Nessa tarde, à saída do escritório esbarrei com o meu antigo professor de desenho. Já não nos víamos há uns anos e acabámos na cervejaria da esquina a beber umas canecas e a petiscar uma orelheira, enquanto recordávamos os velhos tempos. Separámo-nos já pela noitinha, bem aviados.
Á noite, chegou a minha namorada no expresso de Lisboa, mas como ainda tinha uma aula de literatura a dar, convidei-a a assistir. A tarde de copos não me permitiu preparar convenientemente a aula, pelo que, apanhando um livro à sorte na secretária e folheando-o, parei num belo texto de António Gedeão, que resolvi analisar com os meus alunos.
Entre eles, havia uma freira dos seus vinte e poucos anos, originária de uma numerosa família do Minho; boa aluna por sinal. Depois de uma breve introdução biográfica sobre o autor, pedi, como habitualmente fazia, a um aluno que lesse o seguinte poema:
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Aqui interrompi a leitura e pedi à freira que comentasse o poema. Ela, levantando os olhos do caderno de apontamentos, fitou-me demoradamente, mas nada disse. Eu insisti e quis saber “que efeito poético utilizava o autor para traduzir a vida árdua e repetitiva da Luísa”. Novo silêncio. Perguntei se alguém na sala sabia. Ninguém.
Então lá fui explicando, que era através da repetição do “sobe” no início de cada verso. Quis saber um exemplo concreto no poema, onde resultasse nítida a vida cansativa de Luísa. Ninguém sabia também. Perguntei à freira. Novo silêncio.
-Então –expliquei- não será na parte em que passam os magalas, lhe apalpam as coxas e não dá por nada?
-O Sr. Doutor lá deve saber – respondeu, trocista, a freira.
E a leitura continuou:
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Interrompi de novo, para saber onde é que no poema resultava a vida agitada de Luísa. Ao novo silêncio, lá fui explicando, que “era nas tarefas diárias que exaustivamente o autor descrevia”.
-E já agora – indaguei da freira- em que parte do poema se viu o extremo cansaço da Luísa ao fim do dia?
- O senhor Doutor é que deve saber…
- Então não foi quando - observei- caiu na cama, o homem se serviu dela e não deu por nada?
E prosseguiu a leitura:
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada,
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada...
Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada...!
Descendo pelo corredor, fui aludindo à forma magistral como em todo o poema, António Gedeão usa e abusa da diácope, da anadiplose e da anáfora para retratar a vida dos trabalhadores dos subúrbios de Lisboa. E aproximando-me da carteira da freira, propus-lhe que, sinteticamente, me fizesse um retrato físico e psicológico de Luísa, relação amorosa incluída.
Aí ela, virando-se na cadeira, para melhor ver a minha namorada sentada na carteira lá do fundo, atirou:
- Ora, porque não pergunta àquela senhora? Ela deve saber bem mais dessas coisas do que eu!
E dei por concluída a minha aula.
Viajava carregado de mercadoria
Na sua velhinha Bedford
Pelas terras da Raia
O Judeu Simão
Marrano de Belmonte.
Levava panos
Atoalhados,
Roupa de cama,
Chapéus de feltro,
Miudezas várias,
Que expunha na sua Banca.
Tinha o bichinho do negócio
Este Judeu Simão,
Marrano de Belmonte
E dia de Natal,
Montou banca na praça.
Trazia panos,
Atoalhados,
Roupa de cama,
Chapéus de feltro,
Miudezas várias,
Que expôs para toda a gente,
Mas de nada vendeu
Naquele dia Santo Cristão
O Judeu Simão
Marrano de Belmonte!
Manuel Buiça, um dos regicidas, foi um respeitado mestre-escola numa pequena vila do Distrito de Beja. A sua vida resumiu-se durante anos ao caminho entre casa e a escola, onde ensinava, diz-se, com inexcedível zelo, a cartilha maternal.
