Sexta-feira, 07.03.14
«El meu amic i germà de batalla, Marcos, guardià de portes estretes, va abandonar la vida aquesta matinada, se'n va anar amb els minerals, com l'horta en guaret, en callat adéu. Em queda al cor la seua honradesa i la seua generositat.» Paco Minarro. Valência
Tradução:
«O meu amigo e irmão de guerra, Marcos, guardião das portas estreitas, abandonou a vida hoje de manhã, ele foi com os minerais, como o jardim em flor, em silencioso adeus. Estarei no coração da sua honestidade e sua generosidade.»
Poema:
Cuando se fue el maestro
la luz de esta mañana
me dijo: Van tres días
que mi hermano Marcos no trabaja.
?Murió? Sólo sabemos...
que se nos fue por una senda clara
diciéndonos: Hacedme
un duelo de labores y esperanzas.
Sed buenos y no más, sed lo que he sido
entre vosotros: alma.
Vivid, la vida sigue
los muertos mueren y las sombras pasan
lleva quien deja y vive el que ha vivido.
!Yunques sonad; enmudeced campanas!
Y hacia otra luz más pura
partió el hermano de la luz del alba,
del sol de los talleres,
el viejo alegre de la vida santa.
Llevad amigos
su cuerpo a la montaña
a los azules montes
del ancho Guadarrama.
Allí hay barrancos hondos
de pinos verdes donde el viento canta.
Su corazón repose
bajo una encina casta,
en tierra de tomillos, donde juegan
mariposas doradas.
Allí el maestro un día
soñaba un nuevo florecer de España
(A. Machado)
Segunda-feira, 17.02.14

Foi pelo mês de Maio,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
Floriam as giestas negrais.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Na rasa do Marinhol
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
Saíram duas grossas pepitas.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente
Para te enfeitar as orelhas
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
Com arcádias de oiro.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Traz as mãos gretadas,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
De peneirar a terra.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Os sapatos todos gastos,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
De recolher o volfrâmio.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Dois guardas o levam,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
porque não pagou a taxa.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
O sol nasce para todos,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
E na cadeia não brilha.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Senhora D’Ajuda bendita,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
Padroeira da Malhada.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Livrai-o deste apuro,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
E dou-te brincos novos.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Vieram os primos Guerras,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
E pagaram a fiança.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Levaram-no para casa
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
E fizeram grande festa.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Presunto e vinho na mesa.
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
Até ao nascer do sol.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
A Senhora D’Ajuda bendita,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
Ganhou brincos novos.
Vê, vê, pastorinha, vê,
Ali vai João Guerra Valente.
Foi pelo mês de Maio,
Trá lá rá lá rá, lá lá lá rá,
Floriam as giestas negrais.
Terça-feira, 17.12.13

Diz-se que o Natal é o aniversário do Nascimento de Jesus e uma data de Paz e de Amor entre todos os homens.
Inicialmente, até nem se comemorava o Natal. Só em meados do século IV d.C. o Papa Júlio I fixou a data no dia 25 de Dezembro, como a data nascimento de Jesus, segundo se diz, para cristianizar as Saturnálias romanas, que terminavam a 23 de Dezembro, e as festas de Solstício de Inverno Célticas, coincidentes com o dia mais curto do ano, em 21 de Dezembro, a partir do qual os dias começava a ser mais longos, e com as festividades do Deus Solar Mitra, cujo nascimento, «dies natalis solis invicti», era a 25 de Dezembro.
E até há a evidência bíblica que Jesus não nasceu no Inverno, porque quando tal aconteceu os pastores encontravam-se nos campos a cuidar dos rebanhos, nas vigílias da noite, e a evidência histórica de os census de Augusto, data aproximada em que Cristo nasceu, se terem dado na Primavera.
Por isso, o Natal não corresponde à data de nascimento de Jesus, sendo apenas dedicado a Cristo, verdadeiro Sol de Justiça (Mateus 17,2; Apocalipse 1,16), por substituição daquelas festividades pagãs.
E é em parte devido às Saturnálias, período em que não havia senhores nem escravos, em que todos os amigos se visitavam e trocavam presentes, que o Natal mantém esta tradição de ser uma festa de família, de amizade e de troca de presentes.
Mas o Natal não é apenas uma festa de troca de presentes, de família ou de amizade, mas de toda a humanidade, porque ela apela à fraternidade e tolerância universais, que estão subjacentes a cristianismo, que é derivado do Judaísmo, uma religião Uraneana (celestial), como todas as do Oriente, que gradualmente se tornou monoteísta.
Evoluindo do paternalismo Judaico, legalista, ritualista, a grande revolução do cristianismo foi precisamente o de ter nascido como uma religião matriarcal, baseada na compaixão, no amor, na tolerância, em que a Igreja é considerada como mãe universal, e com grande relevo do papel de Maria como mãe de Deus.
A parábola do filho pródigo, em que o pai sai ao encontro do filho, com o coração compassivo, sem exigir justificações pelos erros, é bem sintetizadora desta visão maternal da nova religião, tão diferente da visão legalista e punidora do judaísmo.
Com a queda do Império, por razões políticas, com a necessidade de a hierarquia da Igreja substituir o poder imperial, é que o cristianismo se tornou exclusivamente paternalista e gradualmente dogmático, legalista e ritualista.
Cristo chamava a Deus Abba (Pai). Por conseguinte, a todos os homens, que são irmãos, Deus dá a possibilidade de se encontrarem com ele, sejam quais forem os caminhos:
“eu não vim para o povo de Israel mas para todos os homens”; “Deus é amor”; a Deus ninguém o viu… Se nos amarmos, Deus está em nós”.
Ninguém pode afirmar que conhece verdadeiramente Deus. Deus é mistério para o comum dos mortais. Como dizia Santo Agostinho, “se comprehendestis non est Deus”; e como dizia S. Tomás, “Quando chegarmos ao conceito, nega-lo sempre!”.
Por isso Deus implica uma busca constante! E onde é que o encontramos?
É onde estiver o amor… O Amor é o sinal da presença de Deus. E quem estiver mais próximo do Amor autêntico é que está mais próximo de Deus, independentemente da sua fé ou religião, porque Deus é Amor.
