Quarta-feira, 10 de Outubro de 2007

 

 

 

 

…Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu…

Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me

(se bem que eu fosse crescido demais para isso)…

Lembro-me e as lágrimas caem-me sobre o meu coração e lavam-no da vida,

E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim

Às vezes ela cantava a «Nau Catrineta»:

 

Lá vai a Nau catrineta

Por sobre as àguas do mar…

 

E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,

Era a «Bela Infanta»… Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim

E lembra-me que pouco me lembrarei dela depois, e ela amava-me tanto!

Como fui ingrato com ela – e a final que fiz eu da vida?

Era a «Bela Infanta»… Eu fechava os olhos, e ela cantava:

 

Estando a Bela Infanta

No seu jardim assentada

 

Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar

E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.

 

Estando a Bela Infanta

No seu jardim assentada,

Seu pente de ouro na mão,

Seus cabelos penteava.

 

Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!

Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,

E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!

Mas tudo isto foi passado, lanterna a uma esquina de rua velha.

Passar isto faz frio, faz fome de uma cousa que se não pode obter.

Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.

Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!

Vertigem ténue de confusas coisas da alma!

Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,

Quando grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,

Lágrimas, lágrimas inúteis

Leves brisas de contradição roçando pela face a alma…

 

Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção,

Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo,

A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:

 

Fifteen men on the Dead Man’s Chest.

Yo-ho-ho and a bottle of rum!

...

 

                                                                  Fernando Pessoa (poemas de Alberto Caeiro)



publicado por Manuel Maria às 19:36 | link do post | comentar

1 comentário:
De ana a 12 de Outubro de 2007 às 17:01
a bottle of rum!
Por vezes, quase lhe sinto a necessidade.
Depois passa-me a sensação. Basta procurar outro modo - em fuga como as ondas - aqui cito Neruda .
Há muitos modos de fugir do que nos assusta ou desconsola.


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