Quinta-feira, 7 de Fevereiro de 2008

 

             

            Naquele tempo, quando andava pelos meus vinte e picos, ocupava as minhas férias grandes na agricultura, ajudando a minha mãe a tratar umas terras herdadas dos meus avós e visitava as redondezas, onde tinha excelentes amigos.

            Naturalmente percorria aqueles caminhos a pé desde a minha infância, munido de um cajado e pequeno farnel. Amigos e parentes, bons conhecidos e alguns amores estavam sempre no fim de cada caminhada, mas nunca me continham, nunca me preenchiam, nunca me desviaram do percurso que eu próprio tinha escolhido.

            Como diz o Almada Negreiros, «a individualidade nasce dentro do indivíduo já solto dos seus progenitores. È nos primeiros contactos do indivíduo com os outros que, com o mundo exterior, que o começa a desenhar-se, desde logo, o contorno da sua individualidade ou personalidade, como queiram chamar-lhe. Tudo isto passa-se em plena idade da inconsciência: o indivíduo é um todo único até morrer, e já o é desde que nasce, desde antes mesmo de o saber e de ter a consciência de si próprio».

            Cada pessoa, seja ela quem for, é uma espécie de bola atirada numa direcção, que segue o percurso há muito estabelecido, ao mesmo tempo que pensa estar a forçar o seu próprio destino. De qualquer modo a pessoa humana é um negócio particular de cada um; o destino reside em nós e não no exterior, o que dá à superfície da vida, aos acontecimentos visíveis uma certa irrelevância. «Uma fatalidade ou um destino sobreposto ao nosso, passam a ser a melhor das nossas energias ao serviço da nossa própria personalidade individual humana». Uma fatalidade, faz-nos cair de joelhos e prestar atenção a coisas em que nunca reparámos: Uma montanha que se estende para o céu, como o vento sopra silencioso sobre um vale, as folhas amarelecidas dos carvalhos a darem o primeiro ar outonal aos dias cada vez mais curtos do Verão.

            É nestes momentos que perdemos toda a arrogância e ficamos humildes e gratos pela beleza da terra.

            Nesse dia de Domingo, estava uma bonita manhã. O meu amigo Quim tinha falecido há umas semanas num estúpido acidente de motorizada nas Entre-Vinhas. Não tinha com quem conversar; pensei: O que me mede a mim, que sou um homem livre, de ir até à Ruvina, onde vivem os meus parentes e namoriscar a Isabel? E dei por mim, depois de almoço, com espanto, a caminho, estrada fora.

            Esta seguia ao longo das tapadas, atravessava uma ponte, e depois de uma grande subida por entre lameiros, alcançava um alto aberto com uma vista panorâmica, sobre uma paisagem familiar: Numa ligeira elevação, uma igreja erguia-se sobre os telhados vermelhos das casas. Cheguei à Bismula depois de meia hora a pé. Atravessando-a, parei na única taberna aberta para um breve refresco e ganhar fôlego para o resto da viagem.

            A seguir à aldeia o caminho descia pelas vinhas e, ao longo de um ribeiro, prosseguia pelo limite de uma carreira de freixos batidos pelo vento e eu diverti-me a ver as formas arrojadas e grotescas dos troncos e das raízes. Primeiro predominavam as impressões cómicas: caretas, gestos trocistas de gente conhecida e desconhecida, animais, nos novelos das raízes. Depois, à medida que avançava, as imagens, combinadas com as sombras, as formas dos ramos e amálgamas das folhas, tornam-se assustadoras, fantasmagóricas.  

            Acelarei o passo, assustado, e saltando as poldras do ribeiro, do outro lado da margem, atravessei um pequeno vale onde um velho pastor guardava duas vacas leiteiras. Tudo isto, incluindo os cabeços, as tapadas cobertas de giestas negrais e o curto ribeiro atravessando as pastagens, fresco, translúcido, como uma pintura, apaziguaram-me o coração de uma forma tão imponente e doce, que sucumbi, a este recanto maravilhoso da paisagem.

            Percebi que tudo isto é mais imprescindível e fascinante para mim do que todas as outras coisas da existência.

            Deitei-me à sombra de um amieiro para comer o farnel. Nos limites do cabeço um merintel, levantou do mato rasteiro e, voou com um grande ruído de asas a bater sobre a minha cabeça, pousando numa das galhas do amieiro.

            Fiquei ali deitado, a observar o merintel no seu ninho e a escutar a linguagem suave da terra, que subia do murmúrio calamitoso das águas a galgar o açude, sem me importar com o passar inexorável das horas.

            Ocorreram-me então estes versos que compus mentalmente:

           

 

Se me deixasses,
enfeitava-te o cabelo
de papoilas,
jacintos
e margaridas;

Verde amieiro,
à beira do açude,
onde fez ninho
o merintel.

 

 

 



publicado por Manuel Maria às 13:37 | link do post | comentar

1 comentário:
De ana a 8 de Fevereiro de 2008 às 18:51
Bem se nota, pela forma sentida como fala desse seu caminhar, escutar e observar, que as coisas da Criação o fascinam e inspiram, ou não teria dito "apaziguaram-me o coração de uma forma tão imponente e doce ..."


Comentar post

mais sobre mim
Março 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


posts recentes

PELO NOSSO IRMÃO MARCOS, ...

Canção do Volfrâmio

Bom Natal a todos!

O Primeiro Lugar da Poesi...

dramátia Aldeia ao abanon...

RAMOS ROSA E O SEGREDO O...

Recuperação do Património...

As viagens Iniciàticas de...

Os Talassas

Saudade Estranha

Tradição e Pragmatismo

Romance da Branca Lua

Cavaco e o canto da Maria

Crónica do Bairro Alto – ...

Uma História do Arco Da V...

Chá de Erva da Jamaica

Cada cabeça sua sentença!

Tribunal Constitucional ...

Até um dia, companheiro!

Meu último quadro

Paul, o dragão

A Terra Dos Cegos

A venda de uma vaca

Os Insensatos

Nostálgia...

O "Assalto" ao Castelo d...

A Conjura dos Animais

Lenda do Cruzeiro de Saca...

Boas festas!

tatoo

arquivos

Março 2014

Fevereiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Dezembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Junho 2011

Maio 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

links
blogs SAPO
subscrever feeds