O Deuteronómio dizia: “ide e aprendei o que significa quero misericórdia, não sacrifícios”; o Corão começa cada Azara com “em nome de Deus, o clemente, o misericordioso”.
Um sufista murciano do sec. XII, Ibn Arabi, dizia: “ se sentes no profundo de ti mesmo, que isto te incite ao bem; é o teu amor por Deus, e o teu amor pelos homens que Deus ama. Se pensas que o mal consiste em afastar-se dos homens, porque Deus os ama, como te ama a ti, e que perdes o teu amor a Deus se fazes mal aqueles que ele ama, ou seja, a todos os homens, tu és discípulo de Jesus, seja qual for a religião que professes”.
A tolerância, é como vimos, por este belo texto de um poeta muçulmano, o aspecto amoroso da relação religiosa. E do cristianismo também.
Ibn Al fadd, outro sufista Islâmico rezava assim:
“Senhor, um dia visito a Igreja, outro dia a mesquita, mas de templo em templo, só a ti vou buscando. Para os teus discípulos não há heresia, não há hortodoxia; todos podem ver a tua verdade sem vendas… o teu fiel é um servidor de perfumes, necessita da essência dos vasos do amor divino”.
Por isso é que celebrar o nascimento de Cristo a 25 de Dezembro, é celebrar o Amor entre todos os Homens. Sem isto, não faz sentido o Natal nem sequer o cristianismo.
Foi o Amor que Cristo trouxe como mensagem à humanidade, que faz do Natal uma festa universal.
O amor implica … àgape, que era a palavra grega para fraternidade e ceia ritual.
Por isso é que também não faz sentido Natal sem ceia!
Desejo por isso uma boa Ceia De Natal para todos!
Sexta-feira, 29.11.13
Foi numa casa da Praça da República, Sabugal, que Manuel António Pina nasceu há setenta anos; e foi nessa mesma praça que deu os primeiros passos e disse as primeiras palavras, como ele muito bem sublinhou numa entrevista.
No começo, como qualquer um de nós, ouviu as palavras dos outros, dos pais, da família, dos vizinhos, que primeiro lhe traduziram a realidade do mundo, interpelando-o à descoberta da linguagem e à plenitude do referencial da existência.
Como ensinava Heidegger, o que fala não inventa ex-nihilo a sua linguagem sem apropriar o que lhe é pré-existente e herda.
Isto, porque a língua materna é o sujeito antes de si, de que todos se apropriam, aprendendo a falar para poderem vir a si e existirem por si mesmo.
O lugar concreto em que se transmitiu esta herança do dom da palavra a Manuel Pina foi a Praça da República, no Sabugal.
Aqui, respondendo ao apelo da linguagem materna, Manuel Pina abriu a palavra dada em graça e aprendeu a falar, a nomear o logos, descobrindo-se como sujeito, construindo a sua identidade, a sua própria linguagem, o seu não-lugar.
Por isso é que a língua materna é importante. É como uma segunda pele que nos acompanha para toda a vida para onde quer formos, desde o nascimento à morte, e ao mesmo tempo é aquilo que se desloca de nós, fazendo-nos saír ao encontro do mundo.
Derrida dizia que a língua não é una; e falar é escrever um manuscrito a duas mãos (duas palavras) que no mesmo gesto pedem e dão; uma que dá e outra que recebe a graça de se reinventar e de se alienar do lugar em busca da utopia, de um não-lugar.
É a nossa casa de onde nunca saímos, onde pertencemos, onde já não moramos, mas onde sempre regressamos, porque foi nela que aprendemos a nossa relação com o mundo e com os outros.
É o nosso ponto de partida e uma espécie de cais de saudade onde estamos sempre a regressar.
E foi na Praça da República que foi dada a palavra ao Manuel António Pina. Foi ali que começou a palavra do poeta. Primeiro, pela simples repetição, depois, pela apropriação do significante e do significado. E com ela Manuel António Pina disse, nomeou, deu, traduziu a realidade do mundo para quem o quisesse ouvir, construiu a sua singularidade e a sua fantasia espectral.
Mas como todos ficamos reféns da palavra herdada para toda a vida, Manuel Pina, como homem agradecido pelo dom da palavra, regressava nostalgicamente ao Sabugal em busca da língua mãe, imóvel na sua mobilidade, móvel na sua imobilidade.
Desde a infância refém daquela palavra herdada, da linguagem materna, toda a sua escrita foi necessariamente auto-bio-gráfica. Porque a sua linguagem foi um dom herdado, jamais a poesia que escreveu foi dele, mas da língua mãe.
E se a palavra se recebe e a linguagem se herda, a poesia, tal como as pessoas, também tem um lugar de nascimento.
Por isso é que a obra poética de Manuel Pina começou na Praça da República, no Sabugal!
Quinta-feira, 31.10.13
Ó dramática aldeia de abandono,
antigas chaminés que aos poucos de vão apagando! casas vazias,
beirais que já não gotejam nestes chuvosos dias
de Outono...
E na praça o bebedouro que há anos não corre!
as portadas das janelas, com o tempo caindo...
O terreiro aqui e ali a erva invadindo,
ao pelourinho, a secular acácia que finalmente morreu,
depois de longa agonia.
Ó triste aldeia ao abandono,
lamúrio de almas transidas ao frio
de Outono...
Pardieiros, ruínas, húmido deserto
de famílias inteiras que foram por esse mundo fora,
espectros de mortos-vivos... sonho encoberto...
e saudade... tanta saudade, que ao passarmos na ponte,
o rio chora,
por nós que também vamos embora.
Terça-feira, 01.10.13

O Segredo da obra de Ramos Rosa já pode ser revelado! Sob o olhar vigilante do Mestre do segundo pilar, iniciou o seu trabalho, pelo meio dia, conforme revela no seu poema, “O Aprendiz Secreto":
«Tudo será construído no silêncio, pela força do silêncio, mas o pilar mais forte da construção será uma palavra. Tão viva e densa como o silêncio e que, nascida do silêncio, ao silêncio conduzirá».
Este poema faz parte do livro "A Construção do Corpo” de 1969, de Ramos Rosa, que os críticos interpretam como sendo sobre o corpo como uma construção ou sobre construção propriamente dita. Este livro é, contudo, muito mais profundo, hermético e simbólico do que se pensa. É sobre "construção", é... mas de outra bem diferente; a do espírito!