Os dias, as noites, as estações, os trabalhos do campo corriam também iguais, ano após ano; o latifundiário no conforto da sua casa senhorial, colhendo o lucro; os jornaleiros nos miseráveis casebres dos montes, vendendo a saldo a força bruta do trabalho, e o Buiça, ensinando a mesma cartilha a gerações de petizes, que se iam revezando nos bancos da escola.
Isto foi assim, até ao ano em que a ditadura de João Franco permitiu que o preço do pão aumentasse num só mês, mais de 300%. Aí os jornaleiros acordaram da letargia política em que viviam e perceberam que se o pão sai todos os dias a fumegar do forno, é porque alguém o lavrou, semeou, ceifou, malhou, moeu, tendeu e cozeu.
Daí à premissa de que sem o trabalho, a terra nada vale, foi um passo; o suficiente para, inconscientemente, fazerem meio percurso na teoria marxista da luta de classes. A “síntese” viria com a greve geral aos trabalhos agrícolas daquele Verão, reclamando o aumento em dois reis a jorna.
Vieram agitadores da capital organizar a greve. Fizeram-se piquetes; o povo cerrando os punhos na sua luta, que a batalha pelo pão, seja em que circunstância for, é sempre justa. O capital não desarmou e enviou a tropa intimidar o povo tresmalhado, reconduzi-lo ao redil dos montes, à escravidão do campo.
Os grevistas cerraram fileiras, não arredaram pé, e a greve prolongou-se por várias semanas com as searas por ceifar em todo o Alentejo, a fome rondando as casas portuguesas.
Como já não é de agora, a “corda acaba por rebentar sempre no lado do mais fraco”; e assim sucedeu: Os jornaleiros se não trabalhavam, também não ganhavam; e se não ganhavam… não comiam. É a outra face do materialismo dialéctico de Hegel, que Marx nunca explicou.
A fome generalizou-se, e aos poucos, o clamor das barrigas vazias ouviu-se bem mais alto que o das ordens de luta inspiradas nos socialismos hegeliano e proudhoniano. É que a utopia é bonita, mas a realidade... bem diferente.
A desmobilização tornou-se, pois, inevitável. O problema seria a repressão que se adivinhava sobre os cabecilhas da greve.
E foi aqui que o nome de Manuel Buiça, entrou na História. Indigitado pelos grevistas, dirigiu-se ao governo civil de Beja, negociando a rendição em troca de uma “amnistia geral”.
Obtida a garantia sobre “palavra de honra” do governador, que assim seria, conseguiu o Buiça o fim da greve, dando também a sua “palavra de honra” de que não haveria represálias.
Mas não foi isso que aconteceu. João Franco querendo prevenir futuros levantamentos populares, resolveu fazer do caso um exemplo paradigmático e ordenou a prisão dos cabecilhas, que foram levados a ferros para a sede distrital, torturados, julgados e deportados para as colónias, que o mesmo é dizer: condenados à morte.
O Buiça, que havia “empenhado a sua honra” na realização desta diligência, sentiu-se traído. Agora os olhares que se cruzavam com ele no caminho de casa para a escola já não eram de respeito e admiração, mas de silenciosa e pesada acusação. Ninguém o dizia, mas os olhares, só por si, falavam: O carrasco fora ele… não outro.
Remoendo a tristeza e a raiva durante dias, decidiu que não podia viver assim... sem honra. Vai daí, jurou repara-la. Mas repará-la como? Do governador civil, “pau mandado” de Lisboa e também ultrapassado na situação, como ele? Não; o mentor estava no terreiro do paço e tinha um nome: João Franco. Ele lha lavaria com sangue, que à honra dos homens é com sangue bem quente, a jorrar das feridas, que se lhe apaga as nódoas.
Se bem o pensou, melhor o fez. Numa soalheira manhã, deixando a porta de casa simplesmente no trinco, como sempre fazia quando ia para a escola, partiu ele para Lisboa, onde gradualmente, se foi integrando nos grupos da carbonária e do partido republicano, sempre com o fito de matar João Franco.
