…Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu…
Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me
(se bem que eu fosse crescido demais para isso)…
Lembro-me e as lágrimas caem-me sobre o meu coração e lavam-no da vida,
E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim
Às vezes ela cantava a «Nau Catrineta»:
Lá vai a Nau catrineta
Por sobre as àguas do mar…
E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,
Era a «Bela Infanta»… Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim
E lembra-me que pouco me lembrarei dela depois, e ela amava-me tanto!
Como fui ingrato com ela – e a final que fiz eu da vida?
Era a «Bela Infanta»… Eu fechava os olhos, e ela cantava:
Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada
Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar
E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.
Estando a Bela Infanta
No seu jardim assentada,
Seu pente de ouro na mão,
Seus cabelos penteava.
Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!
Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,
E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!
Mas tudo isto foi passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
Passar isto faz frio, faz fome de uma cousa que se não pode obter.
Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem ténue de confusas coisas da alma!
Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,
Quando grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,
Lágrimas, lágrimas inúteis
Leves brisas de contradição roçando pela face a alma…
Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção,
Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo,
A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:
Fifteen men on the Dead Man’s Chest.
Yo-ho-ho and a bottle of rum!
...
Fernando Pessoa (poemas de Alberto Caeiro)