Sexta-feira, 26 de Junho de 2009

 

 

 

         Esta frase de Epiceto resumem bem o seguinte e magnífico texto do meu autor preferido:       

 

        […]«Mesmo que vivesses três mil anos, ou até trinta mil, lembra-te que a única vida que um homem pode perder é aquela que está a viver no momento; e mais, que ele não pode ter qualquer outra vida a não ser aquela que ele perde. Isto significa que uma vida mais longa ou mais curta vão dar ao mesmo. Porque o minuto que passa é o bem igual de todos os homens, mas o que já passou não é nosso.

        A nossa perda, portanto, limita-se àquele momento fugaz, uma vez que ninguém pode perder o que já passou, nem o que está ainda para vir — porque como é que ele pode ser despojado daquilo que não tem? Assim, duas coisas temos de ter em atenção: Primeiro, que todos os ciclos da criação, desde o princípio do tempo, têm o mesmo padrão recorrente, de modo que não importa que o mesmo espectáculo se observe durante cem anos ou durante duzentos, ou para sempre. Segundo, que quando aqueles de nós que vivem mais, e os que vivem menos, morrem, as suas perdas são perfeitamente iguais. Porque a única coisa de que o homem pode ser despojado é o presente, uma vez que isso é tudo o que ele possui, e ninguém pode perder o que não é seu.

        [..]Para uma alma humana, o maior dos males auto-infligidos é tornar-se (podendo) uma espécie de tumor ou abcesso no universo; porque contender com as circunstâncias é sempre uma rebelião contra a Natureza — e a Natureza inclui a natureza de cada parte individual. Outro mal é rejeitar um semelhante ou opor-se-lhe com más intenções, como os homens fazem quando estão zangados. Um terceiro, render-se ao prazer ou à dor. Um quarto, dissimular e mostrar insinceridade ou falsidade em palavras ou em actos. Um quinto, a alma não dirigir os seus actos e esforços para um objectivo determinado, e gastar as suas energias sem qualquer fim e sem o devido pensamento; porque mesmo a mais insignificante das nossas actividades deve ter um fim em vista — e para criaturas dotadas de razão, o fim é a conformidade com a razão e a lei da Cidade e Comunidade originais.

        Na vida de um homem, o seu tempo é apenas um momento, o seu ser um fluxo incessante, os sentidos uma vela mortiça, o corpo uma presa dos vermes, a alma um turbilhão inquieto, o destino, negro, e a fama, duvidosa. Em resumo, tudo o que é do corpo, é como água corrente, tudo o que é da alma, como sonhos e vapores; a vida, uma guerra, uma curta estadia numa terra estranha; e depois da fama, o esquecimento. Onde, pois, poderá o homem encontrar o poder de guiar e salvaguardar os seus passos? Numa e só numa coisa apenas: a Filosofia.

        Ser filósofo é manter o espírito divino puro e incólume dentro de si, para que ele transcenda todo o prazer e toda a dor, não empreenda nada sem um objectivo, ou com falsidade ou dissimulação, não fique na dependência das acções ou inacções dos outros, aceite todas e cada uma das prescrições como vindas da mesma Fonte donde ele próprio veio — e final e principalmente, para que espere a morte com dignidade, como nada mais do que a simples dissolução dos elementos de que todo o organismo vivo é composto.

        Se esses próprios elementos não se danificam com a incessante formação e re-formação, porquê olhar com desconfiança a transformação e dissolução do todo? Trata-se apenas do curso da Natureza; e no curso da Natureza não se encontra mal nenhum.» (Marco Aurélio, Livro 2 das Maditações)

 

  



publicado por Manuel Maria às 13:38 | link do post | comentar

Terça-feira, 16 de Junho de 2009

 

 

 

 

No limite da tapada

As copas dos carvalhos,

Frondosos;

Ao longe o rumor da ribeira

Correndo em fio.

Os passos no restolho

Levantam uma perdiz

Do regato.

Golpe de asas assustado

Trajectória de fuga ascendente

Uma dor agúda no flanco…

 

E um mergulho

Numa moita de carrascos

Distante.

