Aqui jaz
Em paz
Meu pai.
Amou,
Foi amado,
Obedeceu a ordens,
Comandou,
Teve fome,
Sentiu frio,
Enquanto por cá
Andou.
Aqui jaz
Sobre uma pedra granítica,
Com flores de plástico.
Teve caixão,
Exéquias solenes,
Com sete padres
Arrebanhados á pressa,
Farda de gala,
Pelotão de honra,
Tiros de salva,
Amigos,
Conhecidos,
Família,
Choro,
As flores de Maio,
E até anúncios
Nos jornais.
Aqui jaz,
Fique em paz.
Tudo foi,
Nada é...
Tudo foi,
Nada é!
O rio é atravessado pela ponte de pedra com os seus dois arcos de volta inteira e guardas pelo joelho. Nas duas margens, as hortas, o grosso do povo de um lado, o bairro de S. Sebastião do outro, sobre a fraga, a Judiaria.
Passa o António Lavajo aos ziguezagues… de guarda a guarda. A leve inclinação do tabuleiro, parece-lhe uma montanha intransponível. Estaca, pragueja, resmunga, quer apagar a lua! Ri a Mouca, ri a Isabel do Ferreiro, ri a Lurdes Tonta – os miseráveis riem sempre da miséria alheia – e o pobre lá arranja forças para vencer a ponte, para fugir às chufas.
Qual malabarista de circo, faz maravilhas de equilíbrio, entre apupos, escárnios, gargalhadas, e apanhando balanço, vence a barreira, e lá vai ele, dois passos à frente um atrás, a caminho de casa.
Entra no curral, em direcção ao balcão, e deixa-se cair, como um saco de batatas, a meio da escadaria. Reclina a cabeça, abre os braços e adormece… ressona… uma baba acode-lhe ao canto da boca.
A Leopoldina bate-lhe com a vassoura, insulta-o, pontapeia-o, abana-o. O Fofa veio passar a noite…
Ele acorda, braceja, afasta as melgas, limpa a baba na jaleca preta, bufa, barafusta, pragueja! Quer apagar a lua! Quer um banco para desatarraxar a lua!
Há homens assim…
A marinarem em “vinha-d’alhos”, para esquecerem as mulheres que lhes saem na rifa. Bebem simplesmente para esquecerem! Para não verem! Fingirem não ver!
E o Lavajo marinou vinte e tal anos neste vinho azedo, que a Leopoldina lhe servia.
Justina, a velha Justina da rua de cima, dos feitiços, das rezas, das mezinhas, sentada no massadouro de pedra, no pátio, ao sol da tardinha. Aquela verruga feia na ponta do nariz - sdabes Justina, não devias nada á beleza, digo-to agora, que já não tenho medo dos teus bruxedos - o cabelo encanecido, toda osso, sorumbática, desdentada, carne defumada dos serões à lareira, quando espreitavas ao portão.
E ao fim do dia, ias pela aldeia, correndo as casas, endireitar espinhelas, mãos abertas sobre os joelhos, dedo polegar com dedo polegar, depois os braços esticados acima da cabeça e o puxão, uma, duas, várias vezes - deitar as benzeduras contra o mau olhado, ler a sina, revirar os buxos. No fim os Padre Nossos e as Avè Marias.
Fazia-me confusão à minha cabecinha de criança este casamento entre a fé e o profano. Só bem mais tarde, quando te tornaste numa múmia de farrapos negros ao vento, percebi que eras a Sibila, a sacerdotiza de Osíris, uma esfinge delirante, que dançava embriegada, numa festa dionisíaca, à volta dos nossos espectros de gente mesquinha..
Quanto te divertia Justina este simulacro de poder das trevas sobre a luz. A magia com que me fazias acreditar um dia que um fio de seda era suficiente para aguentar a gravidade de um calhau, outro, que o sopro de uma criança apagaria facilmente uma constelação de estrelas.
Tudo isto Justina, Justina da rua de cima, dos feitiços, das rezas, das mezinhas... porque eras, agora o percebo, a voz extinta dos oráculos.
