Quinta-feira, 7 de Fevereiro de 2013

 

               A muitas milhas do mar, num território do interior, encontra-se um misterioso vale entre as montanhas, separado do resto dos homens; a Terra dos Cegos.

              Há muitos anos esse vale estava tão aberto ao mundo, que era fácil alcançar as suas diversificadas pradarias, atravessando medonhos barrancos, montes e florestas.

            Aconteceu então que um grande cataclismo arruinou o país, a noite durou sete dias na capital, a água ferveu no rio, e os peixes mortos flutuaram até ao mar; por toda a parte houve deslizamentos de terra, rápida seca que tornou os campos improdutivos; e todo aquele território se afundou, desprendendo-se com um ruído de trovões de toda a terra envolvente, separando para sempre a Terra dos Cegos dos caminhos explorados pelos homens.

            Desde então, todos os que ficaram naquela depressão inacessível e expugnável viram-se por força obrigados a esquecer amigos e familiares que tinham deixado lá em cima, tendo que iniciar uma nova vida no mundo mais abaixo.

            Alta, bem alta, por todos os lados, erguia-se uma parede de rocha verde-acinzentada que não deixava que ninguém entrasse ou saísse.

            Contudo, o vale continuou a ter água doce, pastos, clima ameno, encostas de rico solo fértil, florestas de pinheiros e carvalhos, mananciais abundantes proporcionando ricas pastagens verdes, que a irrigação alargava a toda a extensão do vale. Os animais criaram-se bem e multiplicaram-se, proporcionando alimento abundante; mas um estranho mal se abateu sobre aquela felicidade: no meio da pequena população daquele vale agora isolado e esquecido, uma doença nasceu e progrediu. Os velhos tornaram-se trôpegos e vacilantes, os jovens foram perdendo a visão, e as crianças que deles nasceram, nunca chegaram a ver. A diminuição da visão foi tão gradual, que só se deram conta do que se passava, depois de perdida. No início guiavam as crianças cegas por aqui e por ali, até que todos passaram a conhecer maravilhosamente bem todo o vale; quando, por fim, a visão morreu entre eles, a raça sobreviveu, porque já se tinham adaptado à sua nova condição e meio.

            E tal como a vida daquela gente se adaptou, também o sistema de se governarem se alterou:

            Eles não só eram todos cegos, como todos iguais, e os seus pequenos problemas eram resolvidos pela pluralidade das vozes. Distinguiam perfeitamente pelo toque a nova moeda que tiveram de cunhar; o se paladar e olfato eram mais apurados do que quando tinham dois olhos.          

            Argumentavam perfeitamente sobre os quatro sentidos, o mesmo é dizer que eles conheciam tudo o que é permitido saber. E viviam tão tranquila e afortunadamente quanto seria de esperar.

            Infelizmente, um deles, o único que, por aqueles acasos raros que a ciência não explica, ficara com um olho são, invocando a autoridade, que um o seu olho lhe conferia em terra de cegos, afirmou ser o único com noções claras sobre o sentido da vista; fez-se escutar, intrigou, formou entusiastas: foi, por fim, reconhecido como o líder da comunidade. Pôs-se a deliberar soberanamente sobre as cores, e tudo se perdeu.

            O primeiro ditador formou a princípio um pequeno conselho, através do qual se fez senhor de todas as esmolas. Pelo que ninguém ousava resistir-lhe. Decidiu que todos os hábitos eram brancos: os cegos acreditaram nele; não falavam senão dos seus belos hábitos brancos, ainda que nem um só tivesse essa cor.

            Passou algum tempo, até que, por capricho da genética, nasceu entre eles uma criança com dois olhos sãos. A criança cresceu, e troçou dos seus hábitos brancos, que eram de todas as cores, menos brancos.

            Foram queixar-se ao ditador, que os recebeu muito mal, chamando-lhes rebeldes, inovadores, livres-pensadores, que se deixavam seduzir pelas opiniões erróneas daquele que tinha dois olhos, ousando duvidar da infalibilidade do seu mestre.

           Esta disputa deu origem a dois partidos. O ditador, para os apaziguar, decretou um acórdão segundo o qual todos os seus hábitos eram vermelhos. Não havia um único hábito vermelho entre eles. Foram alvo de troça ainda maior: novas queixas da parte da comunidade.

           O ditador enfureceu-se; os outros cegos também: debateram-se longamente, e a concórdia só foi restabelecida quando deliberaram cegar também o único que de entre eles ainda tinha dois olhos sãos.

           A partir daí, nunca mais se contestou o juízo sobre a cor dos seus hábitos.

           E continuaram todos muito felizes para sempre.

