História breve
de vários meses dormindo juntos
mãos nas mãos,
lado a lado deitados,
Tu o prado mais verde destes campos,
eu a ver subir de ti
um bando de pássaros novos
ensaiando o voo
- pétalas soltas dos meus poemas
caindo sem conta
num oceano azul-
e papoilas,
centenas de papoilas rubras
-a cor do sangue-
muitos jasmins
frescos,
rosas brancas, de irresestível paz,
nascendo-te dos cabelos,
taças de licor de gilipapo
transbordando no meu coração,
indomáveis fogueiras
ardendo na tua fronte,
explosões de luz e de cor
nos meus olhos,
Velas de barcos rabelo
incendiadas
descendo o teu corpo,
e a serenidade de um carvalho
secular
na orla do teu umbigo,
colunas de aromas
subindo-te das coxas,
o gosto amargo
dos mamilos,
sabor a pecado,
a pêssego,
amora,
romã
figo,
uva,
maçã,
cobra-coral,
cintilação de estrelas
enroscadas à cintura,
Planície,
Castanheiro, ouriço, Outono,
terra,
vasto arvoredo,
sombra refrescante,
tranquilidade,
sono,
perdição dos meus sentidos
Porém,
História breve
dos vários meses que dormimos juntos,
mãos nas mãos, de oiro vazias,
lado a lado deitados,
e as horas passando todas
sem que delas nos lembrássemos.
Noites de hotel,
quando a chuva e o frio
vinham
em que tu entreabrias a janela,
só para que o luar entrasse...
e aquelas bodas se iniciassem
com a perdição dos meus sentidos.
O tio de que mais gostei, confesso-o hoje, foi o meu Tio Francisco "Joano", casado com a irmã mais velha de meu pai.
Foi um homem simples, honrado, trabalhador, alegre, cumpridor das leis de Deus e dos homens. Era de estatura invulgarmente baixa, orelhas de abano e de uma expontâneadade invulgar, mesmo nas situações mais embaraçosas.
Viveu numa casa rústica, de rés-do-chão a servir de adega e onde se guardavam as tulhas de pão, com um minúsculo primeiro andar de habitação, dividido ao milímetro, onde conseguiu meter uma pequena sala, dois quartos em tabique, uma vasaleira imbutida na parede e uma cozinha, separada do estreito corredor por uma parede em tabuinhas pintadas a verde. Foi naquela pequena casa, onde mal duas pessoas juntas conseguiam esticar os braços, que criou a numerosa prol de sete filhos.
Pois, quando morreu o meu outro tio, ofereceu a salinha, com tabuado já comido do caruncho, para o velório. A meio da noite, com o peso da gente, o chão cedeu e acabaram todos no rés-do-chão, entre pipas de vinho e tulhas de pão, mais o morto.
O Tio Francisco, levantando-se de uma nuvem de pó, entre duas pipas, afastando de cima o morto, desabafou:
- Desculpa lá o mau geito Manel... desta vez vais ter de ir para esse lugar, mas sem mim!
Entre choros do velório e os ais da queda, ouviu-se um uma risada geral. E ele, não se dando por achado, ajeitando a farpela ao morto, virou-se para a viúva chorosa, acrescentando:
- Descansa cunhada... ele não se aleijou - e apontando o morto- vês?
E ela, dizem, riu também a bom rir.
Vilar Maior. Janeiro. Tantos de tal.
Aqui continuo eu,
sózinho,
perto do berço onde nasci,
à sombra do velho cedro
onde repousam os ossos dos meus
e de pensamento longe...
sempre longe...
nas falésias do mar.
Os pés e as mãos, são de lavrador,
mas o coração, esse,
é de vagabundo,
de marinheiro.
Que hei-de eu fazer assim,
Sendo mais livre
que os grilhões destas serras,
mais vasto
que o verde destes lameiros
e no entanto de pele rugosa,
àspera,
como a casca de um carvalho,
os pés,
as raízes,
a àgua em baixo,
lenta,
por debaixo da terra,
os pássaros em cima,
nas mãos,
e o vento,
o ar cantando como uma guitarra,
umas vezes com "olés",
sapateado,
outras, triste,
pungente,
como o fado?