E na tarde do fatídico 1 de Fevereiro de 1908, lá estava o Buiça nas arcadas do terreiro do paço, carabina aperrada sob o varino, à espera do João Franco, como de um coelho.
Só que a História tem destes imprevistos: Após a recepção ao rei no cais das colunas, João Franco, que, dizem, já andava desconfiado, resolveu não acompanhar a comitiva e atalhou pelo edifício do arsenal.
O Alfredo Costa, outro dos regicidas, rompendo em pânico pela multidão, chegou-se ao Buiça e, aludindo ao João Franco, desabafou:
-Aquele porco, vai-se-nos escapar outra vez! - E apontando para o landau onde vinham o rei e o príncipe-herdeiro - Já que aqui estamos… e se aproveitássemos para deitar abaixo aqueles dois?
Ao que o Buiça, saindo das arcadas e levando a carabina acima do ombro, retorquiu:
- Vamos a isso, então!
A História, nesse preciso momento, deu uma reviravolta; e o Buiça não deitou abaixo o “coelho”… mas duas “lebres”! Uma grande... outra média, “de uma cajadada só”! .
Era pelo fim do dia. Estava Cunha Leal em animada tertúlia com os amigos no seu escritório de advogado, ali para os lados do Camões, Lisboa, quando da janela viu chegar numa tipóia o velho Duque de Saldanha no seu imponente uniforme de gala, peitorais cheios de medalhas, espadim de arrasto.
Subiu-lhe o Duque a escadaria e desembocou na sala. “Vinha com pressa…assunto urgentíssimo de estado… e precisava dar-lhe uma palavrinha” e dito isto, arrastou-o para o gabinete reservado.
O velho Saldanha, que acabava de sair à testa de mais um pronunciamento militar, explicou então ao que vinha: “Daquela vez era para valer. O Pais estava uma choldra… o rei era um inútil… os partidos uma corja de ladrões e parasitas”. Para acabar a “peçonha”, dizia , "fazia-se um governo de unidade nacional, reformava-se o pais de alto abaixo… saúde, justiça, instrução pública, fazenda, colónias… e –cereja no cimo do bolo- metia-se a família real no vapor a caminho de Inglaterra".
Quis saber do Cunha Leal “se podia contar com ele para redigir os indispensáveis decretos”. Ao que este, imaginando-se já um outro Mousinho, anuiu indagando “para quando os quereria o Duque”. Dada a urgência, fez saber este, “seriam para o dia seguinte, pela manhã, para a audiência com o rei”.
Saiu o Duque como veio, e pôs Cunha Leal ombros à difícil empreitada. Numa longa noite de vigília, redigiu a esmo os decretos que Saldanha lhe pedira. Pela manhã, a caminho do paço, apanhou-os o Duque no escritório de Cunha Leal. Uma grossa pasta, que levou debaixo do braço.
Mas chegado ao paço, D. Luís, que já sabia ao que o Saldanha vinha, levou-o em grande familiaridade para o jardim. Elogiou-lhe a inteligência, o brio militar, aludiu ao parentesco entre a casa de Saldanha e dos Braganças; em suma... amaciou-o. Por fim, a estocada fatal: Mostrou-se ofendido, “Muito lhe custava, um herói como o Saldanha, a quem a coroa, a Igreja, a nação tanto deviam, acabar assim… inimigo do rei, de Deus e dos bons princípios cristãos que regiam a nação... ignomínia das futuras gerações”.
Aí, o Saldanha, que era tão hábil a conquistar o poder, como inapto a mantê-lo, inchou de orgulho, esqueceu a pasta e deixou ficar tudo como dantes.
E o Cunha Leal, desiludido, acabou a desabafar na roda de amigos da Brasileira, ao Chiado:
- Ora merda! E foi para isto, que ele me fez perder uma noite inteirinha de sono?
Foi uma pândega geral!
Ela há-de vir um dia
bater-me à porta
e eu hei-de ir devagarinho
espreitar pelo óculo.
E lá da cozinha perguntar-me-ão:
- Pai, quem é?
e eu simplesmente direi:
-Ninguém... filhas. É engano...
