Quinta-feira, 5 de Novembro de 2009

 

castelo.jpg

 

 

Relatório que fez Misael, anjo enviado à Terra, no ano 2009 da era de Jesus de Nazaré:

A Terra era uniforme e vazia e as trevas cobriam o abismo. Deus decidiu fazer o céu, a terra e a luz.

            Traçou um esboço a guache creme. Primeiramente pintou uma aguada em toda a área, deixando as zonas claras com a cor do vazio. A cor foi obtida misturando branco opaco, negro-de-fumo, anil e um toque de carmesim. Pintou tons mais escuros da mesma mistura sobre a aguada inicial, ainda húmida. As áreas suaves do céu, mais claras, obteve-as passando uma esponja. As colinas, os fundos e alguns recortes do céu foram acrescentados depois de o resto ficar seco.

            O efeito dos raios solares e o efeito do nevoeiro obteve-os com aguadas transparentes de branco opaco e um pouco de ocre amarelo.

            Afastando-se do cavalete, Deus viu que tudo isto era belo. Então pintou todos os animais que existem nos oceanos, na terra e no céu; abençoou-os e ordenou que se multiplicassem.

            E apreciando a magnífica obra que saíra do seu pincel, ficou satisfeito. Disse então: «façamos o homem à nossa imagem e semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra».

Depois, entre os Querubins do sétimo céu que presidem às galáxias do universo, pôs Uriel num lugar proeminente, encarregando-o do departamento da via láctea, sistema solar,  coadjuvado por vários arcanjos e anjos numa cadeia hierárquica de importância em função dos continentes, terra, mar e céu, por que respondiam.

E nesta hierarquia celeste, atribuiu Deus ao arcanjo Rafael a Terra, a Gabriel a porção da Terra que viria a ser Portugal e a mim, Misael, uma língua de terra da Malcata à Marofa.

Certa manhã, enfadado da rotina da corte celestial, desceu Uriel até mim e acordou-me:

- Misael, a estupidez e as discórdias dos teus protegidos irritaram o Senhor; de forma que se reuniram em concílio os querubins para decidirem se deviam castiga-los ou destruí-los. Vai a essa terra, examina tudo e conta-me o que vires, para que decida conforme o que me relatares.

- Mas, chefe – observei, ainda ensonado- não conheço ninguém naquele fim do mundo…

- Melhor ainda – retorquiu Uriel - assim serás imparcial.

Disfarçando-me de viajante, montei uma nuvem, e parti. Ao cabo de alguns dias, encontrei finalmente nas margens de um rio um grupo de operários que aparelhavam umas pedras; e junto a eles um grupo de três homens que orientavam os trabalhos.

 Dirigi-me primeiro a um dos operários que encontrei. Falei-lhe, e perguntei que obra era aquela em que trabalhavam.

- Não sabemos - replicou o operário;  e apontando para o grupo dos três homens - mas se queres saber, pergunta ali aos capatazes.

Acerquei-me então dos capatazes e perguntei-lhes que obra era aquela que faziam.

-É uma ponte – respondeu o primeiro - .

-Qual ponte, qual carapuça – respondeu o segundo- aqui vai ser um açude.

-Nada disso – respondeu o terceiro – um moinho é que faz aqui falta.

Espantado, misturei-me então com os operários, e conquistando-lhes a simpatia, pude assim saber que, por causa daquela discórdia que durava há anos, se acumulavam toneladas de pedra na margem com grande dispêndio de recursos e trabalho, sem que se visse algum resultado daquilo.

Naquela terra, alias, - explicaram os operários – todos sofriam do mal de inveja, não se entendendo para coisa nenhuma. Por isso nada se fazia de útil para o bem comum, com grave prejuízo de todos.

            Despedi-me dos operários e desci o rio, numa extensão de uma légua, atravessando tapadas, terras férteis cobertas de mato e giestas, alcançando um alto aberto com uma vista panorâmica, sobre uma paisagem deserta e calcinada: Numa ligeira elevação, a torre de menagem de um castelo, erguendo-se sobre os telhados vermelhos do casario, cuja ruína ofendia a vista.

Chegando à cidade, depois de outro quarto de légua a pé, atravessei as ruas completamente desertas e fui dar a uma praça onde, sentada na escadaria do chafariz, a meio do recinto, vi uma velha que gozava o sol da tarde.

Abeirando-me, perguntei-lhe:

-Boa velha, que é feito dos habitantes desta terra?

- Saiba o senhor – retorquiu a velha, levantando os olhos da renda em que trabalhava – que os novos partiram e os velhos foram morrendo.

O sol começava a descer no horizonte. Seguindo caminho, pela rua principal, que tinha um aspecto abandonado e desagradável, entrei num terreiro onde brincava uma criança. Aproximando-me:

- Qual o teu nome?

-João…

-E fazendo-lhe uma festa – brincas a quê?

-Ao faz de conta…

- E não avistando mais ninguém – Com quem?

-Com os meus amigos…

- Mas que amigos?

-Amigos de faz de conta…

Afeiçoando-me à criança, a única que vi no meu passeio, temi que aquela terra fosse condenada. Sentando-me num banco de pedra que ali havia, pus-me a cismar sobre o relatório que havia de apresentar a Uriel.

Eis como me desenvencilhei para apresentar esse relatório. Chamei a criança e levei-a a Uriel.

- Destruirias – disse – aquela terra, apesar deste único inocente?

Uriel compadeceu-se, deixando tudo como estava. E apanhando uma corrente ascendente, juntando-se aos outros querubins, desapareceu no espaço sideral.

            É que para inferno –sentenciou Uriel- já têm que chegue!

 



publicado por Manuel Maria às 09:07 | link do post | comentar

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