Já tremeluzia a estrela Vénus e o campo adormecia majestoso e doce. O contorno dos cabeços e das moitas fundiam-se nas sombras das pastagens e a uns metros mais abaixo, um toque de um chocalho de gado, o cochichar das águas no açude do Pereiro. Eu já tinha ajudado o Zé Carlos a degolar o galo. Sentio-o exalar o último suspiro, enquanto apanhei o sangue para a malga.
Assim nos encontrou o Nuno, nesta azáfama, quando veio lá de dentro dizer que a panela de ferro já fervia. Era na cozinha adossada ao barracão, que tínhamos preparada a ceia. E aí já eu picara as cebolas, os tomates, o alho, a salsa, tudo muito miudinho para fazer o refugado, como pedira o Mário. Nas duas mesas de esplanada, a mesa posta para dez pessoas, encostado à parede encardida, um velho guarda-loiça, com uma talha de pimentos curtidos, dois ou três pães, uma embalagem de cerveja sem álcool, um garrafão de vinho, um saco de arroz e um covilhete de barro com azeitonas. Noutra parede, sobre uma pequena mesa de madeira, uma pilha de frascos de vidro com mais pimentos curtidos, ao lado, duas colheres de pau enfiadas numa jarra de vidro grosso e baço.
Enquanto o galo cozia, assámos no borralho umas tiras de entremeada e umas febras. O Mário de vez em quando destapava a panela e mexia. Provava, mudo, um gole curto do molho, que já cheirava a galo e rectificava o tempero. Com o garfo espetava a carne para verificar a cozedura. Quando o galo ficou tenrinho deitou o arroz, pouco, porque segundo dizia, a cabidela quer-se aguada; Depois o sangue. Mais meia hora de cozedura; provou e estendeu-me a colher. Sorvi uma colherada, bem cheia… lenta e sorri, com espanto:
- Está bom!
Estava realmente bom; o seu perfume enchia a cozinha. Então todos nos aproximámos da mesa; o António Gata partiu o pão, o Mário encheu os pratos até transbordarem.
E o Carlos Gata, que não era grande apreciador de cabidela, tentou uma garfada tímida. Provou, e levantou para mim uns olhos alargados de assombro. Outra garfada… Um piscar de olho… E exclamou:
- Está divino, João!
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