O livro "A Construção do Corpo" de Ramos Rosa trata da Arte Real, tal como o livro de Hermann Hess, "A Viagem Ao País Da Manhã", que estranhamente, à semelhança do livro de Ramos Rosa, também nunca ninguém soube interpretar correctamente até hoje.
Acerca do livro de Hesse, os críticos dizem tratar-se de uma obra alegórica e poética de leitura hermética, ficando-se por aqui na explicação da mesma.
O relato de Hesse é o de uma viagem alegórica de um grupo de uma misteriosa Ordem ao País da Manhã, que geograficamente é onde nasce o Sol, isto é, a Luz, o Oriente. Este Oriente não é geográfico, mas simbólico, porque a viagem também não é física, mas de autoconhecimento depois de uma iniciação. Por isso é que o autor refere logo no início a prova pelos três elementos Ar , Terra e Fogo a que foi sujeito, correspondente à cerimónia de iniciação, e da necessidade do hermetismo no relato desta viagem, por estar obrigado ao dever de sigilo imposto pela Ordem.
A Chave do livro de Ramos Rosa, tal como o de Hesse, está precisamente nas páginas iniciais.
O sentido do citado poema “Aprendiz Secreto”, é claro:
O aprendiz maçon, durante os três anos a seguir à iniciação, permanece, à semelhança dos mistérios Pitagóricos, em silêncio absoluto durante os trabalhos, para que possa ouvir as palavras dos mestres, adquirindo o conhecimento que fará saír da sua boca as palavras sábias. Os seus trabalhos fazem-se sob a vigilância do Mestre que se senta a Norte, do lado do pilar da força, Boaz.
Não existe por isso qualquer dúvida da influência maçónica na obra de Ramos Rosa. Um outro poema da mesma obra, que a seguir transcrevo, vai mais longe, falando do Trabalho da Arte Real e da transformação que esta provoca no iniciado maçon, recorrendo a alguns dos mesmos elementos simbólicos da obra de Hesse:
«Sempre a tentativa nunca vã...
O equilíbrio musical dos instrumentos,
a paciência do teu pulso suave e certo,
o teu rosto mais largo e a calma força
que sobe e que modelas palmo a palmo,
rio que ascende como um tronco em plena sala.
A tua casa habita entre o silêncio e o dia,
Entre a calma e a luz o movimento é livre.
Acordar a leve chama veia a veia,
erguê-la do fundo e solta propagá-la
aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos
e que a cabeça ascenda, cordial corola plena.
Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível.
Respiras lentamente. A terra inteira é viva.
E sentes o teu sangue harmonioso e livre
correr ligado à água, ao ar, ao fogo lúcido.
No interior centro cálido abre-se a flor de luz,
rigor suave e óleo, música de músculos, roda
lenta girando das ancas ao busto ondeado
e cada vez mais ampla a onda livre ondula
a todo o corpo uno, num respirar de vela.
Sobre a toalha de água, à luz de um sol real,
dança e respira, respira e dança a vida,
o seu corpo é um barco que o próprio mar modela».
No poema podemos identificar, como noutro célebre poema de Pessoa, poeta maçon e cuja obra teve influência maçónica, recentemente provada (saíu um artigo excelente no “Jornal de Letras”, sobre o assunto), o trabalho de polir a pedra as viagens iniciáticas, os elementos fundamentais do universo, alguns elementos simbólicos dos trabalhos.
Começa logo por falar da Justa Harmonia do emprego dos instrumentos de trabalho do maçon, que é um trabalho “de pulso”, persistente, calmo e firme, modelando o que se encontra no centro da sala, que nada mais é a pedra informe, que paulatinamente se transforma em pedra cúbica.
E esta obra de Ramos Rosa, nem é a única que tem influência maçónica. Ele escreveu pelo menos outras duas ou três, cujo título é revelador, e que a brevidade de um artigo de jornal, não permitem analisar; são elas “A Pedra Nua”, “Estou Vivo e Escrevo Sol” e outro, cujo título até é semelhante ao de Hess, “Viagem Através De Uma Nebulosa”.
O percurso espiritual de Ramos Rosa, só pode ser escandaloso para quem é ignorante em determinados assuntos, e é, aliás, em tudo semelhante ao de Leonardo Coimbra, Pascoais e Pessoa, que partindo da filosofia maçónica de inspiração neoplatónica, evoluíram para um misticismo, no caso de Coimbra, católico, e Pascoais, Pessoa e Rosa, de fraternidade universal, perto do panteísmo, espiritualidade e filosofia próprias de influência oriental, pacifista e ecologista, muito semelhantes ao de Tolstoy e de Hesse.
Hermann Hesse fala na sua “Viagem ao País da Manhã” do mesmo que Ramos Rosa fala nestes poemas.
E para desfazer preconceitos, Leal Freire, que não tem influências maçónicas, no belo poema Prece, que já analisei num artigo sob o título “A Linguagem Poética de Leal Freire”, também canta o destino da vida, que consiste em alcançar a terra natal enquanto pátria da Alma Peregrina que regressa a casa, ao «húmus da Terra-Mãe».
Todos os poetas sabem onde reencontram a essência das suas Almas Peregrinas: O Circuito Solar da Alma de Ramos Rosa e Hermann Hesse completa-se quando os olhos da alma desvendarem a Luz Primordial ao homem peregrino neste mundo de sombras, em busca permanente da Luz/Verdade; a de Leal Freire, quando a Sombra da «Noite» se diluir outra vez na luz difusa da «Manhã».
No fundo, a vida de todos os homens superiores é uma mesma viagem iniciática de autoconhecimento, de ver sempre para lá das sombras, que podendo divergir no caminho escolhido, tem sempre o mesmo destino:
Tentar ver o lado iluminado da caverna, e o regresso à Luz Primordial do Amor Infinito do Criador, que desenha o controno das sombras neste nosso mundo transitório!
Sexta-feira, 13.09.13

É pacífico que uma das vertentes para o desenvolvimento integrado da economia do concelho, é a recuperação e divulgação do seu património, como alavanca do sector terciário e complemento do sector primário.
Mas recuperação do património, quer dizer, antes de mais preservação. E preservação é manter com respeito das suas características sem o desvirtuar com inovações que o descaracterizem.