João era fabulista
fabuloso
fábula?
..............................................
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.”
Carlos Drummond de Andrade
in “Um chamado João”
A minha vida confunde-se com a daquele centenário castanheiro do Romão, à beira do caminho, mesmo à saída da aldeia, quando se vai para a Balsa. Sou mais castanheiro do que se pensa e ele, mais homem do que parece.
Somos amigos há mais de quarenta anos. É quase uma vida, quarenta anos! Mais tempo ainda do que duram muitas das relações humanas. Por isso somos velhos amigos de tu. E não é para menos: Ele viu os meus antepassados, que lhe pisaram a raiz e reconhece-os agora na minha voz, na minha cara, no mesmo jeito de rebuscar ouriços.
Ai velhinho castanheiro do caminho, ai casa de pedra dos meus avós, ai cruz do chão da forca, ai romaria do Senhor dos Aflitos, ai Elvira Polónia de mensageiro na mão lendo ao serão a crónica dos dois compadres, ai Chico Bárbara a levar as vacas montando em pêlo o burro preto, ai ovos tingidos na Páscoa a casca de cebola, ai caravelas de vento feitas de cana e pregadas com picos de espinheiro, ai lançamento de bogalhadas pelas fisgas das portas – parece que lhes ouço ainda o barulho no soalho do corredor, ao soar das trindades- ai Manuel Rasteiro a bater o trigo na eira, debaixo do sol de Julho.
Estou mesmo a ver-te Zé Vicente, todo osso, já alquebrado, palmilhando sobre as pernas bambas o caminho de Aldeia da Ribeira, repetindo o constante estribilho: bô s’tá, bô s’tá, bô s’tá…, misteriosa ladainha que saía dessa boca de viajante. A fronteira da tua alma, Zé Vicente, os limites do teu mundo, eram os 10 km de ida e volta, entre o velhinho castanheiro e a tasca do João do Escabralhado.
E vejo o Tavares e a Maria das Dores, ele muito franzino, ela encurvada, ambos de preto, a desaparecerem na curva do caminho carregando às costas as cadeirinhas de junco, que iam vender no mercado de Alfaiates.
O Tavares e a Maria, onde irão eles agora! Há mais de trinta anos que partiram naquele caminho! Os dois abraçados enregelados, sob o grande temporal que os surpreendeu, num dos regressos do mercado.
Que saudades tenho deles e de todos os outros vultos que desapareceram na curva daquele caminho, sob o centenário castanheiro do Romão. Tudo são fantasmas. Agora há só nuvens de vozes, nuvens altas de almas. Agora, apenas a solidão do ermo me rodeia…
Ó Zé Vicente, ó Tavares, ó Maria, como eu vos queria agora aqui! Também eu vendo cadeirinhas de junco, também eu dou comigo a repetir: bô s’tá, bô s’tá, bô s’tá… quando a indefinida mágoa me abraça, ao rebuscar ouriços sob o velhinho castanheiro do Romão.
É nestas horas, que a alma me pesa como um rochedo… e o rochedo é um alto-relevo da lembrança!
E há lembranças que vivem séculos… como os castanheiros!
Assim tenho vivido, caro leitor, e assim alcancei este fim de juventude em que a velhice e a infância se confundem. O Outono e a Primavera de mãos dadas!
Graças a Deus, a infância não me deixa! E não entendo os meus antigos condiscípulos, tão diferentes do que foram, metidos num modus vivendi que os absorveu por completo! Já não são eles, mas o senhor advogado em tal comarca, o senhor juiz em tal comarca, o senhor notário em tal comarca, o senhor deputado…
Criaturas que viveram e repousam hoje, para aí, empedernidas, numa atitude oficial.
Emblemas de pedra, não respondem a este meu fim de juventude embriagada de infância! E por isso nunca fui nem juiz, nem notário, nem advogado senão de passagem e a fingir. Fui sempre uma criança que faz versos, e é capaz de estar um dia inteiro a ouvir um passarinho ou a contemplar de uma janela os altos carros do Marão! Fui sempre uma criança que faz versos – uma criança intimamente deslumbrada e desgostosa! E já lá vão quarenta e dois anos da minha vida! Quarenta e dois metros de profundidade sepulcral! Quando sobre ela me inclino para ver-lhe o fundo, sinto vertigens e retiro os olhos espantados!