 

 



publicado por Manuel Maria às 11:02 | link do post | comentar

Terça-feira, 9 de Junho de 2009

 

 

 

 

 

É famosa a estrofe de Dante, na qual ele chama a atenção para uma doutrina escondida em alguns de seus versos:

"O voi ch'avette li 'ntelletti sani,
mirate la dottrina che s'asconde
sotto 'l velame delli versi strani"

[Ó vós que tendes inteligência sadia,
atentai à doutrina que se esconde
sob o véu dos versos estranhos
"].

(Dante, Inferno, IX, 61-63).

Este terceto, fundamentou muitas interpretações esotéricas dos textos de Dante, os quais, "sob o véu" de versos estranhos esconderiam uma doutrina subtil e gnóstica.

O próprio Boccaccio, referindo-se a Dante no já século XIV, fazia notar que os poetas inventam fábulas, sob cuja beleza literária ocultam doutrinas, que, expostas claramente, não convenceriam nem atrairiam certas pessoas menos profundas.

            De facto, a Beatriz de que Dante se diz enamorado na sua Divina Comédia, não é uma mulher concreta, mas a Ciência ou a Sabedoria divina:

E também não podemos querer acreditar que Beatriz existiu de facto, que foi realmente a filha de Folco Portinari e a mulher de Simone dei Bardi, e que teria por servas as três virtudes teologais e as quatro virtudes cardeais. Seria absurdo!

Ultimamente, na sequência de várias pesquisas históricas sobre a época em que Dante viveu, muitos autores consideraram que este, sob um véu católico, realmente escondia uma doutrina esotérica, teosófica, de carácter gnóstico ligada ao catarismo (neomaniqueísmo) e às ideias milenaristas do jaquinismo, condenado no IV concílio de Latrão (heterodoxia espiritual dos franciscanos de Santa Cruz em Florença, como Frei Jean Pier Olivi e Frei Ubertino de Casale) que acreditavam numa era do Espírito Santo dominada pelo amor e a vinda do Imperador-Messias, bem como defendiam o retorno ao cristianismo primitivo. Daí, o seu ódio gibelino pelo Papado e por Bonifácio VIII; a sua defesa da supremacia do Império sobre o Sagrado (defendida no seu livro Monarquia, que constou do índice até ao séc. XIX); da separação da teologia e da filosofia; da pobreza da Igreja e de uma espécie de comunismo primitivo.

Não foi apenas no famoso terceto do Inferno que Dante aludiu a sentidos ocultos em seus versos estranhos. O Próprio Dante adverte que, o escritor, como um sábio estrategista, ao escrever, é conveniente, e mesmo necessário, dissimular:

"(...) esta figura [de retórica] é belíssima e é utilíssima, e pode-se chamá-la de 'dissimulação'. E ela é semelhante à obra daquele sábio guerreiro que combate o castelo de um lado, para tirar a defesa de um outro lado, porque não vão na mesma direcção a intenção do adjutório e a batalha"(Dante, Convívio, III, X).

E confirma que usou determinados termos com significação completamente diferente do seu sentido natural, utilizando um verdadeiro código:

 "E aqui convém saber que por olhos da Sabedoria [de Beatriz] são as suas demonstrações, com as quais se vê certeiramente a verdade; e o seu riso são as suas persuasões, nas quais se demonstra a luz interior da sabedoria sob algum velamento"
(Dante, Convívio, III, XV)

Depois adverte que a "donna gentilissima" é a filosofia, e que "li occhi di quella donna sono le sue demonstrazioni le quali, dritte ne li occhi de lo 'ntelletto, innamorano l'anima" [Os olhos dessa dama são as suas demonstrações as quais, dirigidas aos olhos do intelecto, enamoram a alma] (Dante, Convívio, II, XV).

