No interior da província, numa colina sobranceira ao Côa, vigiada por uma branca torre sineira, que marcava o tempo e o ritmo à vida, existia uma pequena aldeia, semeada de pequenas casinhas, que desciam em tortuosas vielas, até um pequeno largo.
Os habitantes, na maioria idosos, viviam do que a terra dava; das vacas que pastavam nos prados e dos rebanhos que pastoreavam pelos montes.
Quase todas as casas, eram de pedra. Num primeiro andar viviam as pessoas; no piso térreo, os animais; todos em perfeita cooperação e doméstica harmonia.
Adossado à casa, quase sempre o cortelho onde engrossava o porco, que dava os chouriços e presunto pelo Natal. Debaixo das escadas, o poleiro, onde se criavam as galinhas que punham os ovos frescos e davam a canja que fortalecia das gripes de Inverno e melhorava o jantar nos dias de maior nomeada, ou de visitas.
Pois numa dessas casas, vivia um casal de velhos; com eles um gato lambão, de preguiçosos bigodes, meia dúzia de cabras, “só para entreter” -como dizia o velho- e um cão vadio que a velha por compaixão, recolhera.
Debaixo do balcão de pedra, tinham os velhos um desses poleiros onde criavam uma meia dúzia de galinhas poedeiras, outras tantas frangas na engorda, alguns pintos irrequietos e um vistoso galo, que empanturravam para a festa da padroeira.
Todos os dias, pela madrugada, a velha se levantava e a primeira coisa que fazia era afastar a pedra ao buraco do poleiro.
-Pila, Pila, Pila! Pita, Pita, Pita! – Chamava a velha.
Saía logo o galo, seguido das galinhas, pintos e das frangas, uma a uma, a debicarem o milho que a velha espalhava no terreiro, bebericando a tempos, num bebedouro em pedra, que por ali havia.
De papo cheio, faziam as galinhas o seu exercício matinal, esgravatando com os pintos minhocas pelo curral, aninhando-se depois, exaustas, debaixo das cerejeiras e oliveiras de canteiro, plantadas rente ao muro.
O galo, no meio do terreiro, sacudia as asas de penas verde-garrafa e castanhas, ensaiando de tempos a tempos, exibicionistas marchas marciais; e nisto passava os dias.
As vezes, empoleirava-se numa galha da macieira do quintal, esticava o gasganete, sacudia a crista e lá esganiçava um esforçado “cócórócó”.
De vez em quando uma galinha entrava no poleiro, e momentos depois um cacarejar frenético, anunciava mais um ovo, que a velha corria a recolher e a guardar na arca, entre o grão de trigo, para o manter fresco.
As galinhas, todas boas poedeiras, punham por junto, meia dúzia de ovos diários, que a velha, como pecúlio, ciosamente guardava, para vender na feira mensal.
Contudo uma das galinhas, pintalgada, pescoço pelado, crista vermelha e recortada, de raça “pedrês”, era a melhor poedeira da velha! Punha todos os dias um ovo e pasme-se, ovos com duas gemas!
Tinha a velha grande afeição a esta galinha, à qual tratava com especial cuidado. Sentada nos degraus do balcão, aconchegava-a a velha no regaço, acariciava-lhe a crista, cobria-lhe de beijos a cabeça e na palma da mão, oferecia-lhe grãos de milho, que a galinha, gulosa, debicava.
E assim passavam os velhos os seus dias, cuidando ela da criação e amealhando os ovos na arca; guardando ele, por distracção, as cabras nos montes.
Até que um dia, ou melhor numa manhã, daquelas frias de Inverno, que gelavam no bebedouro a água e revestiam o pátio de “côdo”, a velha foi destapar o buraco ao poleiro, e ao chegar à ponta do balcão, o seu coração teve um sobressalto!
A pedra estava arredada do buraco, havia penas espalhadas nas escadas, pelo terreiro, debaixo das árvores, no quintal.
Desceu a velha aflita as escadas -Pita, pita, pita!, pila, pila, pila! - Chamou ela, como de costume.
Nem galinhas, nem pintos, nem galo, saíram do buraco para debicarem o milho no terreiro.
-Pita, pita pita! Pila, pila, pila! - Chamou novamente a velha, espreitando pelo buraco.
Mas, nem galinhas, nem pintos, nem galo, havia dentro do poleiro.
Correu a velha assustada, procurou no quintal, em todos os buracos de parede possíveis e imaginários, na moreia da lenha, na loja, na adega, nas redondezas, mas das galinhas, dos pintos, do galo, só mesmo as penas espalhadas por todo o lado!
Combalida, sentou-se a velha ao fundo das escadas. Abanava a cabeça, contorcia-se, soltava sofridos ais, enxugava as lágrimas ao canto do avental.
-Não é nenhuma tragédia, mulher – dizia-lhe o velho para a consolar – pior, seria uma doença!
-Ai homem, ai homem, deixa-me! - e nisto deixava escapar profundos gemidos - lá se foi a minha alegria, - mais gemidos - ai que lá se foi o nosso rico pãozinho, ai tanto trabalhinho para nada, homem!
Estava a velha neste pranto, o velho a tentar consolá-la como podia, quando ouviu a velha um tímido “Cácácárácá”.
Incrédula, a velha levantou-se. Do buraco do poleiro, a meio das escadas, assomou uma crista, depois uma cabeça, finalmente, assustada, a galinha “pedrês”.
Subiu a velha, contente, os degraus dois a dois, apertou a galinha ao peito, beijou-a, afagou-a e chorou de alegria!
-Minha linda, minha rica – e dava-lhe repetidos beijos na crista - estás salva, meu tesouro, estás salva!
E nisto, recostando-se às resguardas do balcão, exibindo para o velho a galinha “pedrês” ainda assustada, exclamou:
-Louvado seja Deus, ao menos esta escapou! Ao menos esta escapou!