Com o património é preciso o mesmo cuidado que uma operação plástica: se a intervenção desvirtua os traços essenciais do rosto, já não temos o mesmo rosto, mas outro, apesar da pessoa ser a mesma. Dá-se uma modificação da identidade física.
Por isso é que as intervenções sobre o património, e aqui refiro-me em concreto ao edificado, devem obedecer a critério do bom senso, e serem o mais conservadoras que possível, para evitar a sua descaracterização.
Ora, é precisamente o que não se tem verificado em algumas situações, de que apenas destaco as obras da Praça da República, que sendo uma boa iniciativa de homenagem a Manuel António Pina, são um desses exemplos de infeliz concretização do mau senso estético:
A intervenção na área do chafariz da Praça da República, com empedramento totalmente desenquadrado do resto da Praça, é um exemplo de falta de bom senso estético.
Agora acrescentaram-se uns bancos em madeira marítima para os munícipes gozarem a sombra dos medronheiros. Já nem é falta de bom seno; é ridículo!
De facto, o total calcetamento da zona do chafariz em pedra diferente, não o adequa ao resto da Praça também empedrada em toda a sua extensão, a qual, por não ter qualquer zona verde, resulta, pela solução dos medronheiros, arbustos de pequeno porte e copa baixa, demasiado aberta, e por isso esteticamente monótona.
Este resultado das obras podia mitigar-se reduzindo o empedramento agora colocado na área do chafariz, substituindo-o, mesmo que seja numa pequeníssima área, por jardim, e colocando no lugar dos medronheiros, árvores que pelo menos proporcionassem sombra e um recanto verde aprazível, realçado do resto da Praça.
É por sua vez conhecida a sensibilidade ecológica de Manuel António Pina e mais reservadas e conhecidas de alguns amigos, as suas ideias filosóficas iniciáticas e simbólicas, que se tivessem sido tidos em conta, proporcionariam elementos interessantes que podiam ter sido utilizados na execução da obra.
Os custos nem seriam muitos, dignificava-se a praça, homenageava-se mais condignamente o Manuel António Pina de acordo com a sua personalidade.
E o que não é de todo displicente, ainda vai a tempo de ser feito com pouco trabalho e custo, pelos serviços camarários!
Perguntarão os queridos leitores, que sabe este “escriba” de arquitectura paisagística, para “meter a foice em seara alheia”. Nada…
… mas sobra-lhe algum bom senso e bom gosto, que é o que tem faltado na recuperação do património concelhio!
Quinta-feira, 05.09.13

Hermann Hesse (Calw, 2 de julho de 1877 — Montagnola, 9 de agosto de 1962) , Nobel de Literatura em 1946, é dos meus autores favoritos, porque a sua obra tem uma espiritualidade e filosofia próprias de influência oriental, pacifista e ecologista.
Acabei de ler dele a Viagem ao País da Manhã, Edição/reimpressão: 1999 Páginas: 96 Editor: Edições Asa ISBN: 9789724114385 Coleção: Pequenos Prazeres, de que a Editora Caminho também tem uma edição.
O prefácio e a nota de contracapa dizem tratar-se de uma obra alegórica e poética de leitura hermética, ficando-se por aqui na explicação da mesma. Desconheço se existe algum estudo sobre a interpretação desta obra de Hermann Hesse, escrita em forma de enigmas e símbolos, mas que não é nada hermética para quem tenha certo tipo de conhecimentos.
O relato é o de uma viagem alegórica de um grupo de uma misteriosa Ordem ao País da Manhã, que geograficamente é onde nasce o Sol, isto é, a Luz, o Oriente.
Este Oriente não é geográfico, mas simbólico, porque a viagem também não é física, mas de autoconhecimento depois de uma iniciação.
Por isso é que o autor refere logo no início a prova pelos três elementos Ar , Terra e Fogo a que foi sujeito, correspondente à cerimónia de iniciação, e da necessidade do hermetismo no relato desta viagem, por estar obrigado ao dever de sigilo imposto pela Ordem.
Mas o autor levanta a ponta do véu, para quem saiba ler nas entrelinhas:
São adeptos e irmãos desta Ordem muitos personagens do domínio da História, das artes e dos próprios escritos de Hesse, como o pintor Paul Klee, poeta suíço das relações do autor e rosacruciano; o pintor Klingsor, personagem de um conto de Hesse, com o nome simbólico do personagem do mesmo nome de uma fábula Rosacruz; o poeta Lauscher, heterónimo de Hess num livro de poemas de 1900; ou o barqueiro Vasudeva, personagem de uma lenda indiana e de tradição Rosacruz; bem como o próprio Hermann Hesse, que é protagonista nesta viagem em concreto.
Não podendo ir mais longe do que o autor na revelação do segredo, deixo aqui apenas algumas pistas, para quem quiser ler a obra e aprofundar conhecimentos:
A Ordem “estuda” em diversos grupos espalhados territorialmente, mas sob uma única obediência; a reunião desses grupos faz-se em grandes acampamentos; referência ao desaparecimento do manuscrito que serviu de fundação aos Rosacruzes e a lenda do seu enterro no sepulcro desaparecido do seu fundador, Christian Rosenkreuz; a prova de readmissão num grau superior perante os grandes oficiais; a revelação de alguns graus superiores da Ordem, sob a forma de anagrama.
Posto isto, a chave do enigma:
Esta obra relata de forma hermética e simbólica a experiência Rosacruciana do autor, posterior à primeira grande guerra e no seguimento dos movimentos espirituais que se lhe seguiram, o seu afastamento temporário da Ordem dos Rosa-Cruz, a sua readmissão num grau superior, e a mística da fraternidade universal do movimento Rosa-Cruz.
Hermann Hesse fala na sua viagem ao País da Manhã. Leal Freire no belo poema Prece, que já analisei sob o título A Linguagem Poética de Leal Freire, canta o destino da vida, que consiste em alcançar a terra natal enquanto pátria da Alma Peregrina que regressa a casa, ao «húmus da Terra-Mãe».
Ambos os poetas sabem onde reencontram a essência das suas Almas Peregrinas: O circuito solar da Alma de um completa-se no País da Manhã; a do outro, quando a Sombra da «Noite» se diluir outra vez na luz difusa da «Manhã».
