O meu colega Vitorino Pereira é um pessoa simples e de aguda inteligência.
Por ocasião de umas negociações num inventário complicado, reunimo-nos no seu escritório, numa sala com uma mesa e duas estantes rústicas que trouxe da adega do avô, nas Cortes, aldeia dos arredores de Leiria, onde também se dedica à agricultura.
O cabeça-de-casal no inventário, homem a rondar os oitenta, já viúvo, juntou-se recentemente com uma senhora, que nas palavras maliciosas do Vitorino Pereira, “só lá vai a casa, para fazer o almoço e limpar o pó”.
-Pois…-contrapus eu- a limpar o pó…conte-me coisas, a ver se acredito…
-Ó colega – sorriu- a gente sabe como é; até os bichos têm medo da solidão...
Então, levantando os olhos do relatório de avaliação da verba principal, fixou-me uns breves segundos com aqueles seus olhos pequeninos, redondos, penetrantes, e contou a seguinte história:
-Quer ver como as coisas são, colega? Até a natureza nos dá ensinamentos para a vida… - e recostando-se na cadeira, pondo de lado o processo- Tinha lá na quinta uma cadela de raça e um cão rafeiro; A cadela era cheia de “pedegree” e o cão apareceu por lá, ladino, a namorar a cadela e foi ficando, tendo várias ninhadas com a cadela, até que esta morreu há coisa de um mês.
- E depois, colega; que aconteceu?- quis eu saber.
-O cão andou uma semana, murcho, sem vontade de comer. Há coisa de quinze dias reparei que andava mais animado; eu sem lhe saber o motivo. Mas quando me levantei um dia pela manhã, para vir para o escritório, tropecei numa cadelita que atravessava sorrateiramente o pátio. Ele vendo que o apanhara em flagrante, veio roçar-se nas minhas pernas a pedir um afago.
- Pois… eles sabem-na toda… -comentei.
- O mais engraçado - continuou ele- é que esta cena se repetiu nos dias seguintes. A cadelita aos poucos perdeu a vergonha, deixou de fugir e começou a ser visita regular de casa. E ele todos os dias me dava graxa a pedir autorização para que ela ficasse. Até que um certo dia, ao levantar-me reparei, para meu espanto, que tinham dormido os dois aos pés da minha cama.
- Relação assumida e conumada…-observei, divertido.
- O mais interessante – concluiu ele, alisando a barba- é que a partir deste dia, me passou a ignorar com a mesma indiferença, com que sempre o fizera.
Hoje terei nova reunião com o Vitorino para arrematar o assunto do inventário. Vou ansioso para ouvir o desenvolvimento desta história, ou, quem sabe, uma nova e interessante história, daquelas que só ele sabe contar.