Que hei-de eu fazer, assim?
Vá Lobo, diz-me tu,
que és poeta!
Aqui no campo
o vento.
E quando se levanta,
repentino...
o vento
fustiga o altos ramos
das árvores,
lambe-as, beija-as,
abraça-as,
acorda o silencio dos montes,
traz o cheiro a terra,
a raiz,
a giesta,
a salgueiro,
um canto louco
de pássaro,
uma cascata,
um balido
de cordeiro.
Então,
transido de frio,
Subo as abas do casaco,
salto a regadeira
para ma abrigar nas fragas,
Enterram-se-me as botas na lama
e uma súbita rajada
de vento,
assobiando,
lava-me
a boina
para longe,
muito longe...
cada vez mais longe...
mais e mais...
e com ela
o pensamento
e as saudades...
as muitas saudades
das minhas filhas.
Sardinheiras
à varanda...
cheiro intenso
a flor,
flor do povo,
bandeiras verde-rubro
que nos saiem da alma,
e o sol,
esse silencioso girasol,
reflectido
nas vidraças,
enérgico,
encandescente,
fulminando os olhos.
Já não falava. Estava entrevada há anos. Extensa a prol; muitos os netos, todos homens.
Naquele dia a filha visitou-a para lhe dar a novidade: "iria ter outro netinho. Desta vez, menina".
Então, pediu que a sentassem e apontou impaciente o guarda-fatos, aos pés da cama.
O marido abriu as portas, as gavetas, procurou exaustivamente, e por fim, afastando uma tábua solta, retirou da parede uma caixa de sapatos.
Num gesto largo de mãos pediu que lha entregassem e, para espanto geral, despejou o conteúdo - todas as jóias de família- nas mãos da filha.
O marido ainda perguntou "se os outros netos não herdavam nada".
Acenou "que não". E fechando as mãos da filha, com a serenidade de quem acabava de lavrar uma escritura em cartório, reclinou-se na almofada, e sorriu...
onde é que há sombras como a destas casas?
Onde é que há noites como a destas luas?
Onde é que as águias abrem mais as asas
Do que este vento, apunhalando as ruas?
Pedro Homem de Mello
Ai quem me dera a minha infância
O meu cavalinho de madeira
Para ir por esse mundo fora a galope,
Cabelo ao vento,
Sem códigos para estudar
Pecados para descontar
Boca para te beijar.
Quem me dera ser crinça
Nem que seja por um dia só!
O meu tambor, a minha cornetinha de feira
Para me deitar na laje da eira,
Sozinho,
A ver o céu,
As nuvens passando,
Cada peito, uma arriba sobre o mar,
A respiração o vento frio do Norte,
Cada pensamento um navio
Que me leva àqueles tempos, aos dias mesmo felizes
Em que o telhado lá de casa andava cheinho de pombas mansas,
A marulhar... batendo as asas
E tu sentada no balcão,
Soltavas as longas tranças
Para eu brincar.
Quem me dera a minha infância
Nem que fosse por um dia só!
Eu iria por esse mundo fora, a galope,
Sem códigos para estudar,
Pecados por descontar,
Boca para te beijar.
Vêm à nossa aldeia desde que me lembro de ser gente - primeiro os pais e avós, agora eles - tocar na festa em honra do Divino Senhor dos Aflitos, no primeiro Domingo de Setembro. Conhecem as nossa famílas, nós as deles; eles lá nas faldas da Estrela, em Loriga; nós aqui neste ermo de Riba-Côa, Vilar Maior.
Ontem fizeram-nos uma surpresa. Juntaram um grupinho de vinte e apreceram expontâneamente com os instrumentos na festa de S. Sebastião. Percorreram as ruas da aldeia a tocar e abrilhantarm a missa e a procissão.
O Almoço foi na praça: Assadores em fila, quilos de carne, bom vinho e azeitonas talhadas do Augusto, queijo fresco da Ti Elvira -ah que consolação- e pimentos curtidos da Leonor - o estômago hoje ressentiu-se-, todos em excelente convívio.
