Tudo lhe dói
Do tanto que me quer.
A primaveril explosão das flores
No mel dos lábios,
O calmo rebanho pastando,
No regato dos olhos.
O menino lançando o peão
Que gira, gira, gira
Na palma da mão,
O discreto enlace dos amantes
No rubor da face,
O barulho ensurdecedor dos pardais
Na disputa das espigas da cabeça,
Um Verão difícil de combater
Na testa em brasa,
Do tanto que me quer.
A persistente neblina,
Nas terras do sonho
A música da alma
Em constante dissonância;
A teimosa insónia das noites
À janela da saudade.
As pálpebras nitidamente cansadas
Lhe caindo pesadas
Em duas pétalas de roseira brava,
Que do meu amor silvestre
Amiúde se desprendem,
Porque de tanto me querer
Até a raiz lhe dói.
Eu sozinho e duas gatas vadias.
As cabras, a burra e o cão,
Na loja, as tulhas vazias,
À porta, um talêgo de pão,
O fumeiro que seca no varal,
E a Hermínia, sempre de lenço e avental.
A mesa velha da Tia Vitória,
A sombra fresca da figueira,
Ao Domingo a missa obrigatória,
O vinho novo a correr da torneira,
E a Hermínia, ao muro, a espreitar sorrateira.
O Homem da carne ao sábado,
O peixeiro que vem quando calha,
As passas que secam no sobrado,
As azeitonas a curtir na talha,
E a Hermínia ao fundo do Balcão:
- As meninas, senhor Doutor, como estão?
Inverno, manhã cedo. A luz que banha
a paisagem é gélida e sinzenta.
A vaga pompa do cenário ostenta,
ao largo, as serras húmidas de Espanha.
Hortas, vinhedos e a carcaça estranha
de Monsarraz, numa ascenção violenta;
A erva tenrinha os gados apascenta,
que em tons de bronze a terra desentranha.
E eu olho essa paisagem dolorida,
testemunha que foi daminha vida,
povoada agora de visões errantes...
Eu olho-a dentro da minha alma afago-a,
que os seus olhos longíncuos, rasos de água,
são hoje os mesmos que me olhavam dantes.
(conde de Monsarraz)
Na cabeça
Trago em revoada
As perdizes
À fresca orvalhada,
O latir dos cães
Do gado
A levantar coelhos
No silvado,
As mulheres
À calma de Verão
Em ranchos
Ceifando o pão,
O Sol
Brando da tardinha
Na roupa
Branca da vizinha,
O Chapinhar
Feliz em calção
Na água
Fria do Cesarão,
Na torre o bater
Das trindades,
Ah, meu Deus
Que saudades!
O portão verde abria para um grande curral. A um canto uma moreia de lenha e o caro de bois; do outro, subia uma escadaria em pedra, com balustradas, até ao piso de cima. Um corredor à entrada, uma porta á direita e a cozinha, o chão em ladrilhos, com uma enorme lareira acesa. A luz reflectia-se nos ladrilhos da parede e um gato preto dormia ao borralho. Do fumeiro pingavam as chouriças, morcelas, bucxos e farinheiras, ainda verdes.
Ao centro a mesa em pinho, coberta com uma toalha de linho antigo, estava posta: pão, queijo de cabra fresco, presunto, azeitonas talhadas e chouriço.
Setámo-nos, petiscámos, bebemos econversámos até tarde. Falámos do aspecto menos legal do muro que o vizinho levantou sobre o curral, depois recordámos os tempos de juventude, quando percorríamos na velha motoreta as festas e bailaricos das redondezas, os costumes antigos e até ao remoto parentesco entre as nossas familias. Então a tua mãe, que estava à volta do lume a preparar a ceia, lá explicou:
- Afinal senhor doutor, ainda somos primos, por parte de seu avô materno... primo direito de meu sogro...
Rimos também daquela noite em que, apeados, fizemos todo o caminho desde Aldeia da Dona.... a mota avariada pela mão.
Com um último copo, despedimo-nos alegremente. Já na porta, detiveste-me pelo braço e não me deixaste saír. Eu a tentar libertar-me e tu a insistires:
- Já que não levas nada pela consulta, não hás-de ir daqui de mãos vazias.