Ouvindo cá de dentro
o frio silvo da sua boca,
não abrirei
E ela há-de cansar-se...
ir -se embora,
e o tempo das margaridas
voltará ao campo,
o trigo e os frutos
cobrirão a terra,
e nós ceifaremos esse trigo,
vindimaremos as vinhas,
faremos o pão
no branco tabuleiro da vida,
pisaremos as uvas
nas frias pedras da ilusão,
mandaremos vir a banda de Loriga,
lançaremos dúzias de foguetes
nos céus
do nosso pequemo mundo,
enfeitaremos a rua com arcos
e balões,
convocaremos toda a gente
para a festa
e repartiremos
a beleza,
o sol,
a terra,
a alegria,
o amor,
com sabor a pão
e a vinho.
E quando me voltarem a perguntar
lá da cozinha,
no andar de cima:
-Pai, Quem era?
Eu simplesmente direi:
-Ninguém... Filhas.
Ninguém...
As árvores despiram-se
Completamente
E a erva nova desponta
Nos montes.
A sombria floresta morre,
O ventre da terra renasce
E eu sento-me aqui, na fonte,
Com as minhas negras folhas
E a nostalgia que me oprime,
A ver tudo isto.
À minha frente levantam-se,
A morte e a vida
Ao mesmo tempo,
Nos acordes de uma guitarra,
Que entram pela alma,
O canto e o lamento
Deste pequenino paraíso
Onde o Criador
Apenas se esqueceu de pôr,
Para que fosse perfeito,
-e isto é uma reclamação-
Umas flores,
Coisinha pouca,
Um tronco. Um ramo
E nele poisados…
Dois pássaros.
Estivera uns dias fora. Ao empurrar a porta, no chão, um subscrito amarelo atirado pela ranhura do correio. Pensei: “Hum… quem me escreverá, ainda por cima, num envelope amarelo?”. Intrigado, apanhei o subscrito. Não trazia remetente. Mais intrigado fiquei. Abri-o logo, rasgando-o por um dos cantos.
Dentro, uma folha dobrada em três, escrita numa letra difícil, cursiva, em maiúsculas. A data, a seguir um “caro”.... e depois, um nome ilegível. Tentei decifra-lo, desisti e saltei o texto, que continuava assim:
“ É preciso mesmo azar, meu. De todos os gajos que já lá foram, só a ti pediu os três ou quatro contos de réis. Mudava o parágrafo e a seguir: “Ou tu és mesmo um frouxo –o frouxo, vinha entre comas- ou ela é uma grande…”, aqui novamente ilegível, mas depreendi, pelo contexto, que seria palavra feia.
Mudava o parágrafo e prosseguia no mesmo teor: “Pelo menos consola-te; no meio de tanto azar, a tabela de honorários – novamente entre comas- que te aplicou, está francamente desactualizada”. E prosseguia: “avaliando pela tabela, a tipa -aqui outras comas- deve ser mesmo"... aqui, saltei o texto novamente.
Outra mudança de parágrafo, com a seguinte pergunta retórica: “E se lembrando-se de correr pelo prejuízo, ela cobrasse a todos os que, para além de ti, já lá foram? “ a que dava a logo a irónica resposta: “Já reparaste? Seria o euro milhões!”.
Num último paragrafo, mostrava solidariedade e “sugeria uma subscrição geral e pública, entre todos os que lá tinham ido, conhecidos e não conhecidos”, porque “ou havia moralidade, ou já que se todos tinham comido – novamente comas- todos deviam pagar”. A concluir, estabelecia como forma de cálculo, o “pagamento à sessão”, para o que “cada um deveria com a maior honestidade possível, confessar quantas vezes lá tinha, ou não, ido”.
E assinava, de forma também ilegível.
Não percebi “patavina” da carta, confesso. Além da letra arrevesada, fazendo uso frequente das comas, não descortinei o sentido daquele “já lá foram” e da sugerida "subscrição pública", muito menos por que motivo me fora dirigida a mim, que não me lembrava de ter ido a nenhum lado em especial nos últimos tempos.
