Naquele tempo, quando andava pelos meus vinte e picos, ocupava as minhas férias grandes na agricultura, ajudando a minha mãe a tratar umas terras herdadas dos meus avós e visitava as redondezas, onde tinha excelentes amigos.
Naturalmente percorria aqueles caminhos a pé desde a minha infância, munido de um cajado e pequeno farnel. Amigos e parentes, bons conhecidos e alguns amores estavam sempre no fim de cada caminhada, mas nunca me continham, nunca me preenchiam, nunca me desviaram do percurso que eu próprio tinha escolhido.
Como diz o Almada Negreiros, «a individualidade nasce dentro do indivíduo já solto dos seus progenitores. È nos primeiros contactos do indivíduo com os outros que, com o mundo exterior, que o começa a desenhar-se, desde logo, o contorno da sua individualidade ou personalidade, como queiram chamar-lhe. Tudo isto passa-se em plena idade da inconsciência: o indivíduo é um todo único até morrer, e já o é desde que nasce, desde antes mesmo de o saber e de ter a consciência de si próprio».
Cada pessoa, seja ela quem for, é uma espécie de bola atirada numa direcção, que segue o percurso há muito estabelecido, ao mesmo tempo que pensa estar a forçar o seu próprio destino. De qualquer modo a pessoa humana é um negócio particular de cada um; o destino reside em nós e não no exterior, o que dá à superfície da vida, aos acontecimentos visíveis uma certa irrelevância. «Uma fatalidade ou um destino sobreposto ao nosso, passam a ser a melhor das nossas energias ao serviço da nossa própria personalidade individual humana». Uma fatalidade, faz-nos cair de joelhos e prestar atenção a coisas em que nunca reparámos: Uma montanha que se estende para o céu, como o vento sopra silencioso sobre um vale, as folhas amarelecidas dos carvalhos a darem o primeiro ar outonal aos dias cada vez mais curtos do Verão.
É nestes momentos que perdemos toda a arrogância e ficamos humildes e gratos pela beleza da terra.
Nesse dia de Domingo, estava uma bonita manhã. O meu amigo Quim tinha falecido há umas semanas num estúpido acidente de motorizada nas Entre-Vinhas. Não tinha com quem conversar; pensei: O que me mede a mim, que sou um homem livre, de ir até à Ruvina, onde vivem os meus parentes e namoriscar a Isabel? E dei por mim, depois de almoço, com espanto, a caminho, estrada fora.
Esta seguia ao longo das tapadas, atravessava uma ponte, e depois de uma grande subida por entre lameiros, alcançava um alto aberto com uma vista panorâmica, sobre uma paisagem familiar: Numa ligeira elevação, uma igreja erguia-se sobre os telhados vermelhos das casas. Cheguei à Bismula depois de meia hora a pé. Atravessando-a, parei na única taberna aberta para um breve refresco e ganhar fôlego para o resto da viagem.
A seguir à aldeia o caminho descia pelas vinhas e, ao longo de um ribeiro, prosseguia pelo limite de uma carreira de freixos batidos pelo vento e eu diverti-me a ver as formas arrojadas e grotescas dos troncos e das raízes. Primeiro predominavam as impressões cómicas: caretas, gestos trocistas de gente conhecida e desconhecida, animais, nos novelos das raízes. Depois, à medida que avançava, as imagens, combinadas com as sombras, as formas dos ramos e amálgamas das folhas, tornam-se assustadoras, fantasmagóricas.
Acelarei o passo, assustado, e saltando as poldras do ribeiro, do outro lado da margem, atravessei um pequeno vale onde um velho pastor guardava duas vacas leiteiras. Tudo isto, incluindo os cabeços, as tapadas cobertas de giestas negrais e o curto ribeiro atravessando as pastagens, fresco, translúcido, como uma pintura, apaziguaram-me o coração de uma forma tão imponente e doce, que sucumbi, a este recanto maravilhoso da paisagem.
Percebi que tudo isto é mais imprescindível e fascinante para mim do que todas as outras coisas da existência.
Deitei-me à sombra de um amieiro para comer o farnel. Nos limites do cabeço um merintel, levantou do mato rasteiro e, voou com um grande ruído de asas a bater sobre a minha cabeça, pousando numa das galhas do amieiro.
Fiquei ali deitado, a observar o merintel no seu ninho e a escutar a linguagem suave da terra, que subia do murmúrio calamitoso das águas a galgar o açude, sem me importar com o passar inexorável das horas.
Ocorreram-me então estes versos que compus mentalmente:
Se me deixasses,
enfeitava-te o cabelo
de papoilas,
jacintos
e margaridas;
Verde amieiro,
à beira do açude,
onde fez ninho
o merintel.