(foto de José Velente)
Perdi uma boa parte do dia no quintal. Ao fim da tarde saí. Desci pelo churrião, em direcção ao rio e resolvi subir a um ponto do Arsaio, na outra margem. Aí, frente à nossa aldeia, fica uma encosta íngreme, coberta por lameiros e freixos, que desce a pico sobre uma ravina. Desse lugar vê-se o lado oriental da nossa aldeia, uma série de casas em granito sobre uma escarpa, com telhados em telha velha, de um vermelho já desbotado, diversas amendoeiras e nogueiras a despontarem dos muros dos quintais, aqui e ali, uma chaminé a fumegar, algumas peças de roupa, estendidas a secar. Mais acima a igreja, o cedro do cemitério, a torre de menagem, a ruína da Senhora do Castelo, a torre de menagem.
Tinha ainda umas duas horas de sol, e este foi descendo vagarosamente sobre os campos da correia, na direcção de Porto-de-Ovelha e a luz sobre os telhados e muros foi-se tornando mais amarelecida, mais intensa e dourada. Antes de me sentar, fitei por momentos o Vale da Lapa, até à folha do Côa, as colinas distantes, em primeiro plano os carvalhos do Pombal, e o caminho do Pindelo com profundos sulcos escavados pela água, e depois observei a nossa aldeia, aquele ninho aconchegante onde todos os traços de telhado, todas as empenas, todas as chaminés, me eram familiares. Mesmo por baixo do adro, um telhado, anteriormente de um castanho-escuro, foi agora recuperado e apresentava um tom mais avermelhado. Era a casa do Seixas, com aquele terraço aberto sobre a Travessa das Moreirinhas, onde exibe uma antiga estela funerária. Ainda não me tinha apercebido, mas ele reparou o telhado inteiro no último Verão. Um pouco mais ao lado a casinha do Manuel da Malhada, térrea, sem telhado ainda, mas com antena de televisão. Divorciou-se e já não a concluiu.
Algumas das casas, já têem os telhados arruinados. Todas elas pertenciam a alguém, foram construídas por alguém, alguém que viveu, comeu, dormiu, fez, teve e criou filhos e morreu lá dentro. Mas já há muito as suas chaminés não fumegam. Apenas resistem as árvores nos pequenos quintais, os pequenos prados, as últimas cepas de vinhedo, as últimas cerejeiras, que já ninguém sabe a quem pertencem.
O que os poucos e últimos habitantes vêem nas suas casas e quintais, não consigo eu ver daqui. Que o mosto fermentou e é preciso atestar a pipa, que a latada perdeu toda a rama, que a chaminé não puxa o fumo, a escava-terra mina o cantinho dos alfobres, o porco ceva para a matança, tudo isso eu não consigo ver daqui. Mas aquilo que eu vejo da nossa aldeia, outros não conseguem ver.
Ninguém vê o verde característico da figueira que nasceu no corta-águas da ponte, a suavidade do calor a subir nos telhados, por entre as copas das nogueiras, o verde-salsa da casa do Zé da Laura contrastando no cinza granítico dos muros da Mundanha, a branca agulha da torre sineira a furar a imensidão azul do céu, a graça com que o cedro do cemitério interfere com o amrelo-ôcre da torre de menagem. Ninguém repara como lá em baixo, nas veigas e hortas junto ao rio, o amarelo dourado do entardecer é mais profundo e se distingue perfeitamente da faixa azul das colinas que se erguem lá para as bandas do Carril.
Ninguém percebe, a não ser eu, que é precisamente a esta hora do pôr-do-sol, que a alma das coisas se desprende e o jogo das cores se torna mais vivo e aprimorado, que a qualquer outra hora do dia.