Sexta-feira, 26 de Outubro de 2007

 

 

 

 

Aqui cheguei, o corpo cansado.

Na vida breve, no amor também.

As estações passando pela minha pele

Como ténues ventanias

Fustigando os ramos

Em feliz melodia.

 

 

Dos tostões ganhos com afã,

Um níquel chega para o óbulo;

A passagem resgatada,

A barca pronta, com o seu barqueiro.

Só uma pequena moeda para a viagem,

Quando fechando os olhos,

Apagamos a luz da nossa mente

E o clamor das sombras

Conflui do lamentoso brotar das raízes

Pelas nodosas veias do tronco,

Às folhas.

 

 

Uma viagem demorada,

Num rio calmo,

Enquanto a sombra nos vai envolvendo,

Que quando uma árvore cai

Não fica logo a dormir:

Existe sempre um pequeno intervalo,

Entre a Luz e as Sombras,

No exacto momento

Em que se passa

Para o mundo aquifero.

 

 

E depois...

As folhas secam,

Pois já nada consegue apagar

A insaciável treva da morte.

 

 



publicado por Manuel Maria às 14:57 | link do post | comentar | ver comentários (1)

 

 

 
                                               Segunda Cascais agosto vinte e um.

   Apesar do Mar estar tranquilo o Verde está todo desaparafusado.
   Perderam-se os parafusos. Foram ficando pelo caminho.
   Por mais que o Verde faça, não há mais Verde que o Verde. Quem pudesse voltar atrás. E contudo, o Mar está tranquilo. É bem uma prova que o Verde nada tem a ver com o Mar.
   Ah! Se o Verde não fosse doido, se fosse um Verde salsa, por exemplo. 

                                                                                                   ZU


                                                                                                   Almada Negreiros

 



publicado por Manuel Maria às 14:55 | link do post | comentar | ver comentários (1)

 

Marcial, foi o primeiro autor a abandonar o rolo e a escrever em livro.

 

 

 

 

    Marco Valério Marcial, poeta latino do primeiro século e de origem Espanhola, protegido de Lucano e Séneca, também eles espanhóis, foi quem elevou o epigrama ao nível da arte, com versos aparentemente singelos, culminando numa observação sarcástica imprevista que apanhava de surpresa os leitores.

     Publicou várias obras, das quais a mais conhecida é a epigrammata (epigramas), em doze volumes e mais de mil versos, que pela amplitude dos seus temas abrange desde as personagens mais humildes ás mais ilustres de Roma, que ele descreve objectivamente, com todo o rigor, a ponto de afirmar, com uma pontinha de imodéstia, que a sua obra «sabe à vida humana».

     Só um exemplo, onde ele combinando a sátira com o humor, em versos despreocupados de um frasear fluente, para se perceber como ele avança rapidamente nos seus epigramas para a essência da questão, dando no fim o "golpe de misericórdia" no visado:

 

 

   «Milão, não está em casa;

    Milão foi-se embora, e

   Os seus campos estão abandonados;

   No entanto, a sua mulher não é menos fértil,

   Já que a sua terra é estéril e a sua mulher fértil,

   Então direi:

   À terra dele falta um cultivador,

   Mas à mulher não.»

 

 

   Mas esporadicamente, Marcial surpreende-nos com uma ou outra lírica melancólica ou um poema bucólico agradável, no meio dos seus epigramas. Aqui fica outro exemplo, este enaltecendo a vida no campo:

 

 

   «Nem tão pouco vem o visitante do campo de mãos vazias:

   Traz puro mel no favo

   E uma pirâmide de queijo do bosque de Sassina;

   Que se dá aos arganazes sonolentos;

   Esta é a progenitora balinte de uma mãe desnaturada;

   Outra, capões privados do amor.

   E as robustas filhas dos agricultores honestos oferecem

   Num cesto de verga os presentes das mães.»