Foste ao varal, e cortando o maior chouriço que estava dependurado, embrulhando-o num jornal, enfiaste-mo no bolso do casaco.
- Anda, leva-o. È para o caminho...
E eu, com o avontade daquelas nossas inesquecíveis noitadas de copos e bailaricos, provoquei-te:
- E o vinho, "Russo"? Onde está o vinho?
E lá veio também vinho... uma bela garrafa de tinto!
Subi aqui, ao alto da muralha, onde se avista toda paisagem, aos meus pés: É a minha vida, que se abre em livro no recorte das colinas, no serpentear do rio entre as courelas incultas; Os meus demónios e os meus deuses, que se elevam na coluna de fumo, atrás dos carvalhos, lá para as bandas dos Labaços. Uma coluna silenciosa e ardente que me caustica a ferida que trago no flanco.
O pé estala um ramo seco, e os olhos fixam-se na procissão de formigas que arrastam uma semente de erva, na baba do caracol a descer o muro.
A minha alma até poderá estar ao mesmo tempo, naquelas colinas, naquele rio, e no fogo que se não vê, mas se adivinha, na absoluta imobilidade dos carvalhos, lá para os Labaços.
Mas seguramente ela vai naquela pequenina semente adormecida, levada em ombros, como santo de altar, em dia de festa.
Hora das trindades… Cai a noite.
Na ponte, gigante de pedra descansando sobre as margens as suas pernas bambas, uma neblina se ergue das hortas até ao cruzeiro da capela.
A lua nova, rompendo a névoa, com as duas hastes voltadas para o céu… a marca da Deusa-Mãe, ilumina a fronte do Cristo na pedra…
Então, um clamor de fogaréus em danças orgíacas apodera-se da ponte e as águas do Cesarão redemoinham nos Pegões, incendiando-se em convulsivas labaredas.
Os demónios da floresta, acordados pelo clarão dos fogos, levantam-se em transe, e juntam-se à festa tocando pandeiros, fazendo libações com vinho novo, e depois, vão em procissão pelas margens, esconjurando as sombras.
E todos os espectros que se arrastaram pela ponte há dois milénios, ouvindo a música funérea dos pandeiros, emergem das águas em sangue e riem-se…. Riem da hora das trindades, da cruz, do Crucificado… é o riso da eternidade escarnecendo do presente, o bico da foice do druida abrindo o lado do Crucificado… o riso de Satã, na chaga de Cristo, a escorrer água e sangue…
Seguem-se pela madrugada as horas de Satã, as horas dos mortos… é Satã que agora vai a rir e a dançar, à frente desta tragicomédia, enquanto no céu brilhar a estrela Sirius.
É a sombra de Caim e não da cruz, que se projecta sobre a noite… uma sombra molhada em sangue.
Quando no campo era o tempo
De figos e uvas
Via-se na brisa Outonal
O clarão do sol
A refluir nos teus olhos negros
E davas-me a beber a água
Que nascia do teu ventre.
Então, esvoaçando das árvores em redor
Poisava na tua cerealífera cabeça
E desciam comigo bandos de pardais.
E já os pássaros subiam nestas mãos ansiosas
E a presença vertical do vento te acariciava os flancos,
Aceitavas as volutas desta música silenciosa sobre os ombros,
O abandono extremamente fluido no desejo,
Ao nível do restolho incendiado,
Entre o rumor seco das folhas.
E tudo acabava na noite, lentamente,
Sob uma chuva densa de estrelas,
O céu aberto sem limites.
À curva das cerejeiras, a seguir à escola, o horizonte ermo, silencioso e ao longe, o recorte cinza das colinas na Bismula. O vermelho dos primeiros telhados assoma na paisagem. As árvores e os lameiros descem a prumo sobre o Pereiro, onde as águas correm no açude fugidias… há séculos.
Que mimoso quadro! Há momentos assim que param o tempo. É esta a memória que guardo dos teus passos, avô, a extinguirem-se à curva das cerejeiras, nas áleas da minha infância... o lume do cigarro a morrer-te na mão e aquele – Queres um cigarro meu anjo? Fumas um cigarrito também? - era a tua alma anarquista, de que tanto gostava, a falar.
- O pai não deixa… avozinho.
