Sentou-se ao meu lado no banco do pátio, cabeça baixa, olhar fixo na ponta das sapatilhas. Fiz-lhe uma festa na cabeça. Afastou-se.
- Que tens... Gonçalo?
Não respondeu. Levantou a cabeça e vi que mordia o lábio, sustendo as as lágrimas.
- Estás triste? Que se passa?
Ele não deu parte de fraco. Baixou de novo a cabeça, olhos pregados no chão.
- Não dizes ao tio? É a escola?
-Sim... - um suspiro - É...
-Zangaste-te com algum menino? - acenou que não. Novo suspiro- É uma menina... Acertei?
- Sim...
- A Inês?
- Sim...
-E porquê? dizes?
-Sim... - e aproximando-se - É o Tiago...
- Deixa lá... - Fiz-lhe outra festa- É cabeça no ar...
- Sim...
- Mulheres dessas há muitas... - e abraçando-o- não é?
- Sim...
- Logo arranjas outra...
- Sim!
Levantando-se, apanhou a bola, deu-lhe um chuto e correu atrás dela, rua abaixo. Lá do fundo da rua chamou:
- Anda tio, vamos jogar!
A vida não é ela um jogo também? Umas vezes ganha-se... outras, perde-se... Pois levantei-me e fui joga-la!
-Atira a bola, Gonçalo!
Falar o deserto
Aquele mar imenso
De vagas altíssimas
E de luz intensa
Que a chuva desvanece...
E das minhas pegadas firmes
na areia
por onde passei.
E da sede inextinguível
Que me ressaca o peito
E aflora aos lábios...
A sede
E a sede...
Insaciável!
Tormento...
Silêncio...
Ausência
De tudo...
E de nada!
Hoje não me apetece continuar mais.
Hoje tem festa rija na praça
Bancas de amendoeiras na rua direita
E no meu bolso nem um vintém.
Meto pelo beco da Mundanha,
Atalho pela rua da Galinha,
Desço as escadinhas do Silva
E aponto ao pelourinho
Só para enganar a gula,
E ali fico,
Olhos aguados,
A ver de longe
As bancas
Das amendoeiras.
Vem vindo o Zé;
Uma bola e uma fartura em cada mão
E senta-se um degrau
Abaixo do meu.
Zé, meu sonho, minha ilusão
- Somos amigos, sim ou não?
A bola rola no chão
E a fartura, ai a fartura…
Que cheirinho...
Que tentação!
A bola e a fartura – Vá, Zé!
A bola e a fartura também – Anda, Zé!
- Somos amigos, sim ou não?
Bancas de amendoeiras na rua direita
E no meu bolso nem um vintém.
Ontem levei ao Major Valentim Loureiro uma "bomba"! A viagem de ontem a Gondomar valeu bem a pena! Ele lá a utilizou –e bem- fazendo referência ao meu gesto “desinteressado”, na entrevista que deu à Judite de Sousa, na RTP1; mas a jornalista nem se apercebeu da força da “onda de choque”.
Trata-se de uma conversa transcrita para os autos do processo "apito dourado" (sessão 9795, CD 23), entre o Major e o meu cliente (árbitro), que nunca existiu e que teria o seguinte teor:
“L- Estou a telefonar para pedir um favorzinho…
VL- Diga.
L- …para compensar as maldades!...
VL- Então?...
L- Eh… Oh Major, diga-me uma coisa: não… não me arranja dois bilhetes para a… para inauguração do… do Expo… da Expo… do Euro 2004?
VL Amigo: estou a ver se arranjo. Estou a ver se arranjo porque estou… a ver junto da Federação, se é possível.”
... ...
L- Veja se me arranja isso, está bem?
VL- Está bem. Ok. Ok
L- De resto está tudo bem?”
Esta conversa, na tese da acusação provaria a grande intimidade entre o Major e o meu cliente. Mais! A cobrança de um favor do meu cliente ao Major em troca dos favores na arbitragem dos jogos com o Gondomar. E é a prova decisiva, que face à diminuta força e dúvida nas restantes, mas conjugada com elas, faz do Major o mentor de todo o esquema de “compra” de árbitros, pela interposta pessoa de Joaquim de Oliveira, seu braço-direito na Câmara.
