O velho Aurélio vivia à ponte, do outro lado do palheiro do meu avô, numa casa térrea com alpendre e pátio empedrado e trabalhava à jorna. Quase todos os dias o via a subir a ladeira da misericórdia, os caldeiros na mão para encher no chafariz, outras vezes, sentado na pequena pedra ao portão do pátio, sempre de cigarro no canto da boca.
Naquela altura já teria quase setenta anos e era, um belo velhote. Magro, a cor acastanhada do rosto, o cabelo e bigode brancos, de um branco amarelado e liso. No canto da boca o cigarro.
O meu entendimento, de seis anos, era ainda pouco para ler as feições calmas do Aurélio e atribuir-lhes significado. Mas ainda me lembro daquele rosto calmo, magro, com um invulgar sorriso a observar as brincadeiras das crianças no largo do chafariz.
-Corram para aí – dizia sorrindo – corram!
E sentava-se no muro, de pernas viradas para a ladeira. Puxava o chapéu para a nuca, tirava a saqueta do tabaco, as mortalhas, do bolso da jaqueta preta e ali ficava, tempos infinitos, a enrolar o cigarro.
-Ó ti Aurélio – gritávamos-lhe – olhe os caldeiros, que verterem!
Ele nada dizia. Ficava ali sentado a descansar em silêncio, gozando o sol fraco da tarde, até ficar escuro. Nós corríamos ferozmente por aquelas esquinas a jogar ás escondidas. Saltávamos o muro, brigávamos, fazíamos barulho.
Ele voltava de vez em quando a cabeça desgastada na nossa direcção e nos seus lábios surgia a ponta fumegante do cigarro e aquele sorriso frio e indiferente que ele habitualmente tinha. Enquanto o cigarro se consumia, as suas recordações andavam bem longe dali. Parava de sorrir, apoiava as mãos no muro, inclinava um pouco a cabeça grisalha e fazia um olhar desligado e brilhante e ao mesmo tempo turvo, o olhar que têm os pardais quando estão presos numa gaiola.
Sobre a testa alta caíam os riscos brancos da madeixa e em toda aquela figura nada mais se movia, para além daquela linha estreita e gasta de boca, que de vez em quando soprava uma coluna de fumo.
A sombra da capela deslizava ao longo do muro e descia a ladeira, cada vez mais comprida e fantástica, até que daquele velho restava apenas a silhueta de um gigante sentado, rodeado por uma fina nuvem de fumo. Do lado da ponte e da horta do Ti Albino Marques, a escuridão crescia, as empenas das casas, os telhados, desvaneciam-se na sombra generalizada, aqui e ali, uma janelinha acendia-se com o seu olho vermelho, e no meio daquilo tudo ele ficava a ruminar até ficar enregelado.
Quando via que a lareira de casa começava a fumegar, levantava-se calmamente, pegava nos caldeiros, e de mortalha apagada no canto da boca, descia as escadas da misericórdia, como se entrasse num mundo de trevas imaginário e impenetrável.
Sou homem,
mas antes queria ser
gato!
Dormir as tardes
ao sol,
cofiando os bigodes,
sonhar com os pardais,
fisgar carapau do prato,
desafiar os cães na rua
e fugir-lhes pela nesga da porta.
Não ter letras para descontar, prestações a pagar,
Nem patrão que nos masse
E em Março,
com as gatas no cio
Ah, em Março
é que haviam de ser elas!
O que eu não dava
para ser gato!
Não sei quantos Downloads descarregaste,
No cais da tua memória,
Quantas viagens fez a tua barca de marinheiro,
Quantas gaivotas na praia choram a tua ausência.
Mas o que eu sei, e posso jurar
É que o enfunar da vela ao golpe do vento,
A espuma a abrir-se à quilha,
Quando partes,
Convidam ainda a um último passeio sobre o mar
Em que apanhando a corrente ascendente,
Vou à bolina planando sobre as escarpas
Rodopiando, em círculos sem cessar
Num rodopio louco de saudade
Asas bem abertas,
tocando o mastro principal.
E Fechando os olhos,
-que vertigem! -
Ao compasso da ondulação
Picando sobre o mar,
voo rasante
Sobre ti
Uma,
Duas,
Tantas vezes,
Até desfalecer.
E quando abro os olhos
de tão cansado,
Já não tenho forças para voltar.