           Cegos, e felizes!

 

 

 



publicado por Manuel Maria às 09:01 | link do post | comentar

Quarta-feira, 6 de Fevereiro de 2013

 

Primeiro episódio:

 

Quem compra desfaz no animal.

Quem vende, põe-no nos cornos da  lua.

A vaca   é   mirada, espreitada, apalpada  da  cabeça  ao rabo.

E, por  fim, passeada   para se   ver   como pisa  e  anda.

Se é leiteira, sopesam-lhe os úberes ajoujados, passam-lhe  a  mão por  entre as  pernas, não  vá ela ter  cócegas  ou  escoicear.

E  dão-lhe    palmadinhas   nos  lombos, a  ver   se  é  mansa.

Logo  o vendedor acorre  a  desfazer receios:

-Não se  atarante,  esta  vaca  pode  ordenhá-la  uma  criança

Depois, passa a   gabar  as  qualidades que  não  se  veem - as  encobertas

Mas  o  comprador, orelhas   moucas à catrefa  de  qualidades   apontadas, vai  observando   e debicando nos defeitos:

-Não   é  praininha  das  costas, é  pesadona, é  esquadrilhada, os   sinais são maus...

Quando a querem para  açougue, onde certos defeitos  não  contam, dizem  que  a querem  para  trabalho.

E,  então carregam-lhe   no  que se lhes afigura defeito:

-Casco de  palma raso, mal  encabeçada   de  cornos, alta   de  cernelha ...

As   negociações  estendem-se, delongam-se, prolongam-se

-O  animal é bom, diz-lho  quem sabe - afirma, enérgico, o vendedor.

O comprador rosna.

-Nem   todos dirão  que  serve!

Escamado, gestos esbandalhados, o outro retruca, olhos perros  e voz troante:

-Quem disser  que  não serve, vai preso

O comprador  abana a  cabeça  como ressabiado.

-Não vou com essa, não  como lérias.

E   o dono da  vaca, terminante

Já lhe disse - a vaca   não  tem defeitos

O mercador retruca  desconfiado

-Em  casa é  que se vai ver  se  os  tem  ou não, na  feira tudo são  cantigas.

Ferido, pelo  dito  supeitoso, o  homem  da vaca  cresce  para o outro, exalta-se, faz roda, descobre-se  e  de  chapéu  na mão, olhos  candidos   de  apóstolo   alçados   aos céus, conclama  em  tom religioso

-Deus  Nosso  Senhor  me dê  a  mim, á minha mulher  e aos  meus  filhos, os defeitos  que esta  vaca  tiver.

 

 

Segundo  episódio:

 

Finalmente, após varios  diálogos   a  fazer  e  a desfazer   no  animal, assentam  em  que  a    vaca  serve, mas  não se  chegam  ao preço.

Marralham  para trás. Marralham  para   a  frente. Nada. E, de  novo, a  coisa   empanca.

Mas  alguém  que, encostado  ao varapau, coca   a  cena, aproxima-se, mete  bedelho.

É   o  Misseiro, diplomata de  tamancos, chapéu  para  a  nuca  e  véstia  ao ombro.

Mediador interesseiro  que  leva   sempre  rasca  na assadura, quer  seja   pelo  vendedor, quer  seja  pelo  comprado, quando não por  ambos.

Chega-se  á  fala.

Então  em  contratos?

Conversamos, responde  com  pastoral  simplicidade   bíblica  o vendedor, como se  não conhecesse  aquele  tipório

Então  o misseiro vira-se  para   comprador

-Quanto  é  que  ele  pede?

-Doze  notas

-Pois   não pede  por  largo, não  senhor.

O comprador  trava.

-Há que vir para baixo .

-Quanto lhe oferece?

-Sete notas.

-Já  não  falta  tudo, dê-lhe  dez.

-Dou-lhe oito.

O  vendedor, desprendido

-Dê-me  o  ganho  e vou á  vida, são  onze  notas.

-O  quê—arrede  o cavalo  da  chuva

E, outra  vez, o negócio emperra.

Intervém, então, um segundo misseiro.

-Um  a  gemer, outro  a  gemer, não se  faz  nada, arrume-se  com isto. Rache-se    a  diferença   ao meio.

-Pronto, diz  o  comprador—fica   em nove.

-Aqui  está  o  sinal .

E mete  uma nota  à  força, entre   a  camisa  aberta  e o  peito do vendedor, que  reponta   ainda, mas  que  os  misseiros   contêm.

-É   bom  negócio, arrume   e  vá  rabear   para  a  feira.

 

Leal Freire (in vilarmaior1)



publicado por Manuel Maria às 09:04 | link do post | comentar

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