1. Observação preliminar
Mestre na arte de versejar, senhor de virtualidades técnicas notáveis, Leal Freire é o maior poeta de Riba-Côa e aquele que melhor interpreta a alma do seu povo.
A simplicidade dos temas, imagens, ideias, aliada, de facto, a uma perfeição formal ímpar, concorre na sua poesia para a construção de um universo lírico de rara beleza e que fez dele um dos poetas que melhor interpreta a alma do povo Ribacudano.
A sua poesia, é, do ponto de vista técnico, um exemplo de rigor métrico, de simetria, de perfeição. O lugar de cada palavra, obedece a um desígnio sabiamente amadurecido; o mesmo se diga da escolha da forma estrófica, em quadras tão ao gosto popular; a estrutura interna dos poemas, nem curtos nem longos, revela um elevado sentido de equilíbrio, numa construção arquitectónica cuidada e minuciosa que a sabedoria de uma longa vida de escrita trazem. Há uma subtil malha de correspondências no seu interior, a deixar perceber uma verdadeira teia, onde todos os pontos se interl
igam por um fio condutor habilmente desenhado que desenvolve uma ideia simples subjacente a cada um dos seus poemas.
Mas Leal Freire é mais do que tecnicismo. Quer busque no quotidiano as suas imagens (os campos, a lavoura, os animais, os rituais da aldeia), quer as recolha no tempo cósmico, quer, enfim, as molde no universo rural, os seus textos são fiéis retratos da vida simples, com palavras simples, como convém à boa poesia.
As quadras são, como se disse, um exemplo de organização, ao mesmo tempo que uma manifestação de um espírito lírico sem par.
Esta conjugação da beleza poética e da riqueza lírica com o preciosismo técnico e inegáveis virtualidades linguísticas fazem dos seus poemas excelentes instrumentos de trabalho, tanto para a aprendizagem da língua, como para o do estudo da etnografia, e dos costumes de Riba-Côa.
Aqui se inicia, por isso, um exercício despretensioso que visa partilhar com os leitores algumas reflexões sobre a poesia de Leal Freire.
Este texto é um pequeno ensaio sobre o ethos, isto é, a alma Ribacudana, a partir da análise do poema A Ceia Do Lavrador, de Leal Freire.
2. Texto
A CEIA DO LAVRADOR
Deram os sinos trindades(1)
Por sobre as casas da aldeia
Toques de suavidades
Que prenunciam a ceia
Mas mesmo que ande de zorros(2)
O lavrador, que é bom pai,
A ver se a ceia é pra todos
Não manda, que ele proprio vai.
Começa a sua inspecçáo(3)
Plas vacas, gado mais nobre
Também cabonde ração
Prás cabras, vacas dos pobres.
Á égua, luxo da casa,(4)
Á burra, sua cestinha,
Mangedora a feno rasa
Mais até do que convinha.
Pois na pia do cevado,(5)
Que só pra comer nasceu,
É o farelo um pecado,
De fartura brada ao céu.
O gado de bico dorme(6)
Ao fusco se regalara
Os cães aguardam que enforme
O caldo que nutre e sara
Aos animais sem razão(7)
Aconchego já não falta
A seguir vem o pregão
Chamando pra mesa a malta.
Filhos, netos, jornaleiros(8)
O conhecem e de cor
Mendigos e passageiros
Também cabem em redor.
Na mesa, que é um altarzinho(9)
Que branca toalha cobre
Não falta caldo nem vinho
Nem pão. regalo do pobre.
vem á ceia as courelas(10)
cada uma traz seus mimos
dá o quintal bagatelas
a veiga fartos arrimos
Das bouças vêm canhotos(11)
Que um bento calor evolam
E até os manigotos
Mandam cheiros que consolam
Vinhedos, chões e vergéis(12)
Primasias se disputam…
Nem as rochas são revéis
Em dura freima labutam.
As do monte mandam coelhos(13)
As da ribeira bordalos
Pirilampos são espelhos
A cegarrega é dos ralos.
As Almas Santas dos Céus(14)
Também descem para a mesa
A noite, negra de breu,
Resplandesce com a reza.
