a este moto:
Quem ora soubesse
onde o Amor nasce,
que o semeasse!
VOLTAS
D'amor e seus danos
me fiz lavrador;
semeava amor
e colhia enganos;
não vi, em meus anos,
homem que apanhasse
o que semeasse.
Vi terra florida
de lindos abrolhos,
lindos para os olhos,
duros para a vida;
mas a rês perdida
que tal erva pace
em forte hora nace.
Com quanto perdi,
trabalhava em vão;
se semeei grão,
grande dor colhi.
Amor nunca vi
que muito durasse,
que não magoasse.
Luís de Camões
No terceiro episódio do primeiro canto, aparece a Dante um vulto que ele não distingue bem se é um fantasma ou uma pessoa viva:
"Mentre ch'i' ruvinava in basso loco,
dinanzi alli occhi mi si fu offerto
chi per lungo silenzio parea fioco.
Quando vidi costui nel gran diserto,
"Miserere di me", gridai a lui,
qual che tu si, od ombra od omo certo!"
[Enquanto eu me arruinava nesse lugar baixo,
diante de meus olhos se me ofereceu
quem por longo silêncio parecia fraco.
Quando vi esse aí no grande deserto,
"Tem pena de mim", gritei a ele,
quem quer que tu sejas ou alma ou homem certo"]
(Dante, Inferno, I, 61-66)
E Dante vai atribuir essa fraqueza do vulto, ao fato de que a pessoa que lhe apareceu estava assim fraca: "chi per lungo silenzio parea fioco".
[quem por longo silêncio parecia fraco], por estar em silêncio há muito longo tempo:
Ora, quem apareceu A Dante foi Virgílio, o grande poeta latino, que Dante – que conforme explicámos anteriormente – representa a Razão Natural, a verdade revelada.
Era, pois, a razão, que estava enfraquecida, pelo silêncio. Aqui silêncio é o contraponto da palavra. A verdade revelada manifesta-se pela palavra, como no Génesis: “No princípio era o Verbo”, no Antigo Testamento, na Tora e Corão pela palavra do profeta, no Novo Testamento pela palavra de Cristo e dos Apóstolos.
Não é por acaso que na Eneida, --e na Divina Comedia -- Virgílio faz o papel do mistagogo (mestre) que guia um iniciado até o conhecimento dos mistérios arcanos.
É como mestre gnóstico que Dante se lhe dirige:
"Miserere di me", gridai a lui,
qual che tu si, od ombra od omo certo!"
[Tem pena de mim, gritei-lhe,
quem quer que sejas, ou alma ou certamente um homem]
E Virgílio, descreveu-se a Dante como mestre no conhecimento gnóstico. Um homem incomum, iniciado nos verdadeiros mistérios que o convida a realizar a viagem iniciática:
"Rispuosemi: "Non omo, omo già fui,
…
Ma tu perchè ritorni a tanta noia?
perchè non sali il dilletoso monte
ch'è principio e caggion di tutta gioia?
[Respondeu-me: "Não sou homem, homem já fui,
…
Mas tu, porque retornas a tanta angústia?
Porque não sobes o amável monte
que é princípio e causa de toda alegria?].
(Dante, Inferno, I, 67-78)
E Dante responde a Virgílio pedindo-lhe ajuda contra a Loba (ambição das riquezas), invocando o amor com que procurou o seu exemplo:
"rispuos' io lui com vergognosa fronte.
O delli altri poeti onore e lume,
vagliami 'l lungo studio e 'l grande amore
che m'ha fatto cercar lo tuo volume.
...
aiutami da lei, famoso saggio,
ch' ella mi fa tremar le vene e i polsi".
[respondi eu com envergonhada fronte.
"Ó dos demais poetas honra e luz,
valha-me o longo estudo e o grande amor
que me fizeram procurar o teu volume.
…
ajuda-me contra ela, famoso sábio,
porque ela me faz tremer as veias e os pulsos"].
(Dante, Inferno, I, 79-90).
Dante não pede ajuda contra a onça ou contra o Leão, mas contra a Loba, porque esta representa a sede insaciável de coisas materiais, vício no qual Dante vê o oposto da "sabedoria" gnóstica, do conhecimento salvador. Pala concupiscência, somos atraídos desordenadamente pelos bens materiais. Ora, a Gnose, condenando toda matéria, condena todas as coisas materiais: prazeres, riquezas, propriedades, fama, honras, etc.
Virgílio dissuade Dante de enfrentar a loba, como lhe indicará outro caminho diverso do que o do simples retorno à "selva oscura" dos vícios, a "questo loco selvaggio":
"A te convien tenere altro viaggio"
rispuose poi che lacrimar mi vide,
"se vuo' campar d' esto loco selvaggio:
chè questa bestia, per la qual tu gride,
non lascia altrui passar per la sua via,
ma tanto lo 'mpedisce che l'uccide;
["A ti convém seguir outra viagem",
respondeu-me depois que me viu chorar,
"se quiseres escapar vivo deste local selvagem:
porque esta fera, pela qual tu gritas,
não permite que outrem passe por seu caminho,
mas tanto o impede que o mata;]
(Dante, Inferno, I, 91-102)
O caminho alternativo que Virgílio propõe a Dante, é o caminho que aprece já numa lenda shiita persa, contada por Shihâbboddin Yahya Sohrawardi, no século XII, -- o "Conto do Arcanjo cor de púrpura"-- que fala de um personagem perdido num deserto e que, desejando alcançar a fonte da vida, é socorrido por um ser luminoso, que lhe propõe um outro caminho de salvação: que ele faça uma viagem que começa na região das trevas para alcançar a luz.