Ergo-me, como um espectro, dessa profundidade sepulcral, diante de si, querido leitor. Não tenha medo e ouça – ouça esse espectro que lhe fala.
Teixeira de Pascoaes
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Chegou a caminheta da carreira,
Que para no largo da vila.
Trouxe os garotos das escolas,
O Ti Chico que vem da consulta,
O Ti João Monteiro que foi à repartição
E o Nuno que anda na aula de condução.
Desceu também uma loira
Com duas malinhas de mão
Bem na viu a Ti Aninhas
Do postigo do comércio
E o passou de boca em boca:
-Desceu uma loira com duas malas,
Que o Daniel carregou para a casa do João.
Estava o João a fumar cachimbo,
Nas resguardas do balcão,
Quando subiu as escadas
O Daniel com as malas
E a Loira logo atrás.
Bem os viu o Ti Fernando passar
À esquina da Misericórdia
E abrirem o portão do curral:
-Era uma loira com duas malas
E veio ficar na casa do joão!
Comentou com a Ti Júlia,
Que assomando à varanda,
Se benzeu escandalizada:
-Deus nos acuda,
"Bôs" vão os tempos d'agora!
Fiava a velhina na sua cadeira de palhinha,
O fuso de madeira, cirandava ligeiro,
Ao balanço certo de palma da mão,
E o gato rabino brincava, brincava,
Com os novelos de lã na cestinha de verga.
Já lhe falta a vista, já lhe falhava a memória,
Já as mãos de frio se lhe tornam roxas,
Mas ele fiava, fiava, o fino fio
E o sol, inquieto girassol, no horizonte se punha.
Fiava a velhinha na sua cadeira de palhinha;
O fuso de madeira cirandava ligeiro,
Na cestinha de verga os novelos de lã,
Já lhe faltava a vista, já lhe falhava a memória,
Já as mãos de frio se lhe tornam roxas.
O sol, inquieto girassol, no horizontese punha;
Enquanto fiava, fiava, o fino fio...
Com um golpe brusco de palma da mão,
Espantou o gato rabino que brincava, brincava.
Há-de ser um dia pela tardinha,
quando o sol caír no serrado do Pedro,
eu deitado na cama de linho alvo,
as janelas escancaradas para a rua,
e tu sentada junto a mim, chorosa, pálida,
direi-te adeus, a ti, aos teus olhos tristes,
e comoverá toda a gente o nosso adeus.
Depois, porás a colcha branca de damasco à varanda,
o cruxifixo de madeira na cabeceira
ladeado por duas lamparinas brancas,
O Daniel tocará o sinal da Extrema-Unção,
virá o prior de sobrepliz e estola roxa,
com a caldeirinha de àgua-benta e a cruz à frente,
o povo no balcão rezará o benedictus,
na rua tilintarão os chocalhos do gado,
E quando no relógio da sala derem as vinte,
chegará finalmente a minha hora:
Reclinarei a cabeça no travesseiro,
e vendo os meus olhos baços, vazios,
compadecida, cerra-los-ás,
e não te afastarás um só momento da cabeceira.
As Beatas entoarão noite dentro o miserere nobis
e como há-de ser precisa uma sepultura,
o João Monteiro fará, por misericórdia e amizade, de coveiro,
fecharás as portadas das jenelas em sinal de luto,
pela casa cheirará a alfazema e fromol,
os teus olhos pisados, humedecerão de vez em quando,
toda a gente andará em bicos de pés
com medo de me acordarem,
o relógio da sala parará com falta de corda,
e passadas vinte e quatro horas,
virá outra vez o prior de sobrepliz,
à frente outra vez a caldeirinha com a cruz,
o Daniel tocara a finados,
e tu, querendo-me ver pela última vez,
debruçar-te-ás sobre mim num doloroso adeus,
enxugando as tuas lágrimas no lenço,
cobrirás o meu rosto com ele,
antes que sobre mim fechem o caixão.
