Quarta-feira, 6 de Fevereiro de 2013

 

Primeiro episódio:

 

Quem compra desfaz no animal.

Quem vende, põe-no nos cornos da  lua.

A vaca   é   mirada, espreitada, apalpada  da  cabeça  ao rabo.

E, por  fim, passeada   para se   ver   como pisa  e  anda.

Se é leiteira, sopesam-lhe os úberes ajoujados, passam-lhe  a  mão por  entre as  pernas, não  vá ela ter  cócegas  ou  escoicear.

E  dão-lhe    palmadinhas   nos  lombos, a  ver   se  é  mansa.

Logo  o vendedor acorre  a  desfazer receios:

-Não se  atarante,  esta  vaca  pode  ordenhá-la  uma  criança

Depois, passa a   gabar  as  qualidades que  não  se  veem - as  encobertas

Mas  o  comprador, orelhas   moucas à catrefa  de  qualidades   apontadas, vai  observando   e debicando nos defeitos:

-Não   é  praininha  das  costas, é  pesadona, é  esquadrilhada, os   sinais são maus...

Quando a querem para  açougue, onde certos defeitos  não  contam, dizem  que  a querem  para  trabalho.

E,  então carregam-lhe   no  que se lhes afigura defeito:

-Casco de  palma raso, mal  encabeçada   de  cornos, alta   de  cernelha ...

As   negociações  estendem-se, delongam-se, prolongam-se

-O  animal é bom, diz-lho  quem sabe - afirma, enérgico, o vendedor.

O comprador rosna.

-Nem   todos dirão  que  serve!

Escamado, gestos esbandalhados, o outro retruca, olhos perros  e voz troante:

-Quem disser  que  não serve, vai preso

O comprador  abana a  cabeça  como ressabiado.

-Não vou com essa, não  como lérias.

E   o dono da  vaca, terminante

Já lhe disse - a vaca   não  tem defeitos

O mercador retruca  desconfiado

-Em  casa é  que se vai ver  se  os  tem  ou não, na  feira tudo são  cantigas.

Ferido, pelo  dito  supeitoso, o  homem  da vaca  cresce  para o outro, exalta-se, faz roda, descobre-se  e  de  chapéu  na mão, olhos  candidos   de  apóstolo   alçados   aos céus, conclama  em  tom religioso

-Deus  Nosso  Senhor  me dê  a  mim, á minha mulher  e aos  meus  filhos, os defeitos  que esta  vaca  tiver.

 

 

Segundo  episódio:

 

Finalmente, após varios  diálogos   a  fazer  e  a desfazer   no  animal, assentam  em  que  a    vaca  serve, mas  não se  chegam  ao preço.

Marralham  para trás. Marralham  para   a  frente. Nada. E, de  novo, a  coisa   empanca.

Mas  alguém  que, encostado  ao varapau, coca   a  cena, aproxima-se, mete  bedelho.

É   o  Misseiro, diplomata de  tamancos, chapéu  para  a  nuca  e  véstia  ao ombro.

Mediador interesseiro  que  leva   sempre  rasca  na assadura, quer  seja   pelo  vendedor, quer  seja  pelo  comprado, quando não por  ambos.

Chega-se  á  fala.

Então  em  contratos?

Conversamos, responde  com  pastoral  simplicidade   bíblica  o vendedor, como se  não conhecesse  aquele  tipório

Então  o misseiro vira-se  para   comprador

-Quanto  é  que  ele  pede?

-Doze  notas

-Pois   não pede  por  largo, não  senhor.

O comprador  trava.

-Há que vir para baixo .

-Quanto lhe oferece?

-Sete notas.

-Já  não  falta  tudo, dê-lhe  dez.

-Dou-lhe oito.

O  vendedor, desprendido

-Dê-me  o  ganho  e vou á  vida, são  onze  notas.

-O  quê—arrede  o cavalo  da  chuva

E, outra  vez, o negócio emperra.

Intervém, então, um segundo misseiro.

-Um  a  gemer, outro  a  gemer, não se  faz  nada, arrume-se  com isto. Rache-se    a  diferença   ao meio.

-Pronto, diz  o  comprador—fica   em nove.

-Aqui  está  o  sinal .

E mete  uma nota  à  força, entre   a  camisa  aberta  e o  peito do vendedor, que  reponta   ainda, mas  que  os  misseiros   contêm.

-É   bom  negócio, arrume   e  vá  rabear   para  a  feira.

 

Leal Freire (in vilarmaior1)



publicado por Manuel Maria às 09:04 | link do post | comentar

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