E quando acaba a litânia (15)
A prece que ceia encerra
Manda pra longe a cizânia
A paz reina sobre a Terra,
Dia um da criação (16)
A quantos na tasca estão.
(Leal Freire)
3. Estrutura
Como é usual nos poemas de Leal Freire, a estrutura é simples e dominada por uma rede de correspondências externas: A - B -A- B. C-D-C-D E-F-E-F, etc.
A – Introdução (estrofe 1 e 2).
A estrofe 1 introduz o tema ( a ceia) e o tempo (à hora das trindades).
A estrofe 2 introduz a personagem (o lavrador, que é bom pai, homem bom) e justifica, ao mesmo tempo, a narração que decorre nas estrofes seguintes.
Dir-se-ia, assim, que o tempo real do poema é o que vai das trindades à oração final da ceia do lavrador, mas com um registo temporal diferente, anterior ao da sua própria cronologia, já que â manjedoura e à mesa, vem tudo o que anteriormente o campo generoso deu. Ceiam os animais e lavrador tudo o que da natureza veio.
B – Narração (da estrofe 3 à 13). Descrição do que a natureza fornece, através do alimento dos vários animais e do lavrador.
C – Conclusão (14 e 15). São duas estrofes que emergem do que se diz de3 a14, estabelecendo um paralelo entre a ceia dos animais e do lavrador. A sua unidade, de resto, é reforçada pela projecção, ou enjambement, da estrofe 9 (a mesa, que é um altarzinho) para a estrofe 14 (aonde descem as almas santas do céu), 15 (e acaba a ceia com uma prece) e o remeate do poema na 16 (com uma espécie de libação).
4. Tema
Este é mais um belo poema de Leal Freire, no qual, uma notável rede de correspondências entre a ceia dos animais e do lavrador confere unidade ao poema, faz da ligação entre o primeiro e ante-penúltimo versos, o resumo da ideia e do tema:
«Deram os sinos trindades [...] A paz reina sobre a Terra.»
São estes os versos que resumem o poema: A vida simples e tranquila do campo, ao ritmo das trindades. Uma vida espiritual no seio da natureza que a vida moderna suprimiu com a necessidade do indivíduo em prover às sua cada vez mais exigente existência corpórea.
Uma “beatus ille”, muito semelhante à áurea mediania (aurea mediocritas) já glosada na antiguidade clássica por Homero, Heráclito, Esopo na fábula do rato do Campo e do rato da cidade, e, na sequência dos estóicos, Virgílio, Horácio, também defensor de um ideal de vida calmo e sem grandes exigências, capaz de dar ao Homem a felicidade que não encontra no meio do ambiente perturbado da cidade, na glória das batalhas ou mesmo "no exercício decoroso das magistraturas" e lá fora, por Frei Luís de León, Carlyle, Tolstoy e outros, e entre nós, por Francisco Manuel de Melo, António Ferreira nalgumas das suas odes, Sá de Miranda na Carta a Mem de Sá, através do recurso também à fabula do rato do campo e do rato da cidade, e posteriormente pelos arcádicos.
Neste poema,em que Leal Freiretrata o seu tema recorrente das virtudes da vida no campo, da sua “pátria chica”, como costuma dizer, é o ritual da ceia, dos animais e dos homens, cuja hora é anunciada pelo toque das trindades, e culmina na prece final da ceia do lavrador, que traz a paz à terra.
E esta paz a que conduz esta bela vida, é magistralmente resumida na última estrofe, pela fraternidade e igualdade entre todos os homens reunidos na tasca, a qual dá à vida simples do campo um carácter espiritualidade e sagrado mais puros, mais próximos de Deus, porque mais próxima do criador e da sua criação:
«Dia um da criação (16)/A quantos na tasca estão.»
Sorrimos ao remate síngular do poema. Quem conhece o poeta, como nós,vê-o no seu geito bem Ribacudano, chapéu de abas, a entrar numa desas tascas das nossas aldeias e a oferecer uma rodada de bom graminês...
«A todos os que na tasca estão.»
Porque esta, é a natureza de Leal Freire, como homem de Riba-Côa.
(cont.)