No fundo, a vida de todos os homens superiores é uma mesma viagem iniciática de autoconhecimento, que podendo divergir no caminho escolhido, tem sempre o mesmo destino:
O regresso à Luz Primordial…
… Porque todos são filhos da mesma Luz!

No tempo em que, por iniciativa de D. Carlos a ditadura de João Franco interrompeu a instabilidade governativa do rotativismo (dez governos em cinco anos) legislando por decreto e sem apoio parlamentar nem eleições, a emigração portuguesa no Brasil enviou ao ditador uma carta de apoio com trinta mil assinaturas.
A missiva foi entregue em mão por uma solene comitiva, vinha dentro de um pomposo estojo de seda azul com uns fechos em ouro e começava aludindo alegoricamente à retirada dos dez mil de Xenofonte, que fugindo dos persas e chegando ao mar onde se viram a salvo, gritaram: O mar! O mar! Que em grego se diz talassa.
A missiva terminava por isso nestes termos:
«Talassa! Talassa! O mar! o mar! Eis o grito de entusiasmo com que os de Xenefonte saudaram, no ponto Euxino, a redenção. Um governo! Um Governo! Eis o brado uníssono com que […] saúda, felicitando-se com V. Exa. a redenção no governo de Franco Castelo Branco.»
A imprensa e a oposição gozaram com a grandiloquência da missiva e daí em diante passou a chamar-se aos apoiantes de João Franco de Talassas.
E a expressão Talassa depois de 1910 passou a ser naturalmente sinónimo de conservador ou reaccionário.
Normalmente quando uma sociedade de poder tradicional começa a haver contestação e tentativa de mudança, os representantes .desse poder reagem para defenderem os seus interesses. Foi assunto muito estudado por Nietzche e Bertrand Russel, designadamente por este no ensaio O Poder Nu.
E quanto mais se perde com a mudança do poder, mais enérgica tende a ser a reacção daqueles que só ganham com a sua conservação.
O poder tradicional em regime democrático só muda com eleições. Por isso é normal que em época de eleições apareçam os talassas a incutir no povo o medo da mudança do poder.
Enfim… É um dos males da democracia com que temos de viver…
Mas, como dizia Assis Brasil, em Democracia Representativa: do Voto e do Modo de Votar, a liberdade democrática implica que o povo tenha direito de escolher instituições e governos ruíns:
«É pelo preço das experiências que ele adquire a capacidade de emancipação […] A liberdade de escolher pode trazer- e traz inevitavelmente - tribulações e sofrimentos, mas ainda é o único estado digno e útil, para o homem, para o cidadão e para a comunidade»
Os Talassas têem medo da liberdade de escolha do povo… por isso condicionam o voto e vêem a liberdade de voto como uma excentridade da democracia, porque entendem que as decisões e o poder não devem estar nas mãos do povo ignorante, mas nas de uma elite política.
Isto é, nas mãos dos Talassas!
Quinta-feira, 25.07.13
Encosto-me toda a ti
enquanto dormes,
na esperança de que
consigas afastar de mim
a noite fria e imensa...
E sinto-me mais quente,
embora trema ainda.
Meu amor, o teu corpo
acordou o Verão na minha pele!
E toda esta saudade
chamada amor
dentro do peito não finda.
Gritas o desejo de mim
e eu Eco, vou planando
reconhecendo, estranhamente
Que o sentimento cresce
sem território tactil,
sem requerimento verbal.
Quero-te, ponto final.
Beijo-te a alma
e volto ao sono sem sonhos
De onde me hás-de resgatar.
A.G.

Recentemente li um artigo num "media" local que dizia: «Nunca tanto se falou neste Concelho, como agora, da sua História, dos seus Homens e Mulheres de cultura, arte e política, das suas tradições, usos e costumes» e que «os habitantes do Concelho [...], juntamente com a Diáspora Concelhia, sentem uma nostalgia e uma melancolia em relação ao passado, em relação à maneira como viveram a sua infância, a sua juventude, e a tudo o que os rodeou». Isto «São actos de resistência feitos por resistentes, que sabem que uma modernidade equilibrada, sustentável e verdadeiramente Concelhia, nasce de uma reinterpretação da tradição» (António Emídio in "Capeia Arraiana")
É verdade que a história, a cultura, tradições, usos e costumes, são importantes para a caracterização de um povo. Como dizia Pascoais, é a caracterização das instituições, da alma de um povo, que permite escolher o futuro adequado a esse povo.
Também é importante o estudo do passado, para potenciar o presente. Como dizia Poincaré, um povo quando quer ganhar forças, vai buscá-las ao seu passado.
Mas o passado, apenas pode ser objecto da lembrança. Quando a lembrança é má, o passado esquece-se; quando agradável, pode causar um sentimento de nostalgia e melancolia, que é o desejo desse passado distante e a tristeza por não se poder revivê-lo. Duarte Nunes de Leão, D. Duarte, Garrett e Pascoais, chamaram a este duplo sentimento de Saudade!
Uma sociedade é como uma árvore, que para se renovar todas as Primaveras vai beber o húmus da terra, através das raízes. A história e a cultura, são o húmus de uma sociedade.
Uma árvore, se não for buscar o húmus à terra, se os ramos mais distantes, por qualquer motivo não forem buscar esse alimento às raízes, ela acaba por morrer. De que servem as raízes e o húmus, se os ramos não se renovam todas as Primaveras?
O mesmo se passa numa sociedade: O estudo do passado e da cultura, além de mera lembrança, tem de se converter num desejo de repetição no presente, ser uma esperança do presente e antecipação do futuro. Mas se ele não provoca o desejo de projecção no presente, ele não é mais que saudade, recordação melancolia, simples nostalgia, tristeza.
A Melancolia/Nostalgia, porque vive exclusivamente do passado, não cria esperança, não projecta o passado no presente, não antecipa o futuro, não é nada!
O tronco, os ramos, as folhas, os frutos de uma árvore, “sentem” a necessidade da seiva para sobreviverem e se renovarem ciclicamente. No estado botânico esta necessidade é o “stress hídrico”, que faz os frutos os ramos e o tronco irem buscar o húmus à terra.