Que bela noite ordinária que eu passei!
Foi isso há tempos
num quarto defendido pelas pulgas
e vigiado por um vento carteirista
que morava (disseste)
mesmo ali ao pé.
o problema da luz foi o primeiro
(que resolvemos apagando-a)
depois o das torneiras
depois o do marinheiro
que queria entrar nos nossos problemas
depois o teu
o teu problema já na cama
- na cama com mais paciência que encontrei!
Depois
falaste com as torneiras
e eu gritei.
Gritei por calculado amor
por brilhantina
por miséria
gritei até pela vitória
(supremo humor!)
dos que se batem contra a Cara-Alegre
gritei p'ra não parar de gritar
gritei «Chapultepec!» e «Oaxaca!»
(nomes por excelência afrodisíacos)
gritei até descobrir
o sítio em que te «escondias»
e então deixei-te gritar...
Quando a noite resignada
abria a última pálpebra
gritei ainda: «Mas, é isto o espelho!»
E o dia levantou-se como um cão
(imagem acessível à família...)
da bela noite ordinária
que passei...
Alexandre O’neill
Inverno,
Luz turva
Um casarão enorme, branco,
Num pátio calcinado
Pelas brincadeiras
Das crianças.
O sentimento de terror,
Angustiante.
Entre as carteiras passava um homem,
Esguio, cabelo à escovinha,
A “menina” dançando no ar.
-Sete vezes seis? – Sete vezes seis?
E o vozeirão enchia a sala.
De pé,
Entre as carteiras,
Ía por cima das nossas cabeças
E o pensamento dava seis nós,
O estômago sete voltas.
-Sete vezes seis? – Sete vezes seis?
Nem dava tempo parar reflectir.
-Sete vezes seis? – Sete vezes seis?
-Cinquenta e seis!
-Adiante! Adiante!
Um, por sorte, acertava:
-Quarenta e dois?
E todos em fila, frente ao quadro,
Os bolos estalavam na mão,
Às dúzias,
A pele inchava, dorida,
As lágrimas corriam,
Furtivas.
E por fim,
Para o que acertara:
-Tu, também… Para que não esqueças!
Levantava a “menina” acima do ombro
-Anda, diz lá outra vez… Sete vezes seis?
E o corpo gemia:
-Quarenta e dois!... -Quarenta e dois!...
Morreu o Cesariny. Não o conheci na intimidade, como é obvio, mas ía jurar que foi numa cama de ferro, ontem pela madrugada, às seis horas menos onze minutos e três segundos, para ser mais preciso, durante dum breve sono, após doença prolongada. Não soube que morria, como desejou.
-A morrer – dizia ele numa das últimas entrevistas – que seja a dormir, sem dar por Ela.
No caixão, estou mesmo a ver, vai de fatinho preto e coçado, a calva branca, testa enorme, uma farripa para cada lado e mãos esguias, lívidas. Há-de levar por pirraça, as contas dum terço enroladas nas unhas amarelecidas com nicotina. Parecerá um "cadáver esquisito" para encomendar… Ironia até ao fim!
O Palácio das Galveias, a Igreja, estará na penumbra. À cabeceira a chama de dois círios tremelicando e a meio, um crucifixo bem saliente, com violetas por ramalhete. Aos pés, sobre uma almofada vermelha, pingando, as insígnias amarelas da Ordem da Liberdade, sobre um “mocho” a caldeirinha de água benta, e ao lado do caixão as figuras imóveis, da guarda de honra nas suas fardas brancas, barretes e sapatos brancos, para que se recordem as palavras do poeta, quando na sua assumida “bichice”disse:
- Meninos, pela manhã um. Dois marujos à tardinha!
Olho-o e não me atrevo a julgá-lo. Nem por sombras! Nestes assuntos, estou com Brandão: “Se estes homens praticaram alguns erros, pagaram-nos bem caros, com dias de tortura e de sensibilidade extras”. A sua sensibilidade até pesa fantasmas – enquanto outros comem, bebem, dormem e morrem como simples animais, eles dão-nos em espectáculo as suas dúvidas, a sua dor.
Cá por mim, faço meu o pensamento de Brandão, molho o hissope e desenho no ar o sinal da cruz, uma, duas, três vezes:
– Em nome do Pai, do Filho e do E espírito Santo – Que o mesmo é dizer: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, irmão! -.