"Por 'donna gentile' [senhora gentil] se entende a alma nobre de engenho e livre em seu próprio poder, que é a razão. De onde das demais almas não se pode dizer que sejam 'donne' [senhoras], mas sim escravas, pois que não são por si mesmas governadas, mas por outras coisas"(Dante, Convívio, III, XIV)

            Como se vê, Dante é explícito ao afirmar que em suas canções há um sentido oculto sob o sentido literal:

"Canzone, io credo che saranno radi
color che tua ragione intendan bene,
tanto la parli faticosa e forte

["Canção, eu creio que serão raros
aqueles que compreendam bem  o teu significado,
tanto o dizes de modo dificultoso e forte
"]

(Dante Convívio, II, I)

            Portanto, Dante distingue dois tipos de leitores: os incapazes de entender o sentido mais profundo que haveria "sob o véu de seus versos estranhos"; e os de "intelectos sadios", capazes de entendê-los.

            Que entenderia Dante por "intelectos sadios"?

            "(...) e dico intelletto per la nobile parte del' anima nostra, che con uno vocabulo 'mente' si può chiamare"  [ e digo intelecto para designar a nobre parte de nossa alma, que com um vocábulo 'mente' se pode chamar"].(Dante, Convívio, IV, XV)

            Portanto, intelecto, para Dante significa mente. E mente
"… é quella fine e preziosissima parte de l'anima che è deitade. E questo è il luogo dove dico che Ämore mi ragiona" [… é aquela fina e preciosíssima parte da alma que é a divindade. E este é o lugar onde digo eu que Amor me fala"] (Dante, Convívio, III, II).

             Por isso, intelecto, para Dante, é mente. E mente, é a partícula da Divindade que existiria na alma humana.

            Resta saber, agora,   como se adquire "intelecto sadio".

            Dante afirma que o intelecto pode ter enfermidades por defeito do organismo-- como ocorre quando há doenças mentais ou nervosas-- e por doenças morais. É claro que não são os doentes mentais por falhas orgânicas que Dante recrimina, mas somente aqueles que têm o intelecto enfermo por falhas morais.

            Dante apresenta três causas morais de enfermidade do intelecto:

Orgulho, que convence de tudo se saber; avareza, que não predispõe às coisas do espírito; superficialidade, que impede que se aprofunde a investigação. (Cfr. Dante, Convívio, IV, XV).

            E para Dante a sabedoria seria o conhecimento que o homem tem de que o seu intelecto é divino. Ter consciência de ser um Deus exilado, que é preciso libertar, nisso consistiria ter o intelecto sadio.

            Noutras palavras, ter intelecto sadio seria possuir a Gnose, ter sido iniciado na Gnose salvadora, o que estaria vedado aos orgulhosos, aos pusilânimes e superficiais porque os seus defeitos os tornam incapazes de receber "il ben del' intelletto", que seria a iniciação na doutrina gnóstica.

            Quem tem intelecto sadio possui três virtudes opostas àqueles defeitos, que são:  humildade, magnanimidade e profundidade ou  seriedade na busca do conhecimento, virtudes que tornariam a alma nobre e o homem conhecedor de que seu intelecto é uma partícula divina, aprisionada na natureza humana, e que se deixa dirigir por ela.

            Essa parte da alma, a mente ou intelecto divino, seria sempre oposto ao sexo de quem o conhece.

            Assim, num homem, a partícula divina-- aquilo que os gnósticos chamavam de éon, pneuma ou atman-- seria feminina e o dominaria como uma Domina (dama).  Daí os poetas do Dolce Stil Nuovo, a que Dante pertencia, chamarem-na -- como os cátaros -- de Donna ou Dame, dando-lhe nomes próprios femininos, para enganar o vulgo, isto é, os homens grosseiros e vis, que ignoravam a Divindade que neles habitava. Dante a chamava de Beatriz, Boccaccio di Fiametta, Petrarca chamava-lhe de Laura,  na verdade, l´ Aura, a Aura.

            Dino Compagni, outro poeta contemporâneo de Dante, chama a esta Donna "La sovrana  Intelligenza".

"Ó voi c´avete conoscenza,                          
più è nobile auro che terra:
amate la sovrana Intelligenza,
quella che tragge l´anima di guerra,
nel conspetto di Dio fa residenza,
e mai nessun piacer no le si serra;
"
[Ó vós que tendes conhecimento,
mais nobre é o ouro do que a terra
amai a soberana Inteligência,
aquela que tira a alma da guerra,
na presença de Deus ela faz residência,
e jamais nenhum prazer lhe é proibido
]
(Dino Compagni, Poesias para Dona Intelligenza estrofe 307, apud Luigi Valli, Il Linguaggio Segretto di Dante e dei Fedeli d´Amore, p. 53).