Foi então que me lembrei de ler com atenção o envelope. À luz da janela, li um primeiro nome, ilegível, seguido de um apelido... “Tavares”. Pus-me a dar "voltas ao miolo", para saber quantos Tavares eu conhecia. Nenhum... assim á primeira vista... nenhum!. Conclui então que deveria ser engano. Mas, reparando melhor, o resto do endereço era o correcto...
Esquisito, mesmo! Em todo o caso, excessivo!
Bronzino, pormenor de S. Sebastião, sec. XVI.
Numa das colinas, a vila morta,
Na outra, o carvalhal descendo, sombrio,
Entre as duas, cantando, vai o rio
Passar ao fundo da nossa horta.
Sobre o muro desta, uma tenra nogueira,
Embutidos na parede três degraus,
A facilitarem a desnivelada entrada,
E acima deles, subindo, a pequena videira,
Apoia-se em dois firmes paus,
Fazendo, aos poucos, uma latada,
Que não tarda, dará bom vinho.
Logo do outro lado da estrada,
Ficam as casas da Isabel Afonso e da Lurdes Monteiro,
Que têm, na sua capela, S. Sebastião, como vizinho,
Mais acima, as do Zé Prata, do Seixas, do Zé da Cruz, do Rasteiro,
E à saída, fazendo cotovelo, as do Lavajo e do Cerdeira
E lá bem no alto, no Arsaio, o enorme cruzeiro,
A querer abarcar a povoação inteira
numa benção terna ...
e demorada.
Naquele dia 14 de Maio de 1982, destacaram-me para trás do palanque do altar do Papa. Antes tivera o previlégio de uma audiência no seminário. E ali estava eu; a meu lado, uma figura enorme, imponente, vestida de negro, que pelo cordão da cruz peitoral a saír-lhe do bolso interior do casaco, percebi ser um dos arcebispos do "staff" papal.
À homilia, como não tivressemos onde nos sentar, arrastou-me amavelmente pelo braço para umas pedras, que por ali havia, junto à muralha do castelo.
Falava num espanhol fluente e respondia-lhe eu em português escorreito. Só para que conste! Perguntou "de onde era eu. "Nascido em Coimbra", informei. "Conhecia bem... tinha uma antiga e prestigiada universidade", observou. "O que fazia eu ali, tão longe no Alentejo", quis saber. "Estudava Teologia em Évora", esclareci.
Sentámo-nos na mesma pedra, ombro com ombro. Deu-me uma palmadinha afectuosa nas costas e tirou do bolso um maço de cigarros. "Se eu fumava", ofereceu. Hesitei. Não achei apropriado aquilo a meio da homilia. Desculpei-me com um "só cachimbo, monsenhor". Aí, guardou o maço, exibindo um cachimbo. "também ele"; e sorrindo: " já tinhamos duas coisas em comum... a Teologia e o cachimbo".
A conversa foi-se desenrolando, agradável, durante toda a homilia. Falamos sobre Teodiceia, mostrando-se "admirado pelos meus conhecimentos". Aí expliquei que "andava a preparar o exame final de Teologia Filosófica". Ele com outra palmadinha, assegurou-me que "iria de certeza conseguir boa nota". Por fim, estendeu-me um cartão com o seu número de telefone, onde pude ler: "Paul Marcinkus, arcebispo, Cidade do Vaticano", e concluíu:
- Para o que precisares!... já sabes; procura-me... nunca se sabe...
O cartão andou perdido uns tempos lá por uma gaveta da secretária. Ouviria mais tarde falar do arcebispo, a propósito do seu envolvimento na falência do banco Ambrosiano e das ligações da Loja Maçónica P2 ao IOR (Instituto das Obras Religiosas). Pensei: "que rico patrono logo eu fui arranjar!".
E dei sumiço ao cartão.
Se hipoteticamente
me aparecesse
uma fadinha de condão
a conceder um desejo,
eu não escolheria dinheiro, riqueza,
sucesso, saúde...