Depois no Gata, a lareira acesa, o Vicente ao acordeão e todos em roda a cantar fado, canções de Coimbra, modinhas populares.
Ontem à roda daquela fogueira, enquanto cantavamos, reafirmámos a velha aliança tribal dos pastores Lusitanos da estrela e dos pastores Vetões de Riba-Côa contra o invasor romano. É que foi aqui -e em mais parte nenhuma- com as águas do nosso Cesarão, que os nossos antepassados amassaram a farinha e o fermento que daria Portugal.
Ontem, decorridos tantos séculos, à roda de uma fogueira, os mesmos pastores simples, rudes, frugais, o mesmo calor humano, a mesma generosidade e franqueza que não existe em mais parte nenhuma do mundo. Em nenhuma, mesmo!
Ontem, eu, que alegria! que satisfação! fui também pastor; entrei na roda e abraçando os dois músicos a meu lado, cantei também:
" Os teus olhos já foram meus, ai agora são d'outro",
E o calor inundou tanto a sala, que tivemos que abrir as portadas para que pudesse entrar o frio glaciar da rua.
Aqui todos nos esqueceram, todos nos abandonaram. Neste recanto de terra acima do Côa faz um frio de rachar, o rio congela, as arvores tremem, mas os homens ainda resistem, porque aqui nasceu e há-de um dia morrer Portugal.
Replantar uma vinha, aldeia, pintura, alguma poesia e sol... muito sol... verde e àgua.
num voo rasante sobre a imensidão azul do mar...
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
Cinco da manhã no relógio da cabeceira. Na rua, um bêbado canta num razoável contralto a aria "la dama es mobile"... chega à parte mais aguda e vacila... esganiça-se. Silêncio de segundos. Ataca de novo a melodia, já à porta do prédio... nova hesitação à parte mais aguda... voz esganiçada e nova pausa. No quarto ao lado a Catarina reclama:
- Ó pai, quero dormir!...
- Ó filha, é lá fora... não sentes?
O bêbado dá um sonoro "traque", bem audível no segundo andar. Sobe agora a melodia da "avé maria" de Mozart em nítido contrabaixo... - é um cantor a dois registos de voz, concluo eu na cama- a voz afasta-se, cada vez menos audível.
Ouve-se o barulho de contentores do lixo já longe a chocarem. Recomeça a cantoria do "la dama es mobile" , menos nítida agora. Dou uma volta na cama e pego outra vez o sono... a cabeça a trauteando: "la dona es mobile"... "la dona es mobile"... "la dona es mobile"...
Ela nunca tinha visto o mar. O mais perto que tinha estado, fora há uns anos, na Torre de Belém, quando foi visitar o irmão, que vivia para aquelas bandas. Ainda me lembra a conversa dela:
- É o mar aqui, João?
- Não mãe. Aqui não é o mar. É o rio ainda.
- O Tejo?
- Sim... O Tejo.
- Ah!... é grande!...
Agora estávamos no passeio da praia do Pedrogão... a maresia a dar-nos na cara, o sol a despencar na água:
- É aqui o mar, João?
- É mãe... é aqui o mar.
- Ah!... é lindo. E onde acaba ele?
- Oh mãe!... que pergunta... longe. Acaba longe...
- Mas longe, como?
- Muito longe...
- Mas longe quanto?
- Olhe mãe... sei lá!... imagine a distância daqui á Vila.... mil vezes, indo e voltando!
- Ah!... é grande o mar!. – e apontando o sol a desaparecer na água- e o que fica do outro lado?
- Do outro lado, mãe... fica a América... O Brasil....
- Ah! Tão longe o Brasil... Não fazia ideia... tão longe...
Ela desviou caminho e foi passar mesmo debaixo da varanda onde minha mãe regava as flores:
- Ó prima Isabel, dá-me um pézinho desse manjerico aí? - e quando a minha mãe ía já a cortar uma rama- não é desse... é daquele que tem lá dentro, em casa....
- Ó filha, esse tens de ser tu a colher... eu aí não mando nada!
E ela seguiu caminho, pela ladeira de misericórdia abaixo. Passados uns tempos emigrou e não o chegou a colher, com muita pena minha...