             Dante designa de “intelletti sani” (Homem Nobre) aquele que possuía a Gnose, que tinha consciência de que era divino, enquanto, aos homens comuns – “la gente grossolana, la gente grossa”-- Dante os chama de vis:

" (...) àqueles que têm intelecto, que são poucos, é manifesto que nobreza humana não seja outra coisa do que ' semente de felicidade' colocada por Deus na alma bem disposta, isto é, naquela cujo corpo está de cada parte disposto perfeitamente" […] " assim como no sétimo capítulo do terceiro Tratado [do Convívio] se raciocina que, assim como há homens que são vilíssimos e bestiais, assim há homens que são nobilíssimos e divinos" (Dante, Convívio, IV, XX).

             Para Dante nobre e vil são antónimos; afirmando que aqueles, por terem "intelletti sani", eram capazes de compreender o que a maioria não entendia. Ele afirma ainda que os que têm "intelletti sani" seriam capazes de conhecer os erros de outros, ficando claro, então, que ele se referia a iniciados em certas doutrinas, das quais ele não podia falar claramente (Cfr. Dante, Convívio, IV, Canzone III, v. 74-75).

              Tudo isso confirma que Dante era um gnóstico, que escrevia em linguagem hermética, para ser entendido completamente apenas por inicidos em certos conhecimentos esotéricos, isto é, por aqueles que ele dizia terem "intelletti sani" .

               Portanto, para Dante, ter  “intelecto sadio" ser "nobre", era ser possuidor da Gnose, isto é, ter conhecimento de que seu intelecto era, na verdade uma partícula da Divindade aprisionada na natureza má do homem, e da qual o iniciado devera libertá-la.

            Dante explica como se adquire o “intelletti sani”:

 "E portanto importa saber, que assim como aquele que nunca esteve numa cidade, não saberia seguir por suas vias sem ensinamento de quem as percorreu, assim a adolescência, que entra na selva errónea desta vida, não saberia seguir o bom caminho, se não lhe fosse mostrado por seus maiores" (Dante, Convívio, XXIV, in Dante, Tutte le Opere, ed. cit. p.191. Os negritos são nossos).

O ensinamento feito pelos “maiores” (mestres) é importante. O “maior” que ensinou o caminho a Dante, foi Virgílio

No fim da sua aprendizagem, o homem Nobre torna-se perfeito e deve ensinar o mesmo “bom caminho” os outros homens:

"Primeiro, convém que seja perfeito, para depois poder comunicar a sua perfeição a outros" (Dante, Convívio, XXVI).

            Mas esse caminho de aprendizagem é duro, áspero e amargo, pelo que o homem precisa de ter certas virtudes para vencê-lo:

 

"Ah quanto a dir qual era é cosa dura
esta selva selvaggia ed aspra e forte
che nel pensier rinova la paura"

 ["Ah quanto a dizer qual era é coisa dura
esta selva selvagem e áspera e forte,
que no pensamento renova o medo"
].
(Dante, Inferno, I, 4-6).

E pouco depois, no verso 7, ele dirá que ela é “amara [amarga].

Para compreender o significado e a razão mais profunda desses três adjectivos, convém relacioná-los com as potências da alma humana:

Áspera – Inteligência (Sabedoria)

Forte – Vontade (Força)

Amarga - Sensibilidade (Beleza)

A palavra "aspra"[áspera], que é a antónima de plana, lisa -- na linguagem poética daquele tempo queria dizer, coisa de difícil entendimento, já que escrever em trobar plan”, ou trobar leu” significava fazer trovas de fácil compreensão, sem linguagem oculta, sem ser por meio de um código poético.

Já o trobar clus, ou fechado -- "aspro"-- era feito em código e era de difícil compreensão, para quem não estivesse a par desse código hermético.