- Ah não, meu anjo? Toma então esta moeda…
E o ruído dos teus passos naquele dia, apagou-se no ar com uma nuvem de pó em direcção à Ruvina… um caminho para mim ainda hoje aberto em carne viva. No último instante tiraste o chapéu, que de tanto puído, era já a forma da tua cabeça branca, e acenaste:
- Adeus meu anjo!
Tu já não existes. As cerejeiras da curva, entretanto secaram. Mas ainda consigo ver as costas de uma jaleca preta e as abas de um chapéu a desaparecerem no horizonte ermo, silencioso… e um vulto que acena:
- Adeus meu anjo!
Da curva das cerejeiras da minha infância, aceno-lhe também:
-Adeus avô!
Rua da Atalaia, ao Bairro Alto
Uma tigela de azeitonas à frente
O vinho graduado a bater na cabeça,
O cachimbo sem filtro queimando a língua.
Azeitonas
Azeitonas e vinho
Jantar de estudante…
Jantar de rei.
O tampo do balcão, em mármore.
As mesas a condizerem, em mármore também.
O Ti França serve outro copo,
Por conta da casa – diz.
Na parede uma guitarra nua,
-Mulher de redondas formas -
Os caroços no prato, notas soltas de música.
O dinheiro contado à justa
E a mesada, que ainda não veio...
Azeitonas o jantar,
Para sobremesa… Fado.
Jantar de estudante…
Jantar de rei.
As folhas de Outono,
Trarão a noite
Tão desejada.
Recitarei à lareira,
Poemas
Que incendeiam
O interior das flores.
Abrirás, finalmente,
A vulva
Ao orvalho
Das palavras.
Vejo, todas as tardes o Lucrécio passar no carreiro da vinha, o caldeiro na mão, a sachola ás costas, a caminho da horta. Afugenta dos pardais dos alfobres, bate o caldeiro, gesticula, dá tiros para o ar lá para as bandas da Fonte-das-Hortas...
Era assim - diziam- aos berros, que ele asssustava os meliantes, nos interrogatórios da esquadra, o Lucrécio.... Impunha o respeito da autoridade.
Como o tempo muda tudo! Agora no lugar das cordas vocais fizeram-lhe um buraco... usa um amplificador a pilhas para falar ...
Já nem aos pardais metem medo, os berros do Lucrécio!
A mesa, o lápis, a folha virgem
E ao lado a janela aberta
À Chuva da manhã.
Deixo a imaginação sair à rua
Molhada
Talvez duas rosas brancas
Cresçam
Talvez um cheiro a mulher
Suba
Talvez uma nuvem se abra
Em sol
Talvez a mão sinta o amor
Do vento
E rompa a onda
Em espuma.
Então, quem sabe, talvez a palavra venha na chuva,
Com a flor, a mulher, a nuvem, o sol,
Na vela ao vento,
Na crista da onda…
E as sílabas ao senti-la
Se dispam
E o poema
Nasça.
Uma felicidade nos dedos
Um fluir cálido da mão
Virando as páginas abertas do teu corpo
Em repouso sob um verde sol.
Nada contém a fome da mão
A percorrer amorosa a púbis
Que treme, esquiva
Ao momento intimo.
E se a boca geme às carícias,
É indiferente aos dedos
Esse sabor ao mel.
Eles preferem afogar-se nas águas profundas,
Onde o fogo das suas extremidades acenda
As estrofes de um poema.
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Aqui onde mora a vesícula biliar do tempo
Sob as pálpebras transparentes deste dia
Onde a água vermelha e doce corre
O corpo descansa, a noite amadurece.
Não bebo mais desse rio, não provo mais desses beijos,
Mas aqui é Outono, o tempo propício das vindimas.
O mosto efervescendo, com o seu bafo em sangue
Aquece o corpo, ressuscita os membros.
Nada estanca a sede, nada cala a fome de uma boca,
Mas por agora fica o corpo à espera, trémulo como folhas
Por um remoinho de sangue, por uma língua que se acenda,
E lhe dê a beber os favos do mel.
Talvez ele assim se liberte da árvore,
E oiça o suor do silêncio
Talvez ele assim livre
Sinta o arrepio da tua boca
Beijando as sílabas
Das palavras
Aqui entre o poço
E o lagar.