 

 

   No vol. X, a parte de que mais gostei nos epigramas quando os li pela primeira vez e ainda era fluente em latim há vinte e tal anos, Marcial condensou para os amigos os seus conselhos sobre a maneira de aproveitar a vida ao máximo:

 

   «São estas as coisas que tornam a vida melhor, mais feliz, mais agradável: dinheiro não ganho, mas herdado; uma quinta produtiva, uma lareira sempre aquecida por um bom fogo; nunca uma acção em tribunal, raramente exercer actividade; paz de espírito; força interior, um corpo são; prudência e honestidade, amigos iguais a si próprio; prazeres informais, uma mesa simples, uma noite não embrutecida, mas livre de preocupações; uma cama não puritana, mas decente, sono que faz passar depressa a noite; o desejo de se ser o que se é e de não exigir nada demais, nem temer nem desejar a morte.»



publicado por Manuel Maria às 14:49 | link do post | comentar | ver comentários (1)

Quinta-feira, 25 de Outubro de 2007

 

erreur de casting !!!

 

erreur de casting !!!

 

 

 

Sete vidas tinha o pantufas.

 

Era um gato de sete folegos

e dormitava as tardes

ao sol da janela,

entre as sardinheiras.

 

Sete vidas teve o pantufas

e sete vezes caíu,

daquela janela

com sardinheiras.

 



publicado por Manuel Maria às 21:15 | link do post | comentar | ver comentários (4)

Terça-feira, 23 de Outubro de 2007

  

 

 

 

A Elvira Polónia,

Que me cria como a um filho que nunca teve,

Foi quem me desmamou.

 

Lembra-me como se ainda fosse hoje:

Eu de ano e meio,

Deixou-me minha mãe com a Elvira

Para me tirarem o vício da mama.

 

Passei com ela uns tempos

E de noite,

Quando lhe levantava a camisa

À procura da mama

A Elvira apontando a grande janela aos pés da cama,

Por onde entrava a lua cheia,

Assustava-me:

-Olha o cão joão! Olha o cão!

 

Aninhava-me então à Elvira,

Amedrontado,

Esquecido da mama

E ela, abraçando-me

Sossegava-me:

-Já se foi… Já se foi…meu anjo.

 

Lembra-me como ainda se fosse hoje!

Eu de ano e meio,

E a Elvira abraçando-me e apontando a grande janela aos pés da cama,

Por onde entrava a lua cheia:

-Já se foi... meu anjo...

 



publicado por Manuel Maria às 16:57 | link do post | comentar | ver comentários (1)

Sábado, 20 de Outubro de 2007

 

 

   

Entrou o Juiz,

a procuradora logo de seguida

e a ré ao centro, sentada,

olhava para mim.

 

 

Aceitei o caso

-umas simples injúrias-

a troco de uma caixa de maças,

fraca paga

para tanta diligência processual.

 

Alegou o colega

enquanto fiz o esboço da figura do juíz

na capa do processo.

 

À minha vez,

Levantei-me

-os cumprimentos da praxe-

e todos aguardavam o dicurso.

 

Abrindo os braços vagarosamente

fitei o Juiz,

a assistência

e a ré ao centro, sentada,

olhando para mim.

 

Fiz o cálculo mental ao meu trabalho,

ao peso da caixa,

ao preço desta,

e saíu-me um ridículo

pedido de justiça;

 

Mas ainda assim,

pelas minhas contas,

fiquei com um crédito

 de outra cmeia caixa de maças.

 

 

 



publicado por Manuel Maria às 17:14 | link do post | comentar | ver comentários (1)

Sexta-feira, 12 de Outubro de 2007

 

 

  

           

O Roman de Renart, é um livro de 150 contos, formando um corpus, estruturado em cantigas de versos octossílabos e rimas corridas, escrito entre 1140 e 1350, ao estilo da langue d’oil, que se falou nas regiões da Picardia, Normandia, Artois, Hainaut e Champagne, quando a unidade política e linguística, que é hoje a França, ainda era uma miragem.

Estas cantigas são narrativas simples em versos sobre episódios da vida quotidiana., tal como as fábulas, os milagres e contos, mas sem o fim didáctico ou edificante destes e apenas para distraírem, Na sua estrutura são também mais curtos do que as canções de gesta, tais como as do rei Artur ou a Canção de Rolando.