"Ond' io per lo tuo me' penso e discerno
che tu mi segui, e io saró tua guida,
e trarrotti di qui per luogo etterno,
ove udirai le disperatte strida,
vedrai li antichi spiriti dolenti
che la seconda morte ciascun grida;
e vederai color che son contenti
nel foco, perchè speran di venire
quando che sai alle beate genti.
Alle qua' poi se tu vorri salire,
anima fia a ciò più di me degna:
con lei ti lascerò nel mio partire;"
[De onde, penso e discerno que para ti é melhor
que me sigas, e eu serei teu guia,
e tirar-te-ei daqui por um lugar eterno.
onde ouvirás os desesperados gritos,
verás ao antigos espíritos sofredores
que pela segunda morte cada um clama;
e verás aqueles que estão contentes
no fogo, porque esperam chegar,
quando quer que seja, até aos bem aventurados.
Aos quais, depois, se quiseres subir até lá,
fará isso uma alma mais digna de mim:
com ela [Beatriz] deixar-te-ei na minha partida;]
(Dante, Inferno, I, 112 - 129).
O caminho alternativo, que Virgílio propõe a Dante não é o iluminado pelo Sol, mas "la via che era smarrita" [o caminho que estava escondido], o caminho subterrâneo, que partiria do inferno, onde estão as almas desesperadas, gritando de dor e clamando que, se possível, lhes viesse uma segunda morte; depois, passando pelo purgatório, onde as almas, certas de que um dia se salvarão, por essa esperança, estão contentes, embora sofrendo no fogo.
Virgílio (Razão Natural) avisa que não poderá levar Dante ao céu, pois como pagão não é digno disso. Quem o levará é Beatriz (Sabedoria).
Na conclusão do canto primeiro, parece-nos claro que essa viagem é alegoria de uma iniciação que tem por fundamento uma doutrina hermética e gnóstica. O pedido que Dante faz a Virgílio é elucidativo:
" E io a lui: "Poeta, io ti richeggio
…,
che tu mi meni là dove or dicesti,
sì ch'io veggia la porta di San Pietro
…
Allor si mosse, e io li tenni retro.
[E eu disse a ele: 'Poeta, eu te rogo
…
que me conduzas lá onde agora disseste,
de tal modo que eu veja a porta de São Pedro
…
Então ele se moveu, e eu lhe fui atrás].
(Dante, Inferno, I, 130-136)
Dante pede que, de facto, Virgílio o conduza até chegar à porta de São Pedro, isto é, até o céu, e que ele veja também aqueles que Virgílio faz ou diz tão felizes e tristes, no Purgatório.
***
CONCLUINDO:
Da leitura deste primeiro canto (Inferno) da Divina Comédia, devemos concluir que Dante Alighieri era Gnóstico e a sua obra tem uma leitura oculta inacessível a qualquer não iniciado.
Nem Beatriz é quem se pensa, nem o Inferno é o que parece. Um é a Sabedoria; outro, um caminho iniciático com sete níveis simbólicos em que se progride, conforme o grau de iniciação.
Isto não é de espantar em Dante, porque faz parte da história e da obra de muitos homens geniais que se podiam citar. Nadir Afonso, um génio da pintura, resumiu bem esta busca inata da Sabedoria quando afirmou que “O homem se volta para a geometria como as plantas se voltam para o sol; é a mesma necessidade de clareza e todas as culturas foram iluminadas pela geometria, cujas formas despertam no espírito um sentimento de exactidão e de evidência absoluta” (Nadir Afonso, 2009, Na Agenda Cultural de Leiria a propósito da sua exposição de pintura no Edifício do Banco de Portugal de Leiria).
Como os versos de Dante, as palavras de Nadir Afonso para “la gente grossolana” nada dizem porque são entendidas pelo vulgo como aludindo à geometria da dimensão, do espaço e das formas, mas para “la gente de intelletti sani” têm um significado oculto, profundo, porque aludem à geometria dos símbolos, que é a verdadeira Sabedoria.
Al-Mu’tamid Ibn ‘Abbâd, rei-poeta, natural de Beja, foi governador de Silves e depois rei de Sevilha e Córdova nos fins do séc. XI, onde pontificou numa esplendorosa corte de poetas, filósofos e artistas.
Incapaz para deter a pressão de Afonso VI a norte, al-Mu’tamid viu-se obrigado a chamar os Almorávidas do Norte de África para o ajudarem a combater as tropas cristãs. Mas estes acabaram por aprisiona-lo levando-o em 1091 para o cativeiro de Aghmat (Marrocos) onde morreu em condições deploráveis, após cinco anos de grande sofrimento e estóica resignação.
É deste período a sua melhor poesia, baseada na pedagogia do rigor divino, em que o mal é apenas uma face do amor e o sofrimento é uma via para a auto descoberta, numa semelhança impressionante com a personagem bíblica de Job.
Venerado como santo ao longo destes séculos, repousa numa campa rasa ao lado da sua companheira ‘Itimad que lhe inspirou versos lindíssimos como este:
Por receio de quem espia
Com muita inveja a roer
Ela não veio n esse dia
P’ra assim traída não ser
P’la luz que do rosto esplende
P´las jóias a tilintar,
E pelo perfume de âmbar
A que o corpo lhe rescende:
É que ao rosto, com o mesmo manto,
Tapá-lo ‘inda poderia,
E as jóias, entretanto,
Facilmente as tiraria,
Mas a fragrância do encanto,
P’ra ocultá-la, que faria?