da Índia; pelos comedores de fogo; pelos tocadores de tambores; pelos dançarinos Gnawa, negros do Sudão; pelos vendedores de água nos seus trages coloridos em lã; pelos cartomantes; e passando ao largo da “comisserie”, do “café de france”, das boutiques, dos restaurantes, dos vendedores de crêpes, das tendas de comida, que deixam no ar um aroma inconfundível com mistura a canela, açafrão, pimenta, cominhos, genebra, noz-moscada e chá, aventurei-me pelo Souk das marroquinarias, onde se vende de tudo, desde as cerâmicas a doces, cabedais, sedas, tecidos, especiarias e carne.
À entrada, um bérbere, esguio, vestido com a sua “djebla” (não sei se pronuncio correctamente), seguiu-me uns metros e tirou-me a pinta:
- Português? Portugal?
Acenei que sim. Já me não largou.
- Figo! Ronaldo! Portugal muito bom!
Quis saber-lhe o nome.
- Ahimii... – e traduziu- Jaime em português!
Ofereceu-se para guia. Senti-me como se tivesse sido salvo de um naufrágio. Perguntei-lhe quanto levava. 300 dirah’s, pediu ele. Mas avisado pelo Mustafá, que me alertou para a costela cigana desta gente, ofereci apenas 50 dirah’s. Ele regateou; queria 200. Mantive-me inflexível; 50 ou mais nada; aceitou. Para que não houvesse mal entendidos, soblinhei: 50 dirah’s... 5 euros, se estava bem assim. Ele acenou que sim; abriu os braços; não havia problema.
Entretanto mudei de ideias e pedi-lhe que me levasse pelas ruelas dos riad’s para ver azulejaria e estuques tradicionais. Acenou mais uma vez que sim e pediu-me que o seguisse.
E lá fui eu atrás do Ahimii, á aventura, pelas ruelas estreitas da Medina. Passei por boas aventuras com este homem extraordinário e aprendi muito com ele. Mas essa história, e como aqui me falam como a um perito na literatura e arte islâmicas, fica para um dia, quando voltar.
Madrasa de Ebne Yussef (pátio central onde onde se vêem as paredes em platré o topo em cedro trabalhadoe e a base revestida a faiança)
Eric, negro retinto de Casa Mansa, junto à Guiné-Bissau e que só sabe dizer em português “home piquinino" e "home grande”, apresentou-me Mustafá, erudito bérbere, licenciado em literatura e doutorado em sociologia, que estudou em Fez, Damasco e Bagdad e pertence á seita dos mamelucos sunitas.
È um homem baixinho, vestido à ocidental, que fuma cigarro atrás de cigarro, pai de numerosa prole. Levou-me a ver as escolas da cidade, o souk dos curtidores de peles, a medina e a antiga madrasa de EbneYussef, datada do séc. XIII e a mais famosa de todo o magrebpelos seus "platrés"(rendilhados em estuque) de influência andaluza.
Aqui se faziam os estudos do corão, preparatórios para a carreira política, religiosa ou jurídica. Agora está desactivada, mas ainda reflecte o seu antigo esplendor. Um grande pátio interior, com paredes rendilhadas a "platré", tipo filgrama, com influências andaluzes e rodeado por várias salas de estudo, todas revestidas igualmemte a "platré" e tectos coloridos em cedro trabalhado. No primeiro andar, os quartos dos estudantes, a darem para pequenos pátios.
Parámos, na porta junto à sala dos Imãs. Mustáfa, chamou-me a atenção para o grande pátio em forma de “riad”, construção tipicamente andaluz e de influência romana, só existente nesta região do magreb. Passámos depois pela sala de ablações, com rica abóbada em azuleijaria, assente em quatro colunas de mármore de carrara. Nesse tempo, diz-me Mustafá, o ouro do sudão era tanto, que se trocava um kiilo de ouro por um de sal e um de sal por outro de mármore.
Falámos das reformas sociais e políticas no país, nomeadamente da nova reforma jurídica, que ele considerou muito ocidentalizada e desajustadas do substracto bérbere da população.
Depois passámos pelo souk dos agricultores, onde por dez dirh’as (equivalente a um euro) se compra uma refeição para uma família de quatro pessoas e estas são tão pobres, que só têm dinheiro para comprar cigarros a avulso. Seguimos pelo Souk dos ervanários onde nos detivemos a experimentar essências e desembucamos na grande praça de Djamaã El-fna.