O Pitoresco da linguagem e o cómico das situações é muito interessante nalguns destes contos. Aqui fica um muito resumido, só para exemplo, que tem por mote uma passagem bíblica sobre a caridade. Intitula-se ele “A vaca do padre”:

 

 Um vilão escuta o sermão de um cura que o incentiva a fazer oferendas «Porque deus o dobro daria/ a quem de boa vontade desse». Propõe pois à mulher dar a vaca ao padre. «Aliás, ela pouco leite dá». Vai oferecer a vaca ao padre, que o felicita: « Se somente fossem tão sensatos/ os meus paroquianos como vocês são,/ eu teria animais em abundância».

Para habituar a vaca ao seu lameiro, o padre manda amarra-la à sua. Mas a vaca do camponês quer voltar para casa e tanto puxa a corda, que arrasta a vaca do padre até aos lugares que lhe são familiares.

Ao ver as duas, o vilão extasia-se: «Verdadeiramente Deus sabe bem dobrar./ Pois que Blére volta com uma outra./ Traz uma grande vaca escura./ Temos duas, por uma!/ Muito pequeno será o nosso alpendre…»

 

Veja-se como na grande subtileza do último verso, o narrador resume toda a ganância do vilão: «Muito pequeno será o nosso alpendre…». Trata-se de uma espécie de «moralidade», aqui inserida por concessão à «língua de pau» da época, para censurar a caridade interesseira de muita gente.

A rir a rir… já naquele tempo se diziam muitas das verdades!

 

 

 



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A obra mais popular de Aristóteles é a Ética Nicomaqueia, assim chamada por ter sido traduzida por Nicómaco, que trata da vida feliz e se divide em dez livros, subdivididos por capítulos, onde se desenvolvem alguns temas do aspecto principal.

            O livro VIII versa sobre a amizade, que Aristóteles considera «indispensável à vida». Três são os tipos de amizade, segundo ele:

            A baseada no interesse, de curta duração, porque só dura na medida do interesse mútuo e enquanto este existe; a baseada no prazer mútuo, frequente entre os jovens que dura enquanto ambas as partes se julgarem mutuamente interessantes; e a «perfeita», que existe entre as pessoas «que querem o bem dos amigos sem esperarem nada em troca..»

            Esta última, porque é baseada na virtude, é estável e duradoura, «por conter em si todas as condições legítimas da amizade». Estas amizades são provavelmente raras, por haver poucas pessoas capazes de as experimentar, porque exigem tempo e intimidade. Só «quando o amor está presente na medida certa, é que os amigos são permanentes e a amizade é duradoura». «Os amigos desejam fazer bem a cada um, como sinal da sua amizade e bondade», porque «é mais próprio de um amigo fazer o bem que recebe-lo, já que os actos de generosidade são parte essencial do homem bom e da virtude, e que é mais nobre fazer o bem aos amigos que aos estranhos, que o homem bom necessita de alguém a quem fazer o bem.». Em suma, os amigos com bom carácter e generosos tornam-nos homens melhores.

            Depois, a respeito da quantidade de amigos, que se devem ter, diz Aristóteles que nos devemos sentir felizes com poucos amigos, porque a amizade exige intimidade e esforço tanto nos bons como nos maus momentos. Por conseguinte é idiota quem se gaba de ter muitos amigos; quando não tem nenhum, porque os tem em demasia!

            O filósofo também descreve as circunstâncias que levam à ruptura da amizade: Quando o carácter de uma pessoa se transforma, é fácil por termo a uma amizade baseada na utilidade, porque, diz ele, o entendimento deixa de existir e não há razão para prolongar a camaradagem.

            Mas nas amizades baseadas no carácter, a decisão é mais difícil de justificar. Aristóteles aconselha em todo o caso os amigos desavindos a melhorar-se mutuamente. Mesmo que a amizade se não mantenha, as duas partes devem-se mútuo respeito em nome da amizade que os uniu.

            Como tive a felicidade de estudar profundamente Aristóteles e os outros filósofos, intui bem estes ensinamentos que segui ao longo da minha vida:

Assim, os meus amigos contam-se pelos dedos de uma só mão, mas são o meu bem mais precioso, porque todos eles são dotados de um excelente carácter e generosidade. Aprecio-os a todos pela altura das árvores ou a transparência dos rios que habitam nas suas almas! Quero-lhes a todos pela sombra que proporcionam e pela frescura que trazem, aos dias mais áridos da minha existência.