E mergulhando o hissope na água benta, com um derradeiro olhar às insígnias, ao terço, às mãos, à calva, ao fato, ao féretro – nenhum livor cadavérico – me despeço com um:
- Adeus santo Cesariny!
Se o génio é um dos sinais da bênção de Deus, o sofrimento, é-o sem dúvida, da Sua misericórdia!
E ele teve os dois! Ele teve os dois!...
Uuu! Uuuuu!
Apita o comboio
Na linha da Beira Alta
Uuuu! Uuuuu!
Ao chegar ao Rochoso.
Lá vem o comboio-a-vapor
Taru taruu… Taru taru taruu…
Traz gente da cidade, o correio
E uma carta de amor.
Abranda na subida do Noeimi
Taruuu, taaruuu... Taaruuuu... Taaruuuuuu...
Mais umas pazadas na fornalha
Uuuu! Uuuuu!
E ganhando novo balanço
Taaruuu… taruuu… Taru taru taruu…
Chega mesmo à tabela
Uuuu! Uuuuu!
À estação da Miuzela.
Chegou o comboio-a-vapor
Tchhh, tchhhh… tchhhhh, tchhhhhhhhh…
Deixou gente da cidade, o correio
E uma carta de amor.
(Por Raul Brandão, Memórias)
Bruno, esse, nunca fez cálculos sobre a vida. Cheio de simplicidade e de modéstia viveu e morreu como um pobre homem - a arrastar-se, nos últimos anos, da padaria da Rua do Bonjardim para a Biblioteca, da Biblioteca para a Rua do Bonjardim. Punha um pé - parava; outro pé adiante - com uns testículos que lhe chegavam aos joelhos, e suspendia a marcha, arrastando-se com os vagares do caracol. Cada vez mais apegado à inocência dos livros, a sua grande alegria era conversar... - Só se detinha um momento a olhar a gente por ci ma das lunetas e tinha pena de não poder como antigamente correr as ruas do Porto até de madrugada com os seus amigos. - Nem ao café vou. Chamam-me talassa! - Do Porto dizia:
- É a melhor terra do mundo para se viver. Nem Paris lhe chega!
Ora sucedia que este homem extraordinário que sabia tudo e que conhecia tudo - que valia uma biblioteca, conversador admirável, e que era ao mesmo tempo um homem modesto, falando baixinho, com grandes olhos de míope, a espreitarem por cima das lunetas - tinha a desgraça de ser tão tímido, que, posto à espera dum eléctrico, não se atrevia a fazer o gesto de o mandar parar. Se parava, subia - se não parava, ficava à espera de outro.
Cantam os grilos
ao desafio
Gri gri, gri gri,
no lameiro da eira
e a criança que vive em mim
salta o muro do jardim
de ouvido alerta
Gri gri, gri gri
e parte à descoberta.
Afastando cuidadosamente a erva,
espreita os buracos
de palhinha na mão
até que – gri gri, gri gri –
sai um grilo negro, de asas douradas,
que guardo na caixinha de fósforos,
a minha caixinha de música!
-Conseguem vocês, ouvi-lo também?
Não?Ora oiçam, que eu abro a caixinha!...
Gri gri, gri gri
-Ouvem-no agora?-
Canta o meu grilinho,
negro,
de asas douradas
Gri gri, gri gri
na palma da minha mão.
-Oh, não!
Fugiu...
SEGUE O DOCUMENTO AUTÊNTICO DE SENTENÇA PROFERIDA PELO JUIZ MANOEL FERNANDES DOS SANTOS, EM VILA DE PORTO DA FOLHA, SERGIPE, BRAZIL. EM 15 DE OUTUBRO DE 1833, QUANDO AINDA EXISTIAM ALGUNS RESSEQUÍCIOS DAS PENAS MEDIEVAIS E AO TEMPO EM QUE OS CARRASCOS ERAM HOMENS DE "VÁRIOS OFÍCIOS":
SENTENÇA JUDICIAL
«O adjunto de promotor público, representando contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant’Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava de tocaia em uma moita de mato , sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará.
Elle não conseguiu matrimônio porque ella gritou e veio em assucare della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante.
Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova.
CONSIDERO que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ella e fazer chumbregâncias, coisas que só marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana; que o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quiz também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas; que Manoel duda é um sujetio perigoso e que não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens.
CONDENO o cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a MACETE.