Eram já 15 horas e nem dera pelo tempo passar, nem pelo almoço que tinha marcado para as 13 na "village". Mustafá telefonou para o restaurante a reservar-me mesa e despedimo-nos, combinando novo passeio para logo pelas 17, pelo circuito dos riad's.
Trabalhadores contratados
"Assinamo contrato
E apanhamo vapô
Di Cabo Vérde
Para Sum Tomé,
Mã, irmão, eu
E no alto mar
-Eu com nove…
Irmão mais nove-
A febre tomou mã…
Mã se morreu
Eu não deu conta…
Barco parou
No alto mar,
Noite di bréu,
Caixão cum ferro
Ao fundo
Di mar
E vapô apitou…
Três vezes vapô apitou.
Nós seguiu viage
-Eu com nove…
Irmão mais nove-
E quando desembarcámo
Todo bem vistido,
Ouviu prêto di tanga dizer:
-Olha portuga!
Mas num eramo portuga
E trabalhamo na roça,
Quatro ano siguido,
Irmão e eu,
Apanhando cacau,
Catando casca di canela
Debaixo di chicote,
E quem parava
Cavava sua cova
E morria,
Morria duas vezes,
Muita gente morreu,
Depois veio Governadô Gorgulho
Que matou muita gente
E voltámo a Cabo Vérde
Irmão e eu,
E irmão disse:
-Vamo vivê junto di mar
E nós apanhou muito peixe…
Nós engordou…
Casou…
Teve filho,
Depois di uns ano
Voltou a Sum Tomé
E de avião a Portugal
E quando chegou
Capataz Carlos
Não quiz contratar
E dizer para amigo:
Eu ser piquinino
Não prestar!
E amigo responder:
-Ele ser piquinino
Mas rijo…
Contrata ele!
Ele contratou
E eu trabalhou
Uma semana sem parar
E ao fim capataz chamar:
-Vou aumentar você,
mas não diga a ninguém…
E quando recebeu féria
Preto grande reparou:
-Tu ganhar mais que eu..
E eu respondeu:
-Vai falar cum patrão
Ele se enganar...
Sorte minha!
E vida correr bem
Nós trabalhou muito
E mandou vir mulher
Di Cabo Vérde
Mais os filho,
Sete filho…
Todo di cara diferente…
Todo di vizinho
-que eu ter grandi chifre!-
Mas encheu casa
Cum aquela filharada
E foi muito feliz!"
O subscrito vinha dirigido
Ao "doutor de Vilar Maior"
-tout court-
E fez sorrir
O carteiro.
Dentro,
Trazia o orçamento da casa velha,
Materiais, mão-de-obra
Incluídos,
Tectos falsos em pladur,
Três janelas velux,
Limpeza das paredes,
Preenchimento das juntas
E assentamento de azulejos
Tudo no total de...
Seis mil e quinhentos euros.
E à parte,
Bem discriminado,
O orçamento da casa nova
Na quantia de...
Dezassete mil e quinhentos euros.
Faço contas à vida
- seis mil e quinhentos com dezassete mil e quinhentos, dá...
Corto as unhas rentes
- Vinte e quatro mil...
Conto os tostões
- É puxado!
Segue a contra-proposta
- E se esquecêssemos as juntas,
Os azulejos,
E ficasse tudo por dezoito mil e quinhentos?
A resposta à contra-proposta
- No mínimo, dezanove mil e quinhentos.
A contra-proposta à resposta à contra-proposta
- E dezoito mil e quinhentos?
A resposta à contra-proposta à resposta à contra-proposta
- Pronto... Dezanove mil.
Novas contas á vida
-as unhas pelo sabugo-
Continua puxado!
Adjudica-se...
Ou não?
Eis a questão!
No café da Natália estava tudo com antigamente; o mesmo balcão envidraçado, a máquina de café na prateleira sob os expositores de garrafas, umas quatro ou cinco mesas à volta da lareira e na sala contígua, subindo dois degraus, a mesa de bilhar.