A prova de que o meu cliente não intervém na conversa, resulta dos próprios autos, porque o interlocutor do Major é outra pessoa sem ligação ao mundo do futebol, cujo número de telemóvel consta na transcrição e por acaso tem um nome próprio igual ao do meu cliente.
Aqui, de duas uma: Ou estamos perante um erro grosseiro… muito grosseiro mesmo de apreciação de prova, ou perante um caso grave de manipulação da mesma.
Juro que prefiro acreditar na primeira das hipóteses; Juro mesmo... porque a dar-se a segunda, abalaria os fundamentos do estado de direito!
Em todo o caso, depois disto, como fica a credibilidade do Ministério Público na aplicação do critério da livre apreciação da prova?
Assim, é tudo muito subjectivo. Agora entendem porque pede o Major o julgamento da televisão e não o dos tribunais?
-Imagina que eras terra.
-Eu seria cavador de sol a sol.
-Imagina que eras regato.
-Eu seria calma de Verão.
-Imagina que eras prado.
-Eu seria cavalo baio.
-Imagina que eras carvalho.
-Eu seria a tua sombra.
-Imagina que eras vento.
-Eu seria folha de árvore
Só para voar bem longe
Quando te levantasses.
Tu e eu... os dois...
O que não seria!
Mas por desgraça
Não és terra,
Nem regato,
Não és prado,
Nem árvore,
Não és vento...
Não és nada!
E assim sendo...
Também eu
Nunca poderei ser
tudo o resto!
E sabes porquê?
Sabes porquê?
É que para ser tudo aquilo
Que tu não és,
Tem de ser-se pássaro
Primeiro
E voar...
Voar bem alto...
Bem acima do cume das montanhas,
Onde os dias são mais nítidos
E mais precioso o ar
Que se respira.
E pelos vistos...
Tu não eras
Pássaro!
Fresca,
Louca,
Em flor,
Chegaste
Pela névoa
Da manhã;
Um cheiro
Intenso
A orvalho,
A jasmins,
A cravos,
Papoilas,
E uma leve
Agitação de asas
Novas,
O Bico em boca
A pedir beijos
E com dois beijos
Foste entrando
Em minha casa
Na minha vida
Sem licença,
Só porque
No passado
-Vá-se lá a saber porquê-
Fizeste ninho
No meu beirado
E não o derrubei.
Que lata!
Que desplante...
Rapariga!
Pois fica sabendo
Que aprecio a música
Da chuva
A caír nos telhados,
Me deleito com o lamento
Das árvores
A contorcerem-se
De frio
Me consola o calor
Da lareira...
Do borralho.
Como vês,
Para ser franco,
Este ano
Nem te esperava.
Vieste mais cedo,
Ou fui eu
Que esqueci
E nem me dei conta
De abrirem
As flores?
Olha,
Já que aqui estás…
-E quanto a isso...
O que não tem remédio,
Remediado está-
Ao menos
Sê útil:
-Vá...
Sobe
Aos quartos
E areja
A casa!
O Guilherme tem síndrome de Aspergen. Fixando-se numa coisa ou assunto, anda dias, semanas a remoê-los até que arranja outro motivo de interesse. Recentemente passou da fase dos cântaros para a das bilhas de gás; anda agora na dos animais.
Há dias os avós maternos, depois de semanas a ouvirem-no falar em animais, levaram-no ao Jardim Zoológico, em Lisboa.
Chegados à jaula dos macacos, reparou que um macho se punha em cima de uma fêmea. A macaca, recusava os avanços do macho; batia-lhe, mordia-o, fazia-lhe inúmeras judiarias, mas ele, concentrado no objectivo de se aliviar, não desistia.
O Guilherme fixou-se na cena; puxou o avô pelo casaco:
- Avô, que estão a fazer os dois macaquinhos?
O avô fez-se desentendido. Arrastou-o pela mão, para a jaula dos gorilas. O Guilherme fincou o pé; insistiu:
-Avô, que estão a fazer os macaquinhos?
-Olha… -e atirou a primeira coisa que lhe veio à cabeça- Estão a brincar!
- É?... E porque aquele – e apontando a fêmea- está a bater no outro?