E depois, hão-de levar-me em compasso lento para a matriz,
onde rezarão os ofícios em latim
-a meu pedido, ficas a saber-
e após, sairei em romaria para o cemitério,
atrás do pendão das almas e da irmandade,
e para verem o enterro do poeta, virá o povo em magotes,
das aldeias em redor, encher de curiosos o cemitério.
Tu, -ficas já a saber também- nessas noites, não pregarás olho,
com saudades do calor do meu corpo na cama,
mandarás rezar vários trintários,
por bem da minha alma perdida de poeta,
e nunca mais ninguém verá esse teu lindo cabelo,
sempre apanhado sob o lenço preto,
nunca mais sairás, a não ser para veres o sol,
a caír precisamente às vinte horas no serrado do Pedro,
e nunca mais haverá vida nesses teus olhos,
porque a luz deles se apagou para sempre.
Estava a doce Isabel no balcão
Bordando os finos lençóis
Do enxoval,
Cabeça reclinada sobre o colo,
Tão perto, que as negras tranças
Lhe caíam no alvo linho.
Vendo-me, ao portão chegar,
Abandona o fuso no açafate,
E desce as escadas, alegre e leve,
Paninho com duas iniciais bordadas
Em ramalhete de papoilas,
Na fina mão:
- Sempre vieste, João!
Tinha tantas saudades tuas…
Tanta, tantas… nem sabes quantas…
Dessa tua boca… desses teus beijos…
E puxando o trinco ao portão:
Anda beija-me, beija-me agora!
Tens fome? Queres merendar?
Porque não?
Tenho uns figos do quintal… dos que gostas…
E uns abrunhos? Queres uns abrunhos madurinhos?
E pão com doce, acabadinhos de fazer?
Em bicos de pés, abraça-me pelo pescoço:
Então não me beijas? Estás zangado?
Já não me queres? Tens outra?
Vá beija-me! Deixa-me louca!
Aproxima os lábios dos meus; insiste:
Anda beija-me… já não me amas?
Na testa não, seu tonto…
Beijos desses não! Um molhado como tu sabes...
Explora com a língua a minha boca:
Vês, tolinho? È destes assim que eu gosto…
Essa fonte,
Terníssima,
Rega a viçosa língua de erva.
O Rumor da brisa,
Agita a rama dos carvalhos,
Outonal.
O Fumo sai,
Pela chaminé do alambique,
Embriagante.
E a curva quente do teu cabelo,
Loiro...
Nos marmeleiros,
Por colher.
A fonte,
È o cais secreto,
Onde vai o amor batendo.
Mas o rumor grita uma despedida!
O fumo sobe já no horizonte da saudade!
E os marmelos,
Acabarão por cair,
Um dia,
De maduros!
Hoje abri um livro
E vi na primeira folha uma declaração de amor
de há seis meses; Quem diria?
Rasguei-a sem a reler...
É que tenho uma aversão imensa
A essas redes do passado,
Com as chumbeiras afundadas no lodo, E
dezenas de peixes a debaterem-se nas bolsas da malha...
Ai de mim,
E de ti, ó velha rede de águas profundas,
Eu escapo-me justamente pelo intervalo das boias!
É que nado sempre à flor dos limos...
onde há mais luz.
“Every human female has a beautiful body. The brilliant end point of millions of years of evolution loaded with amazing adjustments and subtle refinements, it is the most remarkable organism on the planet.” [MORRIS, D. (2004). The Naked Woman: A Study of the Female Body]
Se me tivesses enviado
O remetente,
Eu escrevia-te sem medo
Na volta do Correio.
Gritaria a verdade
Que me consome;
Seria a rola ao sol
Na varanda do Pedro;
Seria o resfolhar
Das bandeiras do milho
À brisa da tarde;
Seria o grasnar do corvo
No mostageiro da vinha;
Seria o hálito da terra
Acabada de regar;
Seria a fonte;
Seria o rio;
Seria o mar.