Numa sociedade, o estado equivalente ao “stress hídrico”, que faz com que a Melancolia/Nostalgia se transforme em esperança no futuro, é a Angústia; uma disposição que a impele a questionar permanentemente as possibilidades de realização, numa acção sobre o seu destino e o tempo futuro. A este sentimento de Angústia, também assim designado por Heidegger, chamou Kierkegaard “Náusea”:
«Enterra-se um dedo no solo para cheirar em que terra se está; eu enterro o dedo na existência – ela não cheira a coisa nenhuma. Onde é que eu estou? Que significa dizer: Mundo?» Kierkegaard in Repetição III pág. 261
Por isso, não sendo nada, por si só, a Melancolia/Nostalgia, quando origina a perplexidade da Angústia, transforma-se numa energia positiva, porque as perguntas que formula sobre existência, exigem a procura de respostas, possibilidades, caminhos para a vida.
Quando ela fica no passado, a Melancolia/Nostalgia é um vazio do ser, que leva ao sentimento de Tédio, essa energia negativa que é um não fazer nada, em que a existência não tem sabor, nem sal, nem sentido.
No Tédio não há possibilidades e as que se dispõem estão mortas.
A Melancolia/Nostalgia, por si só, como elementos da Saudade, dizem respeito ao passado. E no passado não vão buscar-se energias. As energias estão no presente. Na forma como este interroga ou não o futuro e responde ou não às suas possibilidades, consoante a vida em sociedade é uma permanente Angústia, ou Tédio.
Como dizia Herculano: «Que são estas coisas de regeneração das tradições, senão sons ocos, que não correspondem a nenhuma ideia?» (Opúculos , III, pp 111-112).
Serve alguma coisa falar na História, nos Homens e Mulheres de cultura, arte e política, das suas tradições, usos e costumes, num concelho pobre, numa sociedade entediada?
È o desenvolvimento material da generalidade da população que trás o das virtudes espirituais e democráticas.
Como dizia António Sérgio: «os alicerces da democracia política são abertos na economia» (Regeneração e Tradição, Moral e Economia, Carta a Pascoais publicada na Àguia, Vol. V, 2.º série, 1914, pp 1-9)
Só a Nostalgia/Melancolia e o estudo da História, dos costumes, tradição e política, não chegam…
´ Também é preciso o Pragmatismo de saber agir sobre o presente, escolhendo o caminho e o sentido deste em relação ao futuro!
Para que serve uma árvore, se nem sombra dá?
Para que servem a História, os costumes, a tradição e a política, se não se traduzem em progresso material e espiritual?
Enfim…
De que serve uma coisa, se não tem qualquer utilidade?
Quarta-feira, 26.06.13

Naquela noite,
Branca, branca
Como fios de prata,
Uma brasa de lua,
Caía sobre as águas
Do rio Erges.
Zamora e a companheira
Passavam o contrabando
Escondidos na penumbra
Que precedia a alba;
Mas os “civiles” do tenente Perales,
Dois com pistolas aperradas,
Três de carabinas longas,
Guardavam os carreiros da serra.
Descidos os cumes da Gata,
Ignorando que os “civiles” esperavam,
À passagem do rio Erges,
Zamora e a companheira, detendo-se na margem,
Tirou o cinturão e a pistola, ele;
Ela, o corpete e a saia de linho,
Mais brancos que a lua cheia;
E quando entravam na água,
Uma voz cava ouviu-se:
-É a lei; estão cercados…
É melhor que não resistam!
Perales fez a revista,
E vendo o que transportavam,
Fez-lhes a proposta seguinte:
-Se quiserem seguir,
Passem-me cem duros,
E eu não vi nada!
A resposta de Zamora,
Foi uma cutilada!...
Perales ficou ferido,
Enquanto Zamora gritava:
-Não trato com bandidos;
Prefiro morte honrada!
Mas contra duas pistolas aperradas,
E três carabinas longas,
Zamora não pode nada!
Vários tiros se ouviram
Na treva da noite
E Zamora tombou
De três golpes fatais.
Um anjo choroso amparou-o
No regaço.
A lua incendiada
Beijou-lhe a fronte.
E quando se espalhou a notícia,
Um clamor de velhas vozes
levantou-se nas azinhagas:
- António Zamora da Glória,
Potro de negra crina ao vento,
Toiro bravo da Ginestosa,
Quem te pôs a ferros,
Perto do Rio Erges?
-Duas pistolas aperradas,
Três carabinas longas...
Murmurarou o Erges, sonolento!
Quinta-feira, 23.05.13

Na Odisseia de Homero, o Canto XII, narra o confronto de Ulisses com as sereias.
Regressando do Hades (inferno), Ulisses volta à ilha da feiticeira Circe, que o adverte sobre os perigos que o herói e os seus marinheiros ainda terão que enfrentar antes de regressar à Ítaca natal:
«As Sereias serão tua primeira prova. Elas encantam todos aqueles que porventura passem por elas. Quem inadvertidamente se entregar ao canto delas nunca mais retornará ao lar, nunca mais cairá nos braços da mulher, não verá os filhos nunca mais. Elas enfeitiçam os que passam… […] Tapa com cera os ouvidos dos teus companheiros para não caírem na armadilha sonora. Se, entretanto, quiseres o mel do concerto delas, ordena que te amarrem de pés e mãos erecto no mastro. Que o nó seja duplo. Entrega-te, então, ao prazer de ouvi-las. Se, por acaso, pedires que te afrouxem as cordas, ordena-lhes que as apertem ainda mais.»
O trecho mostra que, já na poesia homérica, encontramos registada a força da música como fonte de prazer, mas o prazer, como engano, ilusão da realidade. Esta espécie de “Música” é perigosa; e quem inadvertidamente se entrega a ela, arruína-se.
À “Música” das Sereias, contrapunha-se na Odisseia a dos Aedos, espécie de trovadores da antiguidade, que sendo inspirados pelos deuses, são a sua voz poética, e transmitiam através do canto a memória e a glória das façanhas dos heróis.
Há duas espécies de “Música”, portanto: A das Sereias, uma “Música” artificial, enganosa, que leva á perdição; e a do Aedo, instrumental, de função cívica, formadora da consciência colectiva do povo.