O avô, adivinhando um rol interminável de perguntas embaraçosas, a que não conseguiria escapar-se, rematou por ali a conversa:
-Olha, “Gui”… Brincadeiras parvas!... São brincadeiras parvas!
E quando chegaram, o Guilherme foi logo contar à mãe:
- Olha mãe… Vi dois macacos em brincadeiras parvas!... -e repetia pela casa- Vi dois macacos em brincadeiras parvas!... Dois macacos em brincadeiras parvas!...
A mãe, quis saber, que tipo de brincadeiras foram aquelas, que tanto o impressionaram. Aí o avô, que estava presente, teve que se explicar, mas desta vez com todos "efes" e "erres"!
A janela ao centro, por cima da colunata, mesmo sobre a estátua, era a do quarto do Basílio
Hoje o meu amigo Basílio do Nascimento Martins comemora uma década à frente da Diocese de Baucau, em Timor.
Foi um dos seminaristas, que acompanhou o então bispo de Dili, aquando da invasão Indonésia, passando enormes sacrifícios e privações na fuga. O que ele contava desta fuga era arrepiante!
Veio estudar para Évora, onde se ordenou em 1977, mas com o sonho de regressar a Timor, o que tentou por diversas vezes. A ditadura Indonésia impediu-lhe sempre o visto até 1994, pelo que tive a felicidade de o ter como meu director espiritual e de termos vivido sob o mesmo tecto, partilhado as refeições e orações, durante uns tempos.
Guardo dele a recordação de uma pessoa calma, afectuosa, simples, de uma enorme inteligência prática e força interior. O meu caminho a certo ponto divergia e segui-o sem hesitar. Nunca mais nos vimos desde então.
Mas a sua premonição de que um dia haveria de regressar e ver o seu povo dono do seu destino, concretizou-se.
Até quando a liberdade e a independência, Basílio?
Um Abraço.
Lembras-te Fátima? Era o que eu sempre te dizia, não somos nada nas mãos do acaso, e não há mais filosofia do que esta: deixar andar, tanto faz, hoje ou amanhã morremos todos, daqui a cem anos que importância tem isto, quem se lembrará de nós? Quem se lembrará de mim? Se nem tu já te lembras de mim agora, tu, a quem tanto amei, não te lembras, e foi há tão pouco, foi ontem, parece, que te levantaste e disseste: «Ficamos amigos como dantes»... E dizias: como dantes e era já noutro que pensavas, olhavas-me e nos teus olhos ria-se a traição, o prazer da liberdade, um desafio alegre, uma alegria provocante e desapiedada, ias a meu lado pela última vez e eu era já um estranho para ti, um fantasma a quem se concede, por caridade, uns momentos mais de companhia, algumas palavras vagas distraídas, um pouco de estima, talvez. Reparei: o teu corpo, oh corpo do meu prazer! Oh carne virgem sangrando debaixo de mim! Oh meu repouso e minha febre! o teu corpo outrora tão cativo e tão submisso, ficara de repente cerimonioso e esquivo, cauteloso, afastado, com um pudor forçado no puxares a saia sobre os joelhos, como se tivesse uma grande vergonha do despudor com que se dera antes...
Dizias: como dantes e não era já nisso que pensavas, e não era já para mim que falavas, eu era uma coisa para esquecer, para deitar fora, uma coisa que se abandona caída no chão e se perde sem pena. Dizias: «adeus» e saías da minha vida com um aperto de mão desembaraçado, quase cordial um gesto de boa camarada, como se nada tivesse havido antes, como se não tivéssemos sido tantas vezes na cama, um dentro do outro, um no outro, um-outro diferente, uma coisa sublime: Deuses Criador, como os míseros humanos só ali o podem sentir e saber; um Outro que éramos nós ainda, mas tão transtornados, tão virados para fora de nós, tão esquecidos do mundo e de nós, tão eficazes, tão leais, nós boca com boca, corpo a corpo, um sexo torturando um sexo, mordendo-se devorando-se, numa febre de chegar ao fim depressa, ao esquecimento, ao repouso. Disseste: adeus e eu odiei-te logo nesse minuto, como te odeio agora, não por ti ou pelo teu corpo que já me esqueceu noutros que vieram depois, mas porque morri ali naquela palavra, -morri entendes? -, Perdi-me numa grande confusão, esqueci-me de ser eu, fiquei roubado do meu passado.
