Quarta-feira, 21 de Janeiro de 2009

 

 

 

 

No interior da província, numa colina sobranceira ao Côa, vigiada por uma branca torre sineira, que marcava o tempo e o ritmo à vida, existia uma pequena aldeia, semeada de pequenas casinhas, que desciam em tortuosas vielas, até um pequeno largo.

Os habitantes, na maioria idosos, viviam do que a terra dava; das vacas que pastavam nos prados e dos rebanhos que pastoreavam pelos montes.

Quase todas as casas, eram de pedra. Num primeiro andar viviam as pessoas; no piso térreo, os animais; todos em perfeita cooperação e doméstica harmonia.

Adossado à casa, quase sempre o cortelho onde engrossava o porco, que dava os chouriços e presunto pelo Natal. Debaixo das escadas, o poleiro, onde se criavam as galinhas que punham os ovos frescos e davam a canja que fortalecia das gripes de Inverno e melhorava o jantar nos dias de maior nomeada, ou de visitas.

Pois numa dessas casas, vivia um casal de velhos; com eles um gato lambão, de preguiçosos bigodes, meia dúzia de cabras, “só para entreter” -como dizia o velho- e um cão vadio que a velha por compaixão, recolhera.

Debaixo do balcão de pedra, tinham os velhos um desses poleiros onde criavam uma meia dúzia de galinhas poedeiras, outras tantas frangas na engorda, alguns pintos irrequietos e um vistoso galo, que empanturravam para a festa da padroeira.

Todos os dias, pela madrugada, a velha se levantava e a primeira coisa que fazia era afastar a pedra ao buraco do poleiro.

-Pila, Pila, Pila! Pita, Pita, Pita! – Chamava a velha.

Saía logo o galo, seguido das galinhas, pintos e das frangas, uma a uma, a debicarem o milho que a velha espalhava no terreiro, bebericando a tempos, num bebedouro em pedra, que por ali havia.

De papo cheio, faziam as galinhas o seu exercício matinal, esgravatando com os pintos minhocas pelo curral, aninhando-se depois, exaustas, debaixo das cerejeiras e oliveiras de canteiro, plantadas rente ao muro.

O galo, no meio do terreiro, sacudia as asas de penas verde-garrafa e castanhas, ensaiando de tempos a tempos, exibicionistas marchas marciais; e nisto passava os dias.

As vezes, empoleirava-se numa galha da macieira do quintal, esticava o gasganete, sacudia a crista e lá esganiçava um esforçado “cócórócó”.

De vez em quando uma galinha entrava no poleiro, e momentos depois um cacarejar frenético, anunciava mais um ovo, que a velha corria a recolher e a guardar na arca, entre o grão de trigo, para o manter fresco.

As galinhas, todas boas poedeiras, punham por junto, meia dúzia de ovos diários, que a velha, como pecúlio, ciosamente guardava, para vender na feira mensal.

Contudo uma das galinhas, pintalgada, pescoço pelado, crista vermelha e recortada, de raça “pedrês”, era a melhor poedeira da velha! Punha todos os dias um ovo e pasme-se, ovos com duas gemas!

Tinha a velha grande afeição a esta galinha, à qual tratava com especial cuidado. Sentada nos degraus do balcão, aconchegava-a a velha no regaço, acariciava-lhe a crista, cobria-lhe de beijos a cabeça e na palma da mão, oferecia-lhe grãos de milho, que a galinha, gulosa, debicava.

E assim passavam os velhos os seus dias, cuidando ela da criação e amealhando os ovos na arca; guardando ele, por distracção, as cabras nos montes.

 Até que um dia, ou melhor numa manhã, daquelas frias de Inverno, que gelavam no bebedouro a água e revestiam o pátio de “côdo”, a velha foi destapar o buraco ao poleiro, e ao chegar à ponta do balcão, o seu coração teve um sobressalto!

A pedra estava arredada do buraco, havia penas espalhadas nas escadas, pelo terreiro, debaixo das árvores, no quintal.

Desceu a velha aflita as escadas -Pita, pita, pita!, pila, pila, pila! - Chamou ela, como de costume.

Nem galinhas, nem pintos, nem galo, saíram do buraco para debicarem o milho no terreiro.