Mas é difícil distinguir entre as duas, porque a “Música das Sereias” passa-se muitas vezes pela outra, ao fazer os incautos acreditarem que também é inspirada na sabedoria dos deuses:
«Vem aqui! Vem a nós! Ó Ulisses, glorioso! Honra dos Aqueus! Pára teu navio e vem escutar as nossas vozes! Jamais um navio passou por aqui sem que tenha sido escutada a doce voz que sai de nossas bocas, e cada um regressou tendo delas desfrutado e se tornado mais rico em saber, pois nós sabemos os males, todos os males que os deuses, nos campos de Tróia, infligiram aos homens de Argos e de Tróia, e nós sabemos também tudo o que se passa sobre a terra fecunda.»
No entanto, Ulisses, avisado por Circe, soube que a recompensa, ao contrario do que lhe dizem as “Sereias”, é a perdição.
O herói, acatando o conselho da feiticeira, pede aos companheiros que tapem os ouvidos com cera e o amarrem ao mastro. A tripulação zarpa e, não dando ouvidos ao herói, que no momento em que ouve o canto das sereias, pede que o desamarrem, deste modo chegam à Ítaca.
Para além da sua beleza literária, esta passagem é uma alegoria com vários sentidos possíveis. De todos, gosto daquele que vê em Ulisses amarrado ao mastro a imagem da auto-repressão do indivíduo indiferenciado, que se transfigura num sujeito identitário; do homem comum, em herói interprete de um destino colectivo; do homem que tem de reprimir as suas pulsões naturais, para se tornar chefe; do chefe que se domina a si próprio para ser digno de mandar.
E os que obedecem, como os remadores, confiando no chefe, pela sua capacidade de auto-domínio, tapam os ouvidos, e cumprem as suas tarefas de marinheiros, levando o trirreme até Ítaca.
A nossa tragédia é também mais Grega, do que se imagina!
Cavaco ouve embevecido o canto do aprofundamento da “Europa Unida”, “Música” que nos tem levado à perdição; e para maior desgraça, não consegue superar as pulsões mediocres da sua perssonalidade, para se transfigurar num chefe respeitado, que todos sigam.
Mas numa coisa, contudo, é diferente a nossa tragédia à Grega:
O Ulisses homérico, teve feiticeira a Círce para o avisar do engano; O nosso Ulisses, para mal dos nossos pecados, tem a beata Maria, que só reza ladaínhas e jaculatórias!
Quinta-feira, 09.05.13

Antes, há mais de quarenta anos, Coimbra era a cidade dos Estudantes, Doutores, Engenheiros e Médicos. Era a cidade dos amores de estudante. Hoje conserva o galhardete de Ciências Medicinais e pouco mais.
A verdade é como o sol. Faz ver tudo e não se deixa olhar (Victor Hugo). Veio a reforma do ensino superior, a criação de muitas universidades, com inúmeros e inúteis cursos, que proliferaram como ninhos de andorinha em edifícios públicos. Assim, foi criado um polo universitário no coração do Bairro Alto – cantado por muitos fadistas -, o Papa-Açorda.
Ali muitos alunos privilegiados e reitores se reuniam em encontros filo-gastronómicos, apurando o paladar e dissertando variadíssimas teses. O requisito sine qua non para participar no banquete era a manifesta pouca profundidade das matérias, pois filosofar de grande à mesa pode provocar azias indesejáveis. Os meninos queriam-se especialistas em assuntos gerais e o melhor aluno em retórica de generalidades recebia, cuspido pelo Magnífico Reitor, o caroço de uma azeitona. O ritual, dizem os antropólogos, significava a passagem de conhecimento do mestre para o aprendiz. O pupilo engolia o caroço da eminência parda, e, ao fim de pouco tempo, tornava-se uma barra em matemática, ciência política, economia, desporto, artes e tartes.
O Papa-Açorda era igualmente um sítio very nice para qualquer turista londrino se empanturrar enquanto durasse um Chelsea- Arsenal. O corpo docente, adepto de métodos modernos de ensino, viu no Papa-Açorda o triatlo perfeito do aluno exemplar: comer bem, beber ainda melhor e aprender inglês técnico com adeptos fervorosos.
Um dia, o aluno Pinóquio encontrou-se com o Magnífico Reitor do Instituto do Prior Técnico e queixou-se de dificuldades na língua inglesa. O Reitor deu 3 palmadas na barriga e o exame de inglês técnico foi imediatamente reservado para uma sala do Papa-Açorda. Era um cantinho resguardado, onde ninguém ouviria os arrotos de qualquer um dos intervenientes.
Ora bem, o mestre e o aprendiz marcaram encontro para Domingo no Príncipe Real. Deram umas voltas nocturnas, exercitando a língua inglesa, até o apetite e a hora do exame coincidirem. Encaminharam-se para o Papa-Açorda. Foi-lhes apresentada a lista de refeições, em que cada prato custava a módica quantia de cinquenta euros por cabeça. “50 vezes dois é igual a 100, elementar meu caro watson”, dichotou o Pinóquio para conquistar o bom humor do Magnífico Reitor. “2 cabeças pensam melhor que uma”, parodiou o Magnífico.
Além dos habituais ingleses bêbedos e franceses chiques da “Filosofia da Não-Profundidade” (uma disciplina muito difícil de contornar na Sorbonne e daí virem em erasmus a Portugal), mostravam-se na passadeira social do Papa-Açorda políticos de gosto refinado e muitas excelências de apetite voraz. Proxenetas aperaltados, homens de negócios e banqueiros falidos não gostavam de ficar à porta e não descansaram enquanto não montaram esquemas de crédito- “todos ganhavam”. A “piolheira”, na expressão do Rei D. Carlos recuperada por um médio empresário, “tem a tasca da esquina para enganar o estômago”.
No topo do menu do Papa-Açorda, apareciam joaquinzinhos fritos. Pinóquio e o Magnífico Reitor coligaram-se logo na rejeição de uma comida tão prosaica. “Além disso, vêm de Espanha e desconhecemos os circunstancialismos meta-higiénicos na travessia fronteiriça para o Estado-Nação Português”- disse o Pinóquio a um Reitor estupefacto com a verve do orador. “Menino Pinóquio, se não chegar a Primeiro-Ministro, terá lugar de destaque como comentador político”, profetizou o Magnífico.
Seguiu-se Açorda Real de lagosta e gambas. “O pão é produção endógena, mas os restantes ingredientes são exógenos. A luminescência do crustáceo não engana. Temos que salvaguardar a produção nacional para que as divisas não saiam do Banco do Estado”- esclareceu Pinóquio. “O menino será um grande patriota e em economia ninguém o levará preso”- ufanou-se o Magnífico pelo discípulo que criara.