O próprio Dante usa o adjetivo "aspro" em sentido de pouco claro, de obscuro na terceira canção do Convívio:

"E poi che tempo mi par d'aspettare,
diporrò giù lo mio soave stile
ch'io ho tenuto  nel tratar d'amore;
(...)

"E dirò del valore,
per lo qual veramente omo è gentile,
con rima aspr' e sottile"

[E já que o tempo me parece de espera,
deporei o meu suave estilo,

que eu usei no tratar do amor,
(...)

E falarei do valor,
pelo qual verdadeiramente o homem é gentil,
com rimas ásperas e sutis"].

            É por isso que a Sabedoria, simbolizada por Beatriz, intervém mandando que Virgílio -- a Razão Natural -- ajude Dante a vencer as trevas e as asperezas da “selva escura” em que está envolvido. Mas para isso é preciso vontade própria, acção, sensibilidade e amor às coisas espirituais.

            A prova está no terceiro terceto da sua Divina Comédia, ainda referindo-se à selva obscura” que é a vida:

"Tant' è amara che poco è più morte;
ma per tratar del ben ch' io vi trovai
,
dirò dell'altre cose ch ' i' v'ho scorte"

[Tanto é amarga que é pouco mais a morte;
mas, para tratar do bem que aí eu encontrei,
falarei das outras coisas que aí eu percebi".]

(Dante, Inferno, I, 7-9).

            A morte de que Dante fala não é a física mas a ignorância que destrói a amorosa elegância (sabedoria):

"Morte vilana, di pietà nemica,
di dolor madre antica,
(...)
dal secolo hai partita cortesia,

(,,,)

distruta hai l'amorosa leggiadria"

[Morte vilã, de piedade inimiga,
de dor, mãe antiga
(...)
do  mundo expulsaste a cortesia,
(...)
destruístes a amorosa elegância"].
(Dante, Vita Nuova, VIII).


            Ou que  a "morte" colocara uma chave  em seu peito:

“che Morte al petto m' ha posto la chiave" [que a morte me colocou a chave ao peito] (Dante, Rime varie del tempo dell' Esílio,  47 [CIV], in in Dante, Tutte le Opere, Sansoni Editori, Firenze, 1965, p. 97).

 Isto é, que a morte (ignorância) lhe não deixava ver a verdadeira vida, a Sabedoria, a Luz.

Legitimando esta interpretação, no Convívio, Dante afirma que quem não tem a "sabedoria", aquele que não se faz discípulo, e não segue um  mestre, está como morto, está em poder da morte. Ora, a sabedoria, para ele, é a doutrina oculta, muito provavelmente a Gnose:

"Colui é morto che non si fè discipulo, che non segue lo maestro".[Morto está aquele que não se fez discípulo e que não segue o mestre]. ( Dante, Convívio, IV. cap. VII, in Dante  Tutte le Opere, Sansoni, Firenze, 1965, p. 170)

E Dante vai-se fazer discípulo de Virgílio e se deixará guiar por ele, para ter a verdadeira sabedoria, a verdadeira "ciência", a Luz, que ilumina o nous, o elemento espiritual que no ser humano não regenerado se encontra obnubilado, esquecido, para se tornar em iniciado, Gnóstico.

Enquanto isso não acontece, o profano está num estado de sonolência, semelhante ao da própria morte. È o que nos explica Dante no quarto terceto:

"Io non so ben ridir com'io v'entrai,
tant'era pieno di sono a quel punto

che la verace via abbandonai"

["Eu não sei bem dizer de novo como aí entrei,
tanto eu estava sonolento naquele momento
em que a via verdadeira abandonei"].
(Dante, Inferno, I, 10-12).

           

"Ma poi ch'i fui al piè d'un colle giunto,
la dove terminava quella valle
che m' avea di paura il cor compunto, 

guardai in alto, e vidi le sue spalle
vestite già de' raggi del pianeta
che mena dritto altrui per ogni calle
"

 [Mas depois que cheguei ao pé de uma colina,
lá onde terminava aquele vale,
que me tinha de medo compungido o coração,
olhei para o alto, e vi as suas encostas
vestidas já pelos raios do planeta
que conduz correctamente outrem por todo lugar
].
(Dante, Inferno, I, 13 -18).