Não!
Pediria antes uma borracha mágica,
uma daquelas borrachas que permitisse apagar o tempo
e varreria das calendas
parte do ano de 2005,
todo o 2006
e também Janeiro de 2007.
Sem hesitar,
apagaria
parte de 2005,
todo 2006
e Janeiro de 2007
Assim...
Sem mais
Num abrir
e fechar
de olhos!
Rafael, que bêbado estás!
-A mulher?- ficou em casa mais o garoto.
Rafael, que bêbado estás!
Encosta-se à grade, dá um arroto
Cambaleia, inclina-se para trás.
Leva a mão à algibeira,
Manda vir mais uma cerveja
Tira com vagares a carteira
Gorda de fazer inveja
Rafael, que bêbado estás!
A música ecoa no salão
E ele…mais um balanço para trás
Poisa a garrafa no balcão.
Rafael, que bêbado estás!
Danças? Danças? – “Atão” não danço!?
Dirige ele, ela segue-o logo atrás.
Gira, volteia, dois passos à frente, um atrás.
E lá vai ele baile adentro, ganhando balanço,
Girando… volteando… dois passos à frente, um atrás.
Ah Rafael! que bêbado estás!
Ele há coincidências incríveis! Não é que ontem, quando tentava acalmar a insónia, dei por mim, noite alta, a percorrer as lombadas de livros na estante da sala?
Hesitei entre a «História da Filosofia» do Nicola Abanhano, um tratado sobre «A Verdade» de Bertrand Russel, as «Poesias Escolhidas» de Pedro Homem de Mello, «As Religiões da Lusitânia» do Leite de Vasconcelos, a «História da Administração Pública» do Gama Barros, as “Escutas Telefónicas» de Manuel Valente, mas acabei atraído, imagine-se, pela «Cidade e as Serras» do Eça, indevidamente arrumado na prateleira do chão, entre o nono e décimo volumes do «Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa».
Pensei: “Foram a Marta ou a Catarina, quando cá estiveram, que o tiraram da ordem”. Nada me irrita mais que os livros fora de ordem, na estante. De cócoras, puxei o livro para o juntar aos restantes do Eça, e acabei por abri-lo. Folheando-o ao acaso, li o seguinte texto no último parágrafo, do capítulo VII do mesmo:
“Só o relógio monumental, que marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, se compadeceu, batendo a meia-noite, anunciando ao meu amigo que mais um dia partira levando o seu peso – diminuindo esse sombrio peso da vida, sob ele gemia, vergado. O Príncipe da Grã-Ventura, então, decidiu recolher para a cama – um livro… E durante um momento, estacou no meio da Biblioteca, considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com pompa e majestade como Doutores num Concílio – depois as pilhas tumultuárias dos livros novos que esperavam pelos cantos, sobre o tapete, o repouso e a consagração das estantes de ébano. Torcendo molemente o bigode caminhou por fim para a região dos Historiadores: espreitou séculos, farejou raças: pareceu atraído pelo esplendor do Império Bizantino: penetrou na Revolução Francesa donde se arredou desencantado: e palpou com mão indeliberada toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até à aniquilação de Corinto. Mas bruscamente virou para a fila dos poetas, que reluziam em marroquins claros, mostrando sobre a lombada, em ouro, nos títulos fortes ou lânguidos, o interior das suas almas. Não lhe apeteceu nenhuma dessas seis mil almas – e recuou, desconsolado, até aos Biólogos… Tão maciça e cerrada era a estante de Biologia, que o meu pobre Jacinto estarreceu, como ante uma cidadela inacessível! Rolou a escada – e, fugindo, trepou até às alturas da Astronomia: destacou astros, recolocou mundos; desceu, começou a procurar por sobre as rimas das obras novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate. Apanhava, folheava, arremessava: para desentulhar em volume, demolia uma torre de doutrinas: saltava por cima dos Problemas, pisava Religiões: e relanceando uma linha, esgravatando além num índice, todos interrogava, de todos se desinteressava, rolando quase de rastos, nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na ânsia de encontrar um livro! Parou então no meio da imensa nave, de cócoras, sem coragem, contemplando aqueles muros todos forrados, aquele chão todo alastrado, os seus setenta mil volumes – e, sem lhes provar a substância, já absolutamente saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua abundância. Findou por voltar ao montão de jornais amarrotados, ergueu melancolicamente um velho «Diário de Notícias», e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.”