A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa. Nomeio carrasco o carcereiro.
Cumpra-se e apregue-se editais nos lugares públicos.
É pouco provável que um advogado enriqueça a trabalhar honestamente. Pode, quando muito, ter uma vida desafogada.
Por este motivo, muitos continuam a advogar, depois de reformados, com autorização para o efeito dada pelo bastonário da Ordem, e mantêm-se no exercício da profissão até idades muito avançadas.
De um lado, porque têm necessidade de trabalhar e porque o fazem com gosto; por outro lado, porque sabem que, manter a actividade intelectual, é essencial para conservar a lucidez de espírito.
Mas há alguns que, por refinamento do humor ou por traição da natureza, escrevem peças forenses que, por vezes, saem do comum.
É o caso do requerimento de um nosso colega, de uma comarca do Sul do país, apresentado em 27 de Janeiro de 1994, cuja cópia figura no meu arquivo pessoal e que a seguir reproduzo:
«Exmo. Senhor Dr. Juiz do... Juízo Cível da Comarca de...
Proc. n.o...
F... e mulher, nos autos do processo cotado, que moveram contra FI... e marido, notificados para aperfeiçoarem a petição, pedem vénia para dizer o seguinte:
Quando, no início da segunda metade do século XIII, D. Henrique de Castela (tio-avô materno do nosso rei D. Afonso Henriques) assaltou Roma, não congeminou destino mais adequado para a Basílica de São Pedro do que o de estrebaria.
Em conformidade, afeiçoou os altares a mangedoras e, com um bom ordenamento de espaço, logrou alinhar na igreja as centenas de cavalos que constituíam a sua equestre equipagem.
Mas, como rebotalho desta, sobrava um burro. Burro achacado dos anos, derrotado das fadigas e escanzelado da fome, a quem nunca fora proporcionado o conchego de um tecto que lhe abrigasse a orgadura, nem um lastro de palha que lhe amaciasse o sono.
E sobrava, outrossim, uma mangedora; justamente a que, correspondendo ao altar-mor, ficava desalinhada das destinadas aos cavalos.
Num singular gesto de magnanimidade, o castelhano destinou este solene lugar ao asinino. E num gesto de altiva teimosia este jumentídeo párea recusou o ingresso na igreja do Apóstolo.
Não era só ele, burro, que desdourava a dignidade do templo. Era também o templo que afrontava a sua dignidade de burro, vitaliciamente votado ao estado de ente sem eira nem beira, nem lenho de figueira.
Era o burro, não a catedral, que merecia a bem-aventurança que Jesus atribuiu à pobreza.
Nestes autos o burro do apólogo é o signatário.
Transcorrido mais de quarto de século a articular como articulou, não se sente este com aimbos de cambiar o falejo. Não é afronta ao Tribunal, é teimosia de velho. E negar a um velho o pendor de ser teimoso é atentar contra as forças da natureza. E as forças da natureza nunca ninguém as venceu.
Com o desgosto de, pela primeira vez, recusar um convite de que dezenas de vezes aproveitou e a mágoa de poder ferir a susceptibilidade de uma magistrada que muito respeita e estima, o signatário não aperfeiçoa a petição, por a não saber aperfeiçoar, nem o douto despacho lhe apontar o sentido desse aperfeiçoamento.
Respeitosamente, requer se digne de tomar em consideração para os efeitos que tiver por convenientes.
Junta duplicado.
O advogado»
(segue assinatura e carimbo.)
Braz, Manuel Poirier, in Cartas A Um Jovem Advogado, pág. 136, Editorial Presença, 2006
Amor é o amor – e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...
O meu peito contra o teu peito,
Cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
Há todo o espaço para amar!
Na nossa carne estamos
Sem destino, sem medo, sem pudor,
E trocamos – somos um? Somos dois?-
Espírito e calor!
O amor é o amor – e depois?!
Alexandre O’Neill
Retábulo da Sé da Guarda
Entrando na cidade pela Porta do Sol, logo à nossa direita, descobri uma característica tasca, daquelas que ainda é frequentada por indivíduos de cepa antiga, beirã, e onde se bebe o bom vinho caseiro da região. Era pegada à cerca da muralha, uma divisão térrea e acanhada no rés-do-chão.
