Mulheres judias em festa com músicos
Fez, Maroccos, 1950.
Aqui fica outro belo romance popular, recolhido por Garret no seu romanceiro, mas que tem um contexto histórico muito interessante pelos indícios geográficos, históricos e sociais no texto.
A história reporta-se ao comércio marítimo do Norte da Europa com o Norte de África, ao tempo da dinastia alaouita, numa data em que os Portugueses perdiam o controlo desse comércio, mesmo pela via do contrabando, e situa-se seguramente antes da queda da Mazagão portuguesa no último quartel do séc. XVIII e depois de meados do séc. XVII, data em que após a restauração, Ceuta ficou nas mãos de Castela: «Eu Vinha do mar de Hamburgo numa linda caravela; cativaram-me os mouros» […] «Que longe está Mazagão, Ceuta tem Voz de Castela»
O espaço geográfico é possivelmente o do bairro judeu da cidade marítima de Rabat, Marrocos ( para vender me levaram a Salé, que é sua terra), país que desde a diáspora safaradita tinha uma florescente comunidade de mercadores judeus que faziam o comércio das especiarias com a Europa: «Dava-me uma negra vida, dava-me uma vida perra; de dia pisar esparto, de noite a moer canela.» E a probabilidade de ser o sul de Marrocos é grande, porque as terras cristãs mais próximas eram Mazagão e Ceuta; ainda assim distantes.
O contexto social é o da enorme comunidade de cristãos cativos na pirataria de costa e que chegaram a constituir uma grande comunidade em Marraquexe, com culto e Igreja próprios.
O resto é uma história de amor de uma judia por um cativo. Ela reconhece que não é amada, dá-lhe dinheiro do seu dote para o resgate e do alto da torre contempla a última vela que lhe foge no horizonte com o ingrato amante:
Eu vinha do mar de Hamburgo
Numa linda caravela;
Cativaram-nos os moiros
Entre la paz e la guerra.
Para vender me levaram
A Salé, que é sua terra
Não houve moiro nem moira
Quer por mim nem branca dera;
Só houve um perro judio
Que ali comprar-me quisera;
Dava-me uma negra vida,
Dava-me uma vida perra;
De dia pisar esparto,
De noite moer canela,
E uma mordaça na boca
Para eu lhe não comer dela.
Mas foi a minha fortuna
Dar c’uma patroa bela,
Que me dava do pão alvo,
De pão que comia ela.
Dava-me do que eu queria
E mais do que eu não quisera,
Que nos braços da judia
Chorava – que não por ela.
Diazia-me então: - «Não chores,
Cristão, vai-te à tua terra.»
-«Como hei-de eu ir, senhora,
se me falta la moeda?»
-«Se fora por um cavalo,
Eu uma égua te dera;
Se fosse por um navio
Dera-te uma caravela.»
-«Não fora por um cavalo,
Não fora senhora bela;
Que está longe Mazagão,
Ceuta tem voz de Castela.
Nem por navio não fora,
Que eu fugir não quisera,
Que era roubar ao teu pai
Dinheiro que por mim dera.»
-«Toma esta bolsa, cristão
Feita de seda amarela;
Minha mãe quando morreu
Me deixou senhora dela.
Vai-te, paga o teu resgate;
E às damas da tua terra
Dirás o amor da judia
Quanto mais vale que o delas.»
Palavras não eram ditas,
O patrão que era chegado.
-«Venhais embora, patrão,
E vinde com Deus louvado
Que agora tenho recado
Que o meu resgate é chegado.»
-«Cristão! Cristão! Que disseste!
Olhe que é muito cruzado.
Quem te deu tanto dinheiro
Para seres resgatado?»
-«Duas irmãs mo ganharam,
outra mo tinha guardado;
E um anjo do céu mo trouxe,
Um anjo por deus mandado.»
-«Dize-me, ó cristão, dize
Se queres ser renegado.
Que te hei-de fazer meu genro,
Senhor de todo o meu estado.»
-«Eu não quero ser judio
E nem turco arrenegado,
E não quero ser senhor
De todo esse teu estado.
Porque trago no meu peito
A Jesus crucificado.»
-«Que tens tu, filha Raquel?
Dize-me cá, filha amada,
Se é pelo cristão maldito
Que ficaste desgraçada.»
-«Meu pai, deixe o cristão, deixe,
Que ele me não deve nada:
Deve-me a flor do meu corpo,
Mas de vontade foi dada.»
Mandou fazer-lhe uma torre
De pedraria lavrada;
Que não dissessem os moiros:
-«A judia é desonrada.»
Viola, minha viola,
Aqui te deixo por mão,
Que os amores da judia
Pela ondas do mar vão.