Sendo a minha biblioteca, infinitamente mais modesta que a do bom Jacinto, nem tive a veleidade de subir à Astronomia, recuar até aos Biólogos, pisar as Religiões, saltar Problemas. É que a prateleira mais alta das minhas estantes, está bem ao alcance da mão e, o cumprimento das lombadas, abarca-o à vontade três medidas dos meus braços abertos.
Assim, percebe-se bem, que enfadando-se o bom Jacinto com tanta abundância, mais depressa me enfadei eu com tanta falta dela.
Voltando a enfiar o livro na prateleira e, dando meia volta, durante um momento estaquei no meio da sala, desanimado, à procura de um jornal, de um papel qualquer para ler.
Pelos vistos, aqui não há memória de que algum dia tenha chegado o «Diário de Notícias»! E os papéis soltos, esses, acabam invariavelmente na lareira, a atear o fogo!
À falta de melhor, apanhei resignadamente um velhinho «Nordeste» que estava esquecido no parapeito da janela, debaixo de uma pilha de códigos desactualizados, e com ele debaixo do braço subi ao meu quarto, para dormir, para esquecer também.
Um dia hei-de ir por este rio acima
Até Barca d’Alva
E descer pelo outro rio
Até à foz,
Até ao mar
E depois,
Hei-de condensar-me em nuvem,
Ser chuva,
E regressar
Outra vez
Aqui.
Esta urgência em subir o rio,
É uma vontade recorrente que me dá
Quando estou cansado de mim,
Da indolência destes montes,
Do canto nítido dos pássaros
Nas ramadas das árvores,
Da voz da pedra e da água
Entre as raízes,
Da raposódia do vento,
Do sol a queimar o frio
E a alma.
Um dia,
Juro!...
Hei-de ir por este rio acima
E ir pelo outro rio abaixo
Até ao mar…
Hei-de ir
E voltar...
Um dia...
À minha boca afloraram
as àguas e as sílabas
das sombras da noite.
A boca da vida,
a tua boca,
beijou a minha boca.
E deixei-me ir,
nas águas
desse teu olhar,
nessas àguas marinhas,
com sabor
a fogo verde,
sabor a sal,
sabor a mar.
Desta vez resolvi
ser feliz.
E que mal vem ao mundo
nisso?
Acontece que sou feliz...
e pronto!
Levanto-me e deito-me com o sol,
lavo-me na fonte,
dou os meus passeios matinais
e pinto...
pinto que nem um desalmado,
cavalete armado à janela
da sala
e prendo-me com pequenos nadas...
a vida simples do campo é assim:
cada segundo parecendo uma eternidade,
cada pormenor saboreado diliciosamente,
sem a pressa das cidades.
Ontem passou à porta o chico
que ía às merujes lá para os Labaços
-sei que aprecias... e vou-me a elas para ti-
me disse ele,
e encertámos uma joropiga
que me dera o capitão Vaz
-dois copos bem medidos, para cada um-
e á noite,
imaginem só!...
que surpreza!
sabendo-me convalescente, apareceu ela
caixinha na mão aberta,
-Queres experimentá-los?
e insistindo:
-Anda, vá!... o que se perde?
era uma caixinha de doze,
"made in tailândia".
-Os doze... todinhos?
e abrindo um sorriso:
-E porque não?... é só quereremos...
E naquela noite
choveu,
de Norte a Sul
Choveu,
Choveu sobre as grandes árvores
da minha aldeia
e sobre as casas
de velhos telhados
à antiga portuguesa
choveu.
Pois foi...
toda a noite a chuva caiu...
Mas ninguém a ouviu.