Em o Banquete, Platão descreve um banquete que decorreu em casa de Agatão, em 416 a. C., o qual festejava a sua primeira vitória no festival do teatro de Dionísio em Atenas.
A historia, que é contada em segunda mão, relata uma discussão entre doze convidados, incluindo Sócrates e quatro atenienses ilustres: Aristófanes (dramaturgo), Pausânias ( discípulo do Sofista Pródico) e Alcíbades (estadista ateniense e admirador de Sócrates).
À saída dos banhos públicos, Sócrates, vestido com as suas melhores roupas, encontra Aristódemo e convida-o a acompanhá-lo. Agatão (cujo nome significa cavalheiro), da-lhes as boas vindas, senta Sócrtaes à sua esquerda e saúda Aristodemo. Depois de prestarem homenagem aos deuses, Exímaco, um médico, introduz o tópico da discussão do dia: O Amor. Os convidados falam por ordem, da esquerda para a direita, à volta da mesa, até quem cada membro tenha dado a sua opinião. Discorrem sobre o amor, até que chega Alcibíades embriagado e rezingão, que zomba por todos ainda se encontrarem sóbrios e depois aludindo aos seus rejeitados avanços homossexuais sobre Sócrates, que no entanto aceitaria os de Agatão, provoca-o:
«[…]Nunca haverá um homem que se lhe compare, nem antigo nem moderno, a menos que não tentemos compará-lo com qualquer dos homens, mas sim com os silenos e sátiros, os quais os compararei a ele é à sua conversa».
Estas palavras de Alcibíades, lidas atentamente, são uma crítica às maneiras aristocráticas de Sócrates, que só bebe o vinho ritual. È igual a todos os homens, diz Alcibíades por despeito, só se distingue deles por não beber como os Silenos e Sátiros, verdadeiros foliões (de philoinia – etimologicamente os que gostam de vinho ) os quais bebiam o vinho não misturado na cratera, o que era considerado um sinal de incultura e barbárie.
Sócrates, ignora-o e continua a conversa, discutindo tragédia e comédia até horas tardias com Agatão e Aristófanes, até que sai, pela madrugada.
A análise mais detalhada do diálogo, quem tiver curiosidade intelectual, poderá fazê-lo em Ross, T.M. Essaus in Greeck Philosophy, Oxford, Clarendon, 1969 e também em Skemp, Joseph Bright, Plato, Oxford, Carendon Press, 1976, acompanhando com o texto integral de o Banquete traduzido pelas Publicações Europa América, edição de bolso, n.º 168.
O interessante é queorque Platão situa a discussão filosófica, no contexto de um banquete. Isto explica-se pelo culto dionisíaco e a veneração do vinho no arcaísmo e um conceito de vida muito próprio da aristocracia daquele tempo e que Sócrates também seguia.
O próprio texto Homérico contém numerosas referências ao vinho, com o qual se apagam as chamas da fogueira de Heitor e de Prácolo ( Ilíada, XXIII, 230 e XXIV). Como nas sociedades orientais, esta bebida, resultado da fermentação da uva, ocupava o centro dos rituais, quer gregos, quer etruscos, quer romanos.
O vinho não era indispensável à vida, mas nas sociedades arcaicas era indispensável ao espírito. Vindo de um processo de vinificação, está do lado da cultura e não da natureza. O vinho é uma droga (pharmakon) que permite uma comunicação directa com os deuses, provocando o entusiasmo (enteos- que significa etimologicamente ser inspirado por deus).
E o vinho (oinos) bebia-se na antiguidade cortado com água, numa mistura feita na cratera (daí Krasi, nome do vinho no grego moderno) antes do banquete, que era invariavelmente em homenagem a Dionísio, deus do vinho e da vinha, e onde as taças (thasos) circulavam ritualmente da esquerda para a direita, entre os convidados, pela mesma ordem em que lhes era concedida a palavra.
O banquete era composto, em primeiro lugar, por um repasto de carne (dais) ligado ao sacrifício (thusia) e confundindo-se com ele; não se comia sem ter oferecido um sacrifício aos deuses, que obviamente não ingerindo alimentos, se contentavam com os odores destes.
A seguir prolongava-se a refeição bebendo (symposion) e falava-se, recitava-se poesia discutia-se filosofia e cantava-se. Um dos homens ( simposiarca) organizava as coisas, mandava encher as taças e concedia a palavra.
Esses symposion organizados em torno da palavra , da música e do vinho, caracterizavam uma arte de viver e um ideal da aristocracia arcaica grega. Era uma maneira de pensar e de ser entre a aristocracia de Cólon, de Éfeso, de Mileto, de Samos, de Mitilene e de outras cidades da Grécia oriental nos séc. VII e VI a.C.
Sócrates pertencia a este círculo de nobres amantes da symposia, de mísica e de poesia, como Safo, e de boa mesa, apreciadores de perfumes, e unguentos; pessoas de cabeleira cuidada (nas palavras de Hiponax de Éfeso) com longas túnicas a roçar o chão, apreciadores de banhos e massagens e cujo modo de vida se traduzia num habrosuné ( luxo), que Mazzarino resumiria séculos mais tarde no conceito de “alegria individual”.
Também poderia fazer a analogia entre o Banquete, o culto a Dionísio, os doze convivas, o repasto da carne sacrificial partida e repartida igualitariamente entre os convivas, a celebração em torno do vinho e do tema do amor, com a última ceia de Cristo e o último mandamento que Este deixou aos seus discípulos: «amai-vos uns aos outros como eu vos amei». E já agora podíamos associar Alcibíades á figura de Judas e Agatão à de João.
Mas isso seria assunto para a cristologia, semiótica, história da cultura clássica, que envolveria erudição e abordagem teológica, que não cabem na despretensão deste blogue.
Mas retomando o fio à meada, resumidamente o que é esta “alegria individual” de que fala Mazarino? É nem mais nem menos que a máxima satisfatória que Sócrates enunciou no Banquete:
O amor sente falta de beleza e de verdade. Qualquer pessoa que veja a beleza com os olhos da alma será «[…] amiga de Deus e imortal, se é que algum homem o pode ser».
O amor é pois beleza e verdade. E isto só se aprende com os olhos da alma.