Sobre a porta, pintada a vermelho, a letras pretas, a inscrição: “Tasca do Benfica”. Na pequena janela, enfeitada com papel de renda, um cartaz informava que ali serviam jeropiga caseira a copo. Espreitei por cima do postigo da porta. O espaço era simples, sem mais mobília que uma mesa de tampo em mármore e dois bancos de madeira. Era simples, mas não parecia austero, pois sobre o tecto, ao longo de todo o cumprimento das paredes, estendiam-se várias prateleiras fundas, também pintadas a vermelho, com grande variedade de bebidas, enchidos, presuntos e queijos. Num dos cantos amontoavam-se garrafas vazias, algumas delas já partidas. Da parede branca sobre a mesa, pendia uma litografia amarelecida da formação do Benfica de há umas décadas atrás, onde reconheci ainda o Zé Henrique, o Artur Jorge e o Simões.
Apeteceu-me a jeropiga. Ia a entrar, quando do alpendre de uma casa apalaçada, mesmo na esquina da Rua de S. Vicente, me chamaram:
- Anda, pai, a Catarina já desapareceu!
No encalço da Catarina, seguimos pela rua, passando por alguns bares recentes e desaguamos no Largo da Sé. Está diferente o largo. Lançaram-lhe pavimento novo em granito azul polido e desterraram a estátua de D. Sancho para um recanto invisível da praça. De resto, as casas comerciais, as fachadas, ainda são as mesmas de há vinte e seis anos, quando daqui saí.
Atravessando a praça, subimos a escadaria da Sé. O mesmo guarda-vento em castanho, com duas entradas laterais, uma de cada lado, faz de antecâmara. È um templo de três naves em estilo gótico, gótico tardio e alguns acrescentos em manuelino e renascença nos pórticos das capelas laterais. No altar-mor, sobre o cadeiral do cabido, lá está o bonito retábulo de João de Ruão que sobe até às lanternas da cabeceira. A base foi roubada nas invasões francesas e assenta agora em grossas pilastras de granito. Do lado do Santíssimo, o bonito altar renascentista em pedra ançã e os mesmos bancos do coro, onde tantas vezes, devidamente paramentado de batina e sobrepeliz, me sentei. O altar central é agora novo, de um granito azul polido, semelhante ao da praça, a destoar de toda a Sé.
O mesmo cheiro a mofo e a cera derretida, a beatas, a mesma penumbra de há vinte anos atrás. O sacristão que preparava o altar para a missa vespertina é que já não é o mesmo. No tocheiro de uma das capelas, algumas velas colaram-se e alteram a chama. O sacristão acudiu a extinguir o fogo.
- Estúpidos dum c… - e soprava esbaforido – estúpidos dum caraças!...
Ainda corri os bancos à procura do nome e a data, que fizera com a cruz do terço num aborrecido ofício de Páscoa em 1980. Já não os encontrei. Concluí que se o nome e data se tinham apagado, nada mais havia para ver, nem mais coisa alguma me prendia aquele lugar. Dei meia volta e saí, assim… sem mais.
- Espera pai, A Catarina ficou para trás.
-Vai chamá-la, senão fica cá! -respondi, visivelmente contrariado.
Dai a segundos reaparecem as duas na escadaria. Consulto o relógio: Uma da tarde, bem em cima da hora de visita no hospital e quase sem tempo para almoço.
- Meninas, vamos lá a desenvolver – atiro zangado-. Porque demoraste, Catarina? Não sabes que o pai tem pressa?
-Estive a ler a pedra de uma sepultura – ía a censurá-la pelo atraso, mas ela, esperta, atalhou – não sabes o que dizia a pedra, pai?
-Sei lá o que dizia a pedra…-e impaciente, consultando de novo o relógio – Já agora, o que dizia a bendita pedra?
-A pedra dizia: Aqui jaz o Padre Costa, sua mulher e filhos!
Risada da Marta àquela tradução livre da lápide funerária – Sua tonta, como pode ser, se os padres não casam?…
Bem dispostos demos as mãos – «mas alguns casam, filhas…», comentei, malicioso –, descemos a escadaria apressados, metemos pela Rua dos Ferreiros e fugindo à chuva miudinha, abancámos no primeiro restaurante aberto que encontrámos.
As últimas pessoas recolhem-se.
Um grupo de estudantes ainda resiste
A esquina.
Na janela sobre a cidade
Admiramos a noite a subir
Aos telhados.