Hoje, encontrarias um outro homem; havia de rir-me do teu corpo, da sua entrega ou das suas traições, de tu me dizeres: «Vem» ou «Adeus...», ou «Não quero...». Hoje, saberias quem fizeste com uma só palavra, conhecerias um outro homem, que é obra tua, minha segunda mãe! Hoje, havia de rir ou chorar, era a máscara do momento; mas diria: tanto faz..., tanto me faz... Sabia-o!
Luíz Pacheco – autor surrealista
Retirado de http://www.triplov.com/surreal/index.html
Era um edifício moderno, de aspecto agradável, mesmo ao cimo da avenida, fazendo esquina com antigo quartel da Guarda-Fiscal.
Empurrei a porta de vidro e fui entrando; à minha direita o serviço de finanças e à esquerda o serviço de tesouraria. Dirigi-me ao funcionário das finanças para entregar a relação de bens.
Já nos conhecíamos, porque, por coincidência, trabalhara numa pequena cidade onde fiz o meu estágio de advocacia. Recebeu-me pois cordialmente e despachou-me com eficiência, mas, pela quantidade de papéis que teve de confirmar, demorou-me bem mais de meia hora.
Enquanto me atendia, na secretária ao lado outro funcionário recebia os papéis de IRS de um contribuinte. Andariam os dois, funcionário e contribuinte, pela mesma idade, e pelo teor da conversa, que não pude deixar de ouvir, conheciam-se perfeitamente.
O funcionário percorria com o lápis todo o formulário e assinalava a cruzinhas os campos de confirmação. Chegados às deduções à colecta, benefícios fiscais, reparando que o contribuinte declarara uma doação para a associação de desenvolvimento local, levantou os olhos do formulário:
- Ouve cá! E o número de contribuinte?
- Qual número?
- O Número da associação… tens que dar para controle… sabias?
- Eu sei lá agora o número…
-Espera lá – levanta-se e regressa com o jornal da terra- pode ser que venha no cabeçalho… - e lendo a capa- vá… desta tens sorte… cá está!
E prosseguindo a leitura do campo das doações, faz um trejeito, leva a mão à calva, contorce-se, atira:
- Bem… aqui diz que doaste quinhentos euros para a igreja... hum...
- Sim… Doei…Qual a dúvida?
-Hum… É que não te vejo capaz de um gesto desses…
- Deixa-te de coisas… doei… já disse… quinhentos euros…
- Foi para as festas do S. João… foi?
- Não… Para as obras do telhado.
- Hum… E para o telhado porquê; se nem à missa vais?
- Ouve lá… Também tenho de me confessar?
- Confessar não… Mas o senhor prior passou-te papel disto?
- Sim passou…
- Pronto... assim fica tudo em ordem. – E devolvendo o formulário - não te sabia tão religioso…
O contribuinte arrumou os papéis numa pasta que trazia, deu um aperto de mão ao funcionário e saindo, perguntou já da porta:
- Ouve lá!... Há mesma hora do costume, na Gertrudes… Para almoço?
E o funcionário, com um gesto de cabeça, anuiu.
Uma história sobre cães
Me pede o Gonçalo que diga.
Pois lá vai:
Um cão e uma cadela
Fugiram da casa do dono
A cadela era linda
O cão era um mono.
-Mais, tio!... Conta!
Suplica o Gonçalo.
Foram pela estrada fora
Cada qual para seu lado.
A cadela sempre a chorar
O cão sempre cansado.
-E depois?... E depois?
Quer saber o Gonçalo.
Chegados ao fim do Mundo
Resolveram regressar.
A cadela lambeu as crias
E o cão foi descansar.
Uma história sobre cães
Me pediu o Gonçalo que dissesse.
Pois já disse!
Os ranchos iam passando…
Mata escura! Mata escura!
Mata escura de Cabanas!
Sob as naves de verdura
Tudo eram formas humanas.
Cenário. Tudo cenário.
Ramos de sombra, silêncio…
Cenário que tudo ilude.
Beleza que era beleza
Só porque era juventude.
