Terça-feira, 7 de Maio de 2013

 

 

  

     Quando R. arrumou os papéis, fechou o portátil, e se levantou da secretária para espreitar à janela, nevava. Dali não se via vivalma; aquela neve tardia de Abril estendia-se a seus pés, cobrindo todo o largo e o casario, como uma capa. Permaneceu assim, longo tempo, apoiado sobre o parapeito, elevando o seu olhar para o vazio aparente e vendo a sua respiração embaciar o vidro.

     Decidiu voltar à secretária; pela porta entreaberta via os funcionários na sala contígua, ocupados a ultimarem o expediente do dia; algumas pessoas, no corredor, ainda esperavam por audiência.

     Assim, ele mesmo foi à porta e mandou-os entrar.

     Um velho, vestido humildemente, olhos baixos, chapéu na mão, levantou-se. Os outros, no banco corrido, viraram-se para escutarem melhor:

     O velho desculpou-se amavelmente por vir incomodar àquela hora tardia, apresentou-se como dono do estabelecimento no cantinho do largo, em frente da fontinha redonda, e depois disse:

     —O largo fica bonito, sim senhor… calçada nova, pedras novas… jardim novo… agora vinha era saber onde fica a minha passagem.

     R. alisou o cabelo e olhou o homem de alto abaixo:

     — Mas qual passagem?

     —Ora —disse o velho, fitando R. nos olhos—, a do meu estabelecimento, que, evidentemente, fica tapada com as suas obras!

     —Mas deixaremos um carreirinho a pé, pelo jardim… — defendeu-se R., ainda surpreendido.

     —Quero que se cosa o carreirinho! —foi a resposta, e  R. percebeu que tinha ali um problema bem sério, quando o velho se voltou para o banco, abrindo os braços para a assistência:

     —Vou ter de passar com a mercadoria pelo ar; querem lá ver?

     R. nem queria acreditar no que estava a acontecer.

     —Ó P. traz-me cá o projecto do largo! – Gritou R. para a sala de expediente — temos um projecto; não temos?

Instantes depois, da outra porta entreaberta surgiu um assessor com um molho de papéis, que deixou na mesa de reuniões. R. mandou o velho acercar-se, e desenrolando um dos papéis sobre a mesa, exclamou triunfante:

     —Está a ver homem… — e apontou-lhe na planta—— até vai ficar com um passeio, uma fonte e um jardim com medronheiros… e tudo sem gastar um tostão!

     O homem baixou os olhos sobre a planta, onde viu projectado um jardim; no jardim um acesso para uma porta do seu estabelecimento, ficando a porta da casa sem qualquer acesso; e não se conteve:

     —Que se cosa o passeio, o jardim, a fonte e os medronhos! — e virando costas a R.— badamerda as obras! —e alcançando a porta, desaparecendo no corredor— vem tudo abaixo a camartelo!

     R. enrolou a planta,  e engoliu em seco… 

 



publicado por Manuel Maria às 11:47 | link do post | comentar

mais sobre mim
Março 2014
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30
31


posts recentes

PELO NOSSO IRMÃO MARCOS, ...

Canção do Volfrâmio

Bom Natal a todos!

O Primeiro Lugar da Poesi...

dramátia Aldeia ao abanon...

RAMOS ROSA E O SEGREDO O...

Recuperação do Património...

As viagens Iniciàticas de...

Os Talassas

Saudade Estranha

Tradição e Pragmatismo

Romance da Branca Lua

Cavaco e o canto da Maria

Crónica do Bairro Alto – ...

Uma História do Arco Da V...

Chá de Erva da Jamaica

Cada cabeça sua sentença!

Tribunal Constitucional ...

Até um dia, companheiro!

Meu último quadro

Paul, o dragão

A Terra Dos Cegos

A venda de uma vaca

Os Insensatos

Nostálgia...

O "Assalto" ao Castelo d...

A Conjura dos Animais

Lenda do Cruzeiro de Saca...

Boas festas!

tatoo

arquivos

Março 2014

Fevereiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Dezembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Junho 2011

Maio 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

links
blogs SAPO
subscrever feeds