Veio a indicação de robalos com molhos alentejanos, e aí foi a vez do Magnífico se enfadar (enfardar é que não havia meio): “Estes robalos são de aviário, estou farto de comida de aviário, já me chegam as minhas atribuições profissionais”. Pinóquio riu-se cinicamente.
Não podia faltar o malvado cabrito assado, alimentado a farinhas de origem duvidosa, talvez resultantes do esmagamento de ossos. Como o bacalhau, é incluído em todos os menus de qualquer casa de pasto, de norte a sul do país. “Temos que apostar em recursos alimentares de qualidade diferenciadora, se queremos ser competitivos”- disse Pinóquio. “Concordo…absolutamente”, anuiu o Magnífico.
Na listagem apareceu o arroz de lampreia. “Tanta hemoglobina saturada hiper-sensibiliza-me. Apesar de não me inscrever nas ideias religiosas dos discípulos de Jeová, o sangue dá-me asco”- disse Pinóquio. “Os maçónicos não comem arroz de lampreia”- sentenciou o Magnífico. “Que tal um prato vegetariano, Pinóquio?”, perguntou o docente. “Quando for eleito Presidente da República pela soberania popular e o médico me interditar o consumo de carne, só comerei hortaliça nacional. Agora, excelentíssimo Reitor, o meu estômago está em abstinência há muitas horas e de manhã tive uma maratona no parque Eduardo Sétimo”, respondeu prolixamente o Pinóquio.
Restava o último prato – Alcatra da Terceira- e já não havia mais alternativas. O Magnífico lamentou a posta à mirandesa não estar discriminada positivamente no menu e o aluno Pinóquio contentou-se por não contemplar na gastronomia local a espetada madeirense. Quanto ao cherne, especialidade da casa em tempos, fora exportado enlatado para Bruxelas.
Escolhida a Alcatra da Terceira, esta foi logo regada com os melhores vinhos e abençoada com arrotos de bom uísque escocês (sugestão de 2 ingleses bêbedos que acenavam 2 notas de 100 euros na direcção da janela). O Magnífico Reitor do Instituto do Prior Técnico, de barriga cheia a abarrotar, teve necessidade de desapertar o cinto e exclamou de satisfação: “o Pinóquio merece uma nota de 20 valores! Responda-me só, em inglês técnico, como lhe soube a Alcatra da Terceira?” O Pinóquio ficou apreensivo, não sabia o que dizer. Mas debaixo da mesa escondia-se um miúdo pobre para comer os restos e algumas migalhas. O miúdo olhou satisfeito para o Pinóquio e disse: “Very Good”. O Pinóquio só teve que repetir ao Magnífico o que ouvira debaixo da mesa.
Pinóquio não cabia em si de tão grande contentamento e, de nariz vermelho, fruto dos néctares nacionais e algum excesso de pimenta no prato, exclamou: “Magnífico, com quinze já fico very good”. “Combinado, Pinóquio, as cábulas debaixo da mesa tiraram-te 5 valores. Tens 15 e um caroço de azeitona”, cuspiu o Magnífico. E riram-se como 2 deputados da mesma bancada.
Lá fora passou uma flor das vielas, o nariz do aluno Pinóquio inchou e o reitor disse-lhe, piscando o olho: “Talvez seja melhor passares pela prova oral, vais passar com distinção.”
António Alves Fernandes in "Cinco Quinas"
Terça-feira, 07.05.13

Quando R. arrumou os papéis, fechou o portátil, e se levantou da secretária para espreitar à janela, nevava. Dali não se via vivalma; aquela neve tardia de Abril estendia-se a seus pés, cobrindo todo o largo e o casario, como uma capa. Permaneceu assim, longo tempo, apoiado sobre o parapeito, elevando o seu olhar para o vazio aparente e vendo a sua respiração embaciar o vidro.
Decidiu voltar à secretária; pela porta entreaberta via os funcionários na sala contígua, ocupados a ultimarem o expediente do dia; algumas pessoas, no corredor, ainda esperavam por audiência.
Assim, ele mesmo foi à porta e mandou-os entrar.
Um velho, vestido humildemente, olhos baixos, chapéu na mão, levantou-se. Os outros, no banco corrido, viraram-se para escutarem melhor:
O velho desculpou-se amavelmente por vir incomodar àquela hora tardia, apresentou-se como dono do estabelecimento no cantinho do largo, em frente da fontinha redonda, e depois disse:
—O largo fica bonito, sim senhor… calçada nova, pedras novas… jardim novo… agora vinha era saber onde fica a minha passagem.
R. alisou o cabelo e olhou o homem de alto abaixo:
— Mas qual passagem?
—Ora —disse o velho, fitando R. nos olhos—, a do meu estabelecimento, que, evidentemente, fica tapada com as suas obras!
—Mas deixaremos um carreirinho a pé, pelo jardim… — defendeu-se R., ainda surpreendido.
—Quero que se cosa o carreirinho! —foi a resposta, e R. percebeu que tinha ali um problema bem sério, quando o velho se voltou para o banco, abrindo os braços para a assistência:
—Vou ter de passar com a mercadoria pelo ar; querem lá ver?
R. nem queria acreditar no que estava a acontecer.
—Ó P. traz-me cá o projecto do largo! – Gritou R. para a sala de expediente — temos um projecto; não temos?
Instantes depois, da outra porta entreaberta surgiu um assessor com um molho de papéis, que deixou na mesa de reuniões. R. mandou o velho acercar-se, e desenrolando um dos papéis sobre a mesa, exclamou triunfante:
—Está a ver homem… — e apontou-lhe na planta—— até vai ficar com um passeio, uma fonte e um jardim com medronheiros… e tudo sem gastar um tostão!
O homem baixou os olhos sobre a planta, onde viu projectado um jardim; no jardim um acesso para uma porta do seu estabelecimento, ficando a porta da casa sem qualquer acesso; e não se conteve:
—Que se cosa o passeio, o jardim, a fonte e os medronhos! — e virando costas a R.— badamerda as obras! —e alcançando a porta, desaparecendo no corredor— vem tudo abaixo a camartelo!
R. enrolou a planta, e engoliu em seco…