-Onde tens as tuas filhas?
-Casei-as. Estão casadas.
-E a que foi para a cidade?
-E a que anda pelas estradas?
Cenário. Tudo cenário.
Cenário que tudo engana.
Beleza que era beleza
Animal, física, humana…
-Diz-me o nome do teu pai!
Porque tens terra lavrada?
-A mãe se o souber que o diga!
Que os filhos não sabem nada…
-Que é da Custódia da Fonte?
-Que é da Ofélia das Caxenas?
E o vento
Tento
Vergava
Ramos de sombra e silêncio
Com suas asas morenas…
E não se ouvia mais nada!
Os ranchos iam passando…
Elas de roupa vermelha;
Eles de faixa entrançada.
E assim foi até ao dia.
-Cada qual vivendo a vida
Sem saber por que a vivia…
in "POVO QUE LAVAS NO RIO - 1969
Marcámos reunião na sala dos advogados. “Terreno neutro”, nas palavras do colega, “para que não houvesse equívocos” em relação aos clientes. Após análise dos documentos, chegámos a um acordo: O cliente dele, pagaria uma determinada quantia ao meu e o processo morreria ali.
Como se tratava de um colega muito mais velho, pu-lo à vontade para que, dada a quantia avultada, pudesse consultar o cliente. Ofendido respondeu-me:
-Colega… só se você tiver algum problema...
-Não é por mim, colega…- gaguejei- o seu cliente aceita?
- Ele “assina por baixo", colega... E a minha palavra dada a si, faz lei…
- Não é caso para desconfiança – insisti- mas dada a quantia… não seria prudente… veja lá…
- Não tenha problema, colega – sossegou-me- os meus cabelos brancos - e apontou para a cabeça – vê? já não suportariam qualquer tipo de desonra... - E estendendo a mão, concluíu- Por mim o acordo está firmado...
Perante aquele argumento de honra, não pude recusar. Firmámos o acordo com um simples aperto de mão, mas o meu coração naqueles dias andou “apertadinho”, porque em troca lhe entreguei todos os documentos que tinha a titular a dívida. Precipitação minha… o mal estava feito!
O que é certo, é que passados uns dias, telefonou a pedir-me o “NIB” do meu cliente. Fez a transferência na quantia acordada e arrumámos o processo.
Estava ao telefone a falar com ele, lembro-me bem, e a pensar: “Ufa, que alivio! Ainda bem que há gente de palavra!”
Outro dia ligou novamente a convidar-me para uma sopa de peixe. “ O peixe do rio da Vila dele, ainda era saboroso e valia a pena”, argumentou perante a minha hesitação, pela distância. Não sendo grande apreciador de peixe, é claro… aceitei.
E lá combinamos o almoço para a próxima sexta-feira! Ida e volta, trezentos Kilómetros; mas tenho de pagar esta dívida, quanto mais não seja, pela lição de vida que recebi...
Isabel Valério
De Badamalos,
Da casa ao fundo do povo,
Que saudades eu tenho
Daquele tempo
Em que te sentavas à lareira
A fazer o caldo!
A água fervia,
As batatas coziam primeiro,
Esmagadas na colher de pau,
Depois a carne, o feijão, as couves,
E aquele cheirinho
A cozido,
Subia do borralho,
Invadindo a casa
E saía pela janela,
Para a rua.
Quantas vezes nas férias
Fazia o caminho a pé
Só para ir assistir àquele ritual
Sagrado
De te ver fazer
O caldo
Com aqueles gestos calmos,
Medidos, ancestrais,
Que eu já sabia de cor,
E no fim,
A concha a mergulhar na panela
Bem fundo,
E a emergir
Com o melhor naco de carne,
A tigela a fumegar,
O fiozinho de banha
A nadar à tona
Com a carne, o feijão
E as couves.
Ai que saudades,
Isabel Valério de Badamalos,
Da casa ao fundo do povo!
Que saudades do teu caldo
A fumegar na tigela,
Libação dos homens
Aos deuses,
Aconchego do meu estômago,
Regalo da minha alma
Satisfação dos meus olhos…
E saudade…
Muita saudade...
Grata lembrança de alguém
Que há muito
Foi embora.