 

           

 

 



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Quarta-feira, 10 de Outubro de 2007

 

 

 Túmulo de Abelardo e Heloísa em Paracleto

 

    Nos claustros do mosteiro de Paracleto, na região de Champagne, em França, existem, lado a lado, duas sepulturas; a do grande filósofo medieval Pedro Abelardo e de uma mulher desconhecida, de nome Heloísa.

 

   Estranha-se, num lugar tão sagrado, estas duas sepulturas de uma abadessa e de um ex-abade e filósofo, enterrados como se de marido e mulher se tratassem, sobretudo quando temos presentes as palavras de Gregório o Grande (papa de 590 a 604) numa carta a Santo Agostinho de Canterbury, acerca da mácula do prazer carnal, mesmo no casamento: «Não pretendemos que o casamento seja culpável. Mas porque esta união conjugal lícita não pode ter lugar sem a voluptuosidade carnal, deve-se abster de entrar num local sagrado, a voluptuosidade não podendo ser, quanto a ela, de modo algum sem pecado».

 

   Mas quem já leu a histoire de mes malheurs de Pedro Abelardo e as cartas que se lhes seguem (do séc. XII), sabe que aquelas duas sepulturas testemunham uma história verídica de amor pouco convencional na alta idade média entre dois seres extraordinários.

 

   Abelardo, filho de uma família nobre da Bretanha de expressão francesa, seguiu estudos para a alta carreira eclesiástica, tornando-se um dos maiores filósofos do seu tempo e mestre da prestigiada escola de Notre-Dame.

 

   Aos 35 anos, era já um homem em plena maturidade e na posse de todos os seus meios, vindo de toda a França gente para o escutar, a peso de ouro. È então que conhece Heloísa, 20 anos mais nova e à qual se liga por amores trágicos.

 

   Esta Heloísa, também oriunda de boa nobreza, vivia em casa do seu tio Fulbert, cónego de Notre-Dame.

 

   O seguimento da história, tão simples quanto romântica, vem narrado na Histoire des mes malleurs e resume-se assim:

 

   Abelardo tomou pensão na casa de Fulbert e pagava a estadia com lições particulares a Heloísa, pois naquele tempo as mulheres não eram admitidas nas escolas eclesiásticas. Entre a jovem e o mestre nasceu uma paixão, até que Abelardo passou a descurar os seus cursos na catedral, preferindo compor versos em honra de Heloísa.

 

   Heloísa apareceu grávida, o tio enfureceu-se pela honra perdida da família e Abelardo raptou-a, levando-a para casa da família, na Bretanha.

 

   De volta a Paris, Fulbert exigiu de Abelardo a reparação da honra da família. A solução de compromisso foi este renunciar à carreira alta eclesiástica, da qual só tinha ordens menores, e à cátedra de Notre-Dame, para que tanto se havia preparado anos a fio.

 

   Heloísa, percebendo o seu grande sacrifício, pediu-lhe que renunciasse ao casamento: «Ela antes queria ser chamada minha amante a minha mulher; deste modo só a ternura me ligaria a ela e não a força do laço conjugal», segundo confessa Abelardo na sua autobiografia.

 

   Contudo Abelardo insistiu. Heloísa regressou da Bretanha, onde deixou o filho recém-nascido; o casamento ficaria em segredo e o casal viveria separado a fim de não prejudicar a carreira de Abelardo.

 

   Fulbert que exigia uma reparação pública, espalhou aos quatro ventos a notícia do casamento. Abelardo, ripostando, instalou Heloísa entre as freiras de Argenteuil. Flubert e a família, furiosos e temendo que aquele fosse o primeiro passo para o repúdio, contrataram uns capangas, que castraram Abelardo.

 

   Abelardo, refez-se do choque psicológico como pode e resignou-se a tomar o hábito monástico em Saint-Denis, enquanto Heloísa tomou hábito em Argenteuil.

 

   Mas o extraordinário, e aqui é que vem o mais bonito da história, é que a paixão entre os dois sobreviveu à mutilação e à separação dos corpos, para se exprimir vinte anos depois, em várias cartas trocadas entre ambos e que chegaram até nós.

 

   Heloísa, entretanto fundou o mosteiro de Paracleto e Abelardo retomou o ensino, o que lhe originou grandes dissabores com a ortodoxia religiosa e grandes arrelias com Bernardo de Clarivaux, abade de Cister.

