Manuel Buiça, um dos regicidas, foi um respeitado mestre-escola numa pequena vila do Distrito de Beja. A sua vida resumiu-se durante anos ao caminho entre casa e a escola, onde ensinava, diz-se, com inexcedível zelo, a cartilha maternal.
Os dias, as noites, as estações, os trabalhos do campo corriam também iguais, ano após ano; o latifundiário no conforto da sua casa senhorial, colhendo o lucro; os jornaleiros nos miseráveis casebres dos montes, vendendo a saldo a força bruta do trabalho, e o Buiça, ensinando a mesma cartilha a gerações de petizes, que se iam revezando nos bancos da escola.
Isto foi assim, até ao ano em que a ditadura de João Franco permitiu que o preço do pão aumentasse num só mês, mais de 300%. Aí os jornaleiros acordaram da letargia política em que viviam e perceberam que se o pão sai todos os dias a fumegar do forno, é porque alguém o lavrou, semeou, ceifou, malhou, moeu, tendeu e cozeu.
Daí à premissa de que sem o trabalho, a terra nada vale, foi um passo; o suficiente para, inconscientemente, fazerem meio percurso na teoria marxista da luta de classes. A “síntese” viria com a greve geral aos trabalhos agrícolas daquele Verão, reclamando o aumento em dois reis a jorna.
Vieram agitadores da capital organizar a greve. Fizeram-se piquetes; o povo cerrando os punhos na sua luta, que a batalha pelo pão, seja em que circunstância for, é sempre justa. O capital não desarmou e enviou a tropa intimidar o povo tresmalhado, reconduzi-lo ao redil dos montes, à escravidão do campo.
Os grevistas cerraram fileiras, não arredaram pé, e a greve prolongou-se por várias semanas com as searas por ceifar em todo o Alentejo, a fome rondando as casas portuguesas.
Como já não é de agora, a “corda acaba por rebentar sempre no lado do mais fraco”; e assim sucedeu: Os jornaleiros se não trabalhavam, também não ganhavam; e se não ganhavam… não comiam. É a outra face do materialismo dialéctico de Hegel, que Marx nunca explicou.
A fome generalizou-se, e aos poucos, o clamor das barrigas vazias ouviu-se bem mais alto que o das ordens de luta inspiradas nos socialismos hegeliano e proudhoniano. É que a utopia é bonita, mas a realidade... bem diferente.
A desmobilização tornou-se, pois, inevitável. O problema seria a repressão que se adivinhava sobre os cabecilhas da greve.
E foi aqui que o nome de Manuel Buiça, entrou na História. Indigitado pelos grevistas, dirigiu-se ao governo civil de Beja, negociando a rendição em troca de uma “amnistia geral”.
Obtida a garantia sobre “palavra de honra” do governador, que assim seria, conseguiu o Buiça o fim da greve, dando também a sua “palavra de honra” de que não haveria represálias.
Mas não foi isso que aconteceu. João Franco querendo prevenir futuros levantamentos populares, resolveu fazer do caso um exemplo paradigmático e ordenou a prisão dos cabecilhas, que foram levados a ferros para a sede distrital, torturados, julgados e deportados para as colónias, que o mesmo é dizer: condenados à morte.
O Buiça, que havia “empenhado a sua honra” na realização desta diligência, sentiu-se traído. Agora os olhares que se cruzavam com ele no caminho de casa para a escola já não eram de respeito e admiração, mas de silenciosa e pesada acusação. Ninguém o dizia, mas os olhares, só por si, falavam: O carrasco fora ele… não outro.
Remoendo a tristeza e a raiva durante dias, decidiu que não podia viver assim... sem honra. Vai daí, jurou repara-la. Mas repará-la como? Do governador civil, “pau mandado” de Lisboa e também ultrapassado na situação, como ele? Não; o mentor estava no terreiro do paço e tinha um nome: João Franco. Ele lha lavaria com sangue, que à honra dos homens é com sangue bem quente, a jorrar das feridas, que se lhe apaga as nódoas.
Se bem o pensou, melhor o fez. Numa soalheira manhã, deixando a porta de casa simplesmente no trinco, como sempre fazia quando ia para a escola, partiu ele para Lisboa, onde gradualmente, se foi integrando nos grupos da carbonária e do partido republicano, sempre com o fito de matar João Franco.
E na tarde do fatídico 1 de Fevereiro de 1908, lá estava o Buiça nas arcadas do terreiro do paço, carabina aperrada sob o varino, à espera do João Franco, como de um coelho.
Só que a História tem destes imprevistos: Após a recepção ao rei no cais das colunas, João Franco, que, dizem, já andava desconfiado, resolveu não acompanhar a comitiva e atalhou pelo edifício do arsenal.
O Alfredo Costa, outro dos regicidas, rompendo em pânico pela multidão, chegou-se ao Buiça e, aludindo ao João Franco, desabafou:
-Aquele porco, vai-se-nos escapar outra vez! - E apontando para o landau onde vinham o rei e o príncipe-herdeiro - Já que aqui estamos… e se aproveitássemos para deitar abaixo aqueles dois?
Ao que o Buiça, saindo das arcadas e levando a carabina acima do ombro, retorquiu:
- Vamos a isso, então!
A História, nesse preciso momento, deu uma reviravolta; e o Buiça não deitou abaixo o “coelho”… mas duas “lebres”! Uma grande... outra média, “de uma cajadada só”! .