No pátio, sob as escadas que levam ao primeiro andar, mais uma mesa, protegida por um guarda-sol de um vermelho desbotado. Nela já passei algumas tardes de Verão, na companhia dos meus primos, a jogar sueca.
Uma porta ao lado do balcão, dá para a cozinha térrea da casa, de onde saiu, pano de limpar a louça na mão, a Natália. Perguntei pela família; o Chico, o Carlos, que informou ela, “estavam de boa saúde e se recomendavam”; depois pela minha gente, que disse “não ter avistado desde o Natal”.
- Nem a minha tia Lurdes? – Indaguei.
- Nem essa… Está para a Rebolosa, com a Isabel.
Limpando o balcão em longos círculos com o pano, quis saber o que tomava. Hesitei entre uma mini e um café. Optei pelo café, que nesse dia já vinha alegre da casa do Amândio e ainda queria tratar do orçamento das novas obras com o Aires.
Tomei o café e fui andando devagar; deslizando por entre as hortas do Chão do Ribeiro, vagueei pelas ruas pouco mudadas, observei as casas. Lá estava a da minha tia Conceição no início do largo, porta fechada, janelas corridas. Bebi no chafariz por debaixo da figueira, subi à torre da Igreja e sentei-me por momentos nas resguardas a ver as diferentes tonalidades vermelhas dos telhados e do verde dos quintais. Tudo parecia estar na mesma; enquanto olhava, as memórias assaltaram-me como uma copiosa chuva de Abril. Entre aqueles telhados e quintais tinha eu vivido muitos dos melhores tempos da minha juventude. Mesmo a meus pés, em frente, o portão e as escadinhas de muitas tardes e noites apaixonadas de ardor, a cabeça quente cheia de planos e aventuras. Ali eu fora feliz, por causa dos olhos negros de uma rapariga e dos beijos ousados do nosso amor.
Fazia-se tarde e apercebi-me que o sol já descia sobre a copa dos freixos, nos lameiros. Voltei a descer e atravessando o pequeno adro, subi pela rua deserta, passando pela longa fila de velhas casas desabitadas, torci o pé nos buracos do pavimento à curva da Ti Justina e finalmente detive-me diante da casa do padre António. No rés-do-chão uma porta enorme de madeira, já sem tinta; no primeiro andar, quatro janelões apagados. Fiquei parado, hesitante, a olhar a casa, não sabendo se devia ou não bater. Um rapazola desceu a rua; quando me viu ali especado, observou:
-É só abrir, nem precisa bater! Suba as escadas, sempre em frente… devem estar na cozinha…
-Obrigado – Respondi; e subitamente tinha a aldrava na mão.
Empurrei-a com força, e a pesada porta abriu-se com dificuldade para um rés-do-chão silencioso e escuro. Do átrio pavimentado a granito subia uma velha escadaria senhorial, também em pedra, que conduzia a um largo corredor no primeiro andar, depois atravessando uma grande sala pobremente mobilada, à cozinha, num patamar ligeiramente inferior. Esta era de razoáveis dimensões, a mesa redonda e atoalhada cheia de papéis e jornais, junto à lareira, o fogão e por cima o cilindro de água quente.
A lareira, em granito enegrecido e revestida azulejos, estava acesa; os azulejos quentes reflectiam a luz difusa do lume e em volta da lareira, sentados, o padre António, a criada e duas visitas; um homem e uma mulher, esta fazendo renda.
Quando me viram parado à porta, o padre António sorriu, a criada fez um trejeito e a mulher que fazia na renda olhou um pouco para mim e depois baixou a cabeça, para apanhar o pano.
Desci as escadas, saudei os presentes O padre António levantou-se e vindo ao meu encontro, abraçou-me. Levantaram-se também a criada e as visitas, cedendo-me lugar junto à lareira.
Assim que me sentei, a conversa continuou sem cerimónia. A criada lamentou-se da sementeira das batatas, que o padre ainda teimava em fazer, apesar dos noventa e dois anos e da saúde preclitante; o homem falou das ovelhas com que entretinha o tempo da reforma. Á minha pergunta se fazia a ordenha, encolheu os ombros, “que não valia a pena… não dava para o trabalho”. A conversa derivou para a desertificação da terra, a falta de braços para amanhar os campos, dos parentescos entre diversas famílias. A senhora da renda, de vez em quando interrompendo a conversa, insistia que o padre bebesse toda a água da garrafa, para o exame ao estômago. A criada explicou então como o padre se vinha sentindo mal… sem apetite, emagrecendo a olhos vistos… e a senhora da renda opinou que “era coisa séria… que já tivera um mal ruim assim, mas de que se curara depois de muitas e complicadas operações”. Falou-se por fim da minha mãe, falecida pelo Natal.