            Tanto esta interpretação é verdadeira que o próprio Dante a confirma no seguinte texto:

"Nullo sensibile in tutto lo mondo è più degno di farsi esempio di Dio che 'l sole"
[Nenhum ser sensível em todo o mundo é mais digno de ser exemplo de Deus do que o sol"]

( Dante, Convívio, III, XII).

            Essa paz que a contemplação do sol traz, refere-a Dante no sétimo terceto:


"Allor fu la paura un poco queta
che nel lago del cor m' era durata
la  notte ch'io passai con tanta pièta.”

[Então ficou um tanto aquietado o medo,
que, no lago do coração, me tinha durado
toda aquela noite, que passei com tanta miséria]

(Dante, Inferno, I, 19-30).

                        Dante, fala em "coração", enfatizando que a "paura"  [medo] actuara nele "nel lago del cor" [na concavidade do coração].


            No Convívio, Dante explica que o coração é aquela parte da alma com que o homem comunica com Deus, ou seja, o espírito, a mente:

"E da sapere che è che in tutta questa canzone, secondo l'uno senso e l'altro, lo "core" si prende per lo secreto dentro, e non per altra spezial parte de l'anima e del corpo" [É conveniente saber que em toda esta canção, conforme um sentido e outro, por "coração" se entende o que há de mais secreto dentro [do homem], e não uma outra parte especial da alma ou do corpo] (Dante, Convívio, II, VI)


"Onde si puote omai vedere che è mente: che è quella fine e preziosissima parte de l'anima che è deitade"  [ Onde se pode ver já agora o que é mente : que é aquela fina e preciosíssima parte da alma que é a divindade] (Dante, Convívio, II,II).

            No segundo episódio do canto do Inferno, décimo primeiro terceto, Dante, seguindo esta ideia trinitária, expõe como três feras o ameaçaram em seu caminho: uma onça, que simboliza a impureza carnal; um leão que simboliza a ambição do poder e a soberba; uma loba que simboliza a avidez de riquezas.

"Ed ecco, quasi al cominciar dell' erta,
una lonza leggiera e presta molto,
che di pel macolato era coverta;

e non si mi partìa d' innanzi al volto,
anzi impediva tanto il mio cammino,
ch 'io fui per ritornar più volte volto
"

[E eis que, quase no início da subida,
uma onça ágil e muito rápida,
que tinha de pelo manchado estava coberta
e não me saía da frente de meu rosto
,
antes me impedia tanto o caminho
que eu várias vezes me voltei para voltar atrás
"]
(Dante, Inferno, I, 31-43)

            Mal se livrara da onça, aparece a Dante um leão:

“ma non sì che paura non mi desse
la vista che m' aparve d' un leone.

"Questi parea che contra me venesse
con la test' alta e con rabbiosa fame
sì che parea che l'aere ne temesse".

 [Mas não tanto que não me desse medo,
a vista que me apareceu de um leão.
Este parecia que vinha contra mim,
com a cabeça alta e com raivosa fome,
tanto que parecia que até o ar o temesse].
(Dante, Inferno, I, 44-48).

            Este leão é comummente interpretado como simbolizando o orgulho, pela cabeça levantada com que Dante o descreve.

            A seguir aparece-lhe uma loba:

"Ed una lupa, che di tutte brame
sembiava carca nella sua magreza,
e molte gente fe' già viver grame,

questa mi porse tanto di gravezza
con la paura ch'uscia di sua vista
ch' io perdei la speranza dell' altezza
.

[E uma loba, que de todos as ânsias
parecia carregada na sua magreza,

e muita gente já fez viver tristemente,
esta me impôs tanto de preocupação
com o medo eu saía de sua aparência
que eu perdi a esperança de alcançar as alturas
"]
(Dante, Inferno, I, 49-60).

Essa loba faminta e gulosa, simboliza a ambição das riquezas traduzida na avareza, que se opõe á sabedoria gnóstica, já que toda a riqueza é material e como tal fonte de todo o mal, sepulcro da vida divina.

 

Continua

 

 



publicado por Manuel Maria às 11:35 | link do post | comentar

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