Quando te debruças
Para ver os pombos no varandim da frente
O bico dos seios revela-se no decote
O que me excita.
Abraço-te pela cintura,
Enrosco a minha perna nas tuas,
E percebendo a minha aflição,
Roças a coxa no meu sexo,
Que estremece.
Murmuras apontando a vidraça
Um andar abaixo:
-Viverá alguém naquela casa, ali?
E eu que já não vejo nem oiço,
Metendo-te as mão na blusa
Arrasto-te
Em valsa lenta
Para dentro.
Eça de Queiroz, poucos o sabem, licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1866, abrindo escritório forense em Lisboa e estreando-se em tribunal em 1867, com um julgamento em Évora. Só a partir de Março de 1875 seguiu a carreira diplomática, primeiro com cônsul em Havana, depois em Bristol e por último, em Paris. Ao longo da sua vida produziu uma notável obra, onde reflecte um apurado sentido de crítica social e uma ironia que reflectem bem a sua formação jurídica.
Aqui fica um exemplo, numa carta dirigida por Eça ao Dr. Pinto Coelho, ao tempo director da Companhia das Águas de Lisboa, a propósito de um corte de fornecimento de água. A referida carta glosa do princípio ao fim o princípio jurídico de pacta sunt servanda consagrado no artigo 406.º n.º 1 do Código Civil e que vem mencionada no livro Cartas A Um Jovem Advogado, do meu ilustre colega Dr. Manuel Poirier Braz, dado à estampa pela Editorial Presença. Cá vai na íntegra:
«Ex.mo. Senhor Pinto Coelho, digno director da Companhia das Águas e digno membro do Partido Legitimista.
Dois factores igualmente importantes para mim, me levam a dirigir a V. Ex.ª estas humildes regras: o primeiro é a tomada de Cuenca e as últimas vitórias das forças carlistas sobre as tropas republicanas, em Espanha; o segundo é a falta de água na minha cozinha e no meu quarto de banho.
Abundaram os carlistas e escassearam as águas, eis uma coincidência histórica que deve comover duplamente uma alma sobre a qual pesa, como na de V. Ex.ª, a responsabilidade da canalização e a do direito divino.
Se eu tiver a fortuna de exacerbar até às lágrimas, a justa comoção de V. Ex.ª, que eu interponha o meu contador, Ex.mo Senhor, que eu o interponha nas relações de V. Ex.ª com o mundo externo! E que essas lágrimas benditas, de industrial e de político, caiam na minha banheira.
E pago este tributo aos nossos afectos, falemos um pouco, se V. Ex.ª O permite, dos nossos contratos. Em virtude de um escrito devidamente firmado por V. Ex.ª e por mim, temos nós - um para com o outro - certo número de direitos e encargos.
Eu obriguei-me para com V. Ex.ª pagar a despesa de uma encanação, o aluguer de um contador e o preço da água que consumisse.
V. Ex.ª, pela sua parte, obrigou-se para comigo a fornecer-me a água do meu consumo. V. Ex.ª fornecia, eu pagava. Faltamos evidentemente à fé deste contrato: eu, se não pagar; V. Ex.ª, se não fornecer.
Se eu não pagar, V. Ex.ª faz isto: corta-me a canalização. Quando V.Ex.ª não fornecer, o que hei-de eu fazer com o Senhor?
É evidente que, para que o nosso contrato não seja verdadeiramente leonino, eu preciso, no caso análogo àquele em que V. Ex.ª me cortaria a minha canalização, de cortar alguma coisa a V.Ex.ª. Oh! e hei-de cortar-lha!...
Eu não peço indemnização pela perda que estou sofrendo, eu não peço contas, eu não peço explicações, eu chego a nem sequer pedir água. Não quero pôr a Companhia em dificuldades, não quero causar-lhe desgostos, nem prejuízos.
Quero apenas esta pequena desafronta, bem simples e razoável, perante o direito e a justiça distributiva; quero cortar uma coisa a V. Ex.ª!
Rogo-lhe, Exmo. Senhor, a especial fineza de me dizer, imediatamente, peremptoriamente, sem evasivas, nem tergiversações, qual é a coisa que, no mais santo uso do meu pleno direito, eu possa cortar a V. Ex.ª.
Tenho a honra de ser
De V. Ex.ª.
Com muita consideração e com umas tesouras,
a) Eça de Queiroz»