Aí fez-se um longo silêncio. Então o padre António poisando o copo, agarrando-me pelo braço, com a autoridade de quem foi amigo de quatro gerações da minha família, quer paterna, quer materna, sentenciou:
-A Isabelinha foi um navego! -E querendo sublinhar a mulher de trabalho que a minha mãe fora, reiterou- toda a vida um navego!
Quando me despedi para ir falar ao Aires e subi as escadas da cozinha, senti que para trás deixava um amigo muito querido, uma testemunha privilegiada dos momentos importantes da minha família, desde a primeira grande guerra aos dias de hoje.
Nunca mais se ouvirão aquelas suas palavras precisas e oportunas com que nos acompanhou nesses momentos, pois este fim-de-semana partiu para sempre.
A vida continuará, inexoravelmente, com uma nova sensação de vazio, mas o seu espectro permanecerá como uma viçosa e alta giesta na rusticidade granítica destas terras.
Estava perdida e era azul
essa cor que a cobria
esse mar que não sabia
o homem que a acordava
o homem que a adormecia.
Estava perdida
e era tão perto a ilusão de morrer
quando a palavra vazia
se faz palavra nascer.
Estava perdida e era noite
o que vinha ao pensamento
quando o amor era o vento
quando o sentir se perdia
esse mar que não sabia
o homem que a acordava
o homem que a adormecia.
lobo 07
Maria das Dores
Uma leve pontada
ao subir a escada.
-Ai Jesus!
Maria das Dores...
ai... rotundo!
Maria das Dores...
ai... profundo!
Maria das Dores
carrega a cruz,
dela e do mundo.
Abrir a cancela
e saír por aí aos pinotes
como um potro
pintando a manta!
Tenho aqui na aldeia um magnífico castelo de muitos quartos, duas salas, sótão e dependências. Agora vai a obras novamente; A casa velha transformada em atelier de enorme clarabóia no tecto.
A cidade morreu. O amor, os amigos, o irmão, ficaram para trás no labirinto de ruas e de carros.
Foi um distanciamento gradual, feito de lutos sucessivos, e de repente, sem dar conta, dei por mim sózinho no meio deste verde oliva de flor em rama!
De vaga em vaga, como canta o Zeca, pelas praias do mar eu vim, não sabendo de dor nem de mágoa, à procura da manhã clara.
Haviam de ver-me agora a brincar à criança a que voltei, aqui debaixo das ramadas da amendoeira do horto!
Todas as noites me sento horas a fio, à fresca da noite, a ouvir o canto das cigarras, o coaxar das rãs na charca. E neste profundo alheamento, estiro-me de costas no restolho, nuca apoiada sobre as mãos abertas, a ver a cúplua da estrelas.
Um dia, quando se calarem as cigarras e as rãs; quando um dia se agravar a miopia e os pontos bem distintos no céu se transformarem numa nebulosa indefinida de luz, hei-se acabar louco como o Ti Vicente em monossílabos, a resmungar: “Bô s’ta... Bô s’tá”...
Como ele palmilharei este meu pequeno mundo de duas léguas em redor, casqueiro debaixo do braço, indiferente às vagas sucessivas de colinas e vales, fitando unicamente, nas copas das árvores ao vento, as velas enfunadas da invisível armada!
Nesse dia já nada terei a fazer sob a amendoeira do horto. Esperarei de olhos fechados, que a brisa se levante... mas sem as mil velas do ti Vicente, faço como a lagarta: Enrolo-me numa folha deste mar verde, trémulo, deitado, sem dizer palavra, morrendo de ter-te amado tanto.
-E depois? – quererão saber- E depois, Manuel Maria?
Depois o halo de uma borboleta azul a subir do roseiral, a trincha esquecida sobre o cavalete da memória, o traço interrompido na tela de um sonho.
-E depois? Ora... depois, morrem as vacas... ficam os bois!