-Pita, pita pita! Pila, pila, pila! - Chamou novamente a velha, espreitando pelo buraco.

Mas, nem galinhas, nem pintos, nem galo, havia dentro do poleiro.

Correu a velha assustada, procurou no quintal, em todos os buracos de parede possíveis e imaginários, na moreia da lenha, na loja, na adega, nas redondezas, mas das galinhas, dos pintos, do galo, só mesmo as penas espalhadas por todo o lado!

Combalida, sentou-se a velha ao fundo das escadas. Abanava a cabeça, contorcia-se, soltava sofridos ais, enxugava as lágrimas ao canto do avental.

-Não é nenhuma tragédia, mulher – dizia-lhe o velho para a consolar – pior, seria uma doença!

-Ai homem, ai homem, deixa-me! - e nisto deixava escapar profundos gemidos - lá se foi a minha alegria, - mais gemidos - ai que lá se foi o nosso rico pãozinho, ai tanto trabalhinho para nada, homem! 

             Estava a velha neste pranto, o velho a tentar consolá-la como podia, quando ouviu a velha um tímido “Cácácárácá”.

Incrédula, a velha levantou-se. Do buraco do poleiro, a meio das escadas, assomou uma crista, depois uma cabeça, finalmente, assustada, a galinha “pedrês”.

Subiu a velha, contente, os degraus dois a dois, apertou a galinha ao peito, beijou-a, afagou-a e chorou de alegria!

           -Minha linda, minha rica – e dava-lhe repetidos beijos na crista - estás salva, meu tesouro, estás salva!

E nisto, recostando-se às resguardas do balcão, exibindo para o velho a galinha “pedrês” ainda assustada, exclamou:

-Louvado seja Deus, ao menos esta escapou! Ao menos esta escapou!

 

  

 (Conto inspirado em Isabel Valério e Joaquim Pascoal, de Badamalos)

 



publicado por Manuel Maria às 17:37 | link do post | comentar

3 comentários:
De ana a 22 de Janeiro de 2009 às 16:38
Lindo, o conto.
Com palavras "saborosas" como a moreia da lenha, o cortelho e outras.

Que haja, ao menos, na vida de cada pessoa, uma galinha “pedrês”. E, aqui, a galinha é só um destino de cuidados, apreço e afectos; se é que se pode sentir afecto por uma galinha...
Antes por gente.


De Manuel Maria a 23 de Janeiro de 2009 às 09:49
O mesmo afecto e devoção, com que me encomendava diariamente nas suas orações. Por isso ainda há hereges como eu, com um cantinho reservado lá no céu.


De ana a 27 de Janeiro de 2009 às 11:39
Então, Manuel Maria, Você como eu, apesar de julgarmos ser pouco merecedores, temos alguém a "puxar" por nós lá em cima.
Também houve quem rezasse por mim.
Hoje, já não sei se ainda alguém reza.
Eu já não rezo, embora entre muitas vezes nos templos e me quede em recolhimento. Mesmo sem palavras, são momentos de pacificação.


Comentar post

mais sobre mim
Março 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


posts recentes

PELO NOSSO IRMÃO MARCOS, ...

Canção do Volfrâmio

Bom Natal a todos!

O Primeiro Lugar da Poesi...

dramátia Aldeia ao abanon...

RAMOS ROSA E O SEGREDO O...

Recuperação do Património...

As viagens Iniciàticas de...

Os Talassas

Saudade Estranha

Tradição e Pragmatismo

Romance da Branca Lua

Cavaco e o canto da Maria

Crónica do Bairro Alto – ...

Uma História do Arco Da V...

Chá de Erva da Jamaica

Cada cabeça sua sentença!

Tribunal Constitucional ...

Até um dia, companheiro!

Meu último quadro

Paul, o dragão

A Terra Dos Cegos

A venda de uma vaca

Os Insensatos

Nostálgia...

O "Assalto" ao Castelo d...

A Conjura dos Animais

Lenda do Cruzeiro de Saca...

Boas festas!

tatoo

arquivos

Março 2014

Fevereiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Dezembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Junho 2011

Maio 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

links
blogs SAPO
subscrever feeds