No planalto, um corte à direita, que tomámos. E aí começámos a descer vertiginosamente aquela estrada sinuosa – a que levavam os mercadores do outro lado da fronteira, no séc. XII, à feira franca. Dois ou três quilómetros depois, avistámos numa quebrada da encosta, a povoação amuralhada. À nossa frente, os dois torrões defensivos sobre a porta medieval, com um verrão de cada lado e os telhados das casas espreitando por cima do muro.
O frio daquele dia de Março, ficou esquecido, ante a inesperada, incomparável beleza daquele lugar. Atravessámos uma ponte, que galgava um pequeno arroio todo rodeado de verdura, e chegámos a um terreiro com um cruzeiro a meio.
O divino artista, que está lá em cima, compusera certamente num dia de calma inspiração, este quadro magnífico só para nós. A rusticidade das fragas musgosas a pique sobre o rio, a antiguidade celta dos verrões a lembrar tempos de antanho, os fofos de verdura formando um prado e descendo em diferentes matizes até ao Côa, os carvalhos quase sagrados subindo penosamente as encostas, o vento a trazer o cheiro característico das lareiras, a majestade e doçura do lugar, a tonalidade difusa da luz da manhã, nem mestre Malhoa, conseguiria retratar!
Para além da porta, depois de algumas casas em granito, seguimos a rua esguia e tortuosa, entre alpendres de casas meio apalaçadas. Numa esquina esbarrámos num escudo de armas de velha pedra, roído de musgo, grandemente afidalgado. Mais adiante, um recanto formava um pequeno largo, para onde abria um portal renascentista de rara beleza, adoçado a uma pequena capela. E quase ao fundo da rua, um portão abria-se para um curral de lavrador, cuidadosamente empedrado. Dentro, um cão ladrava com furor.
Assim chegámos ao largo principal no centro da aldeia, onde o edifício brasonado da antiga câmara assentava sobre um bonito chafariz de granito e uma rua subia, íngreme, em socalco, entre fileiras de casas térreas e pobres, levando ao castelo e á antiga matriz.
Já íamos sensivelmente a meio desta rua, quando uma porta se abriu e um rosto espreitou, vindo do escuro. Era uma velha, com madeixas brancas, embrulhada na sua mantilha preta.
- Esta rua - quisemos nós saber- vai dar ao castelo?
A velha abriu mais a porta, para nos observar.
- Sim… para o castelo.
E o rosto da velha encheu-se de curiosidade. Quis saber de onde éramos; onde havíamos dormido. Mentimos:
- De Lisboa…
- E onde ficaram? – insistiu.
Mentindo de novo:
- Na Guarda…
- Querem entar?
E sem esperar resposta, escancarou a porta. Salvando um degrau, entrámos numa salinha térrea, com paredes rebocadas a caliça, enegrecida pelo tempo. Pelos cantos, alfaias e objectos espalhados no chão ou dependurados do tecto, oferecendo uma perspectiva do quotidiano rural de há décadas atrás; no tecto baixo em carvalho, algumas manchas negras da chuva; junto à pequena janela, de um só vidro, um balcão improvisado, com garrafas de variados licores caseiros e uma velhinha máquina de café instantâneo. Tu, maravilhada, balbuciaste:
- É tão rústico!
Contrapus:
- Não é não… é simples!