 

   Heloísa, apesar do seu cargo de abadessa em Paracleto, não conseguiu apagar do espírito a lembrança dos antigos amplexos e dos momentos de felicidade para sempre perdidos com Abelardo; a paixão que ela conservava, mantinha-se bem viva.

 

   Por volta de 1132, Abelardo, já abade de Saint-Gildas, na Bretanha, resolveu escrever a sua própria autobiografia; a tal Histoire des mes malleurs. A lembrança do passado relatado nesta autobiografia fez renascer em Heloísa uma tal emoção, que esta escreveu a Abelardo, uma atrás de outra, três longas e magníficas cartas em que reafirmava o seu amor com a força de uma paixão desesperada e uma sensualidade exacerbada.

 

   Assustado com tanto ardor para uma religiosa devotada a Cristo, Abelardo respondeu num tom quase impessoal, convidando-a a transferir para Deus todo o amor outrora concebido por ele.

 

   Nova e ardente troca de cartas e novamente o silêncio entre ambos, a não ser um curto bilhete de Abelardo em 1140, quando já enfrentava as perigosas acusações de heresia, da parte de S. Bernardo de Clarivaux. Neste momento decisivo, a ternura de Heloísa era um momento de consolação. Condenado no consílio de Sens, viria a morrer em 1142 num priorado culuniacense para onde lhe fora permitido retirar-se.

 

  Heloísa ao ter conhecimento da notícia, pediu a Pedro, abade de Cluny os restos mortais de Abelardo para os sepultar em Paracleto, onde ela própria se fez sepultar vinte anos mais tarde.

Estes são os factos. A sua interpretação, mesmo à luz do direito canónico, fica para quem puder. Mas é certo que estas duas sepulturas, assim lado a lado, provam-nos como até no séc. XII, um homem e uma mulher, como em qualquer outra época, puderam sucumbir, apesar da diferença de idades, da posição e das barreiras do mundo, a um amor irresistível, feito ao mesmo tempo da comunhão das almas e da atracção dos corpos.

 

 



publicado por Manuel Maria às 19:39 | link do post | comentar | ver comentários (1)

 

 

 

 

…Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu…

Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me

(se bem que eu fosse crescido demais para isso)…

Lembro-me e as lágrimas caem-me sobre o meu coração e lavam-no da vida,

E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim

Às vezes ela cantava a «Nau Catrineta»:

 

Lá vai a Nau catrineta

Por sobre as àguas do mar…

 

E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,

Era a «Bela Infanta»… Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim

E lembra-me que pouco me lembrarei dela depois, e ela amava-me tanto!

Como fui ingrato com ela – e a final que fiz eu da vida?

Era a «Bela Infanta»… Eu fechava os olhos, e ela cantava:

 

Estando a Bela Infanta

No seu jardim assentada

 

Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar

E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.

 

Estando a Bela Infanta

No seu jardim assentada,

Seu pente de ouro na mão,

Seus cabelos penteava.

 

Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!

Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,

E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!

Mas tudo isto foi passado, lanterna a uma esquina de rua velha.

Passar isto faz frio, faz fome de uma cousa que se não pode obter.

Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.

Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!

Vertigem ténue de confusas coisas da alma!

Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,

Quando grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,

Lágrimas, lágrimas inúteis

Leves brisas de contradição roçando pela face a alma…

 

Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção,

Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo,

A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:

 

Fifteen men on the Dead Man’s Chest.

Yo-ho-ho and a bottle of rum!

...

 

                                                                  Fernando Pessoa (poemas de Alberto Caeiro)



publicado por Manuel Maria às 19:36 | link do post | comentar | ver comentários (1)

Quarta-feira, 3 de Outubro de 2007

 

 

 

 

Hei-de regressar um dia a esta terra lavrada

e ceifar o trigo

quando a brisa tombar as espigas maduras.

 

 



publicado por Manuel Maria às 12:30 | link do post | comentar | ver comentários (4)

Segunda-feira, 1 de Outubro de 2007

 

 

Capeia Arraiana - Aldeia do Bispo (Riba Côa). O Ismael a consumar uma grande pega..

 

 

O desenho de um par de bandarilhas

E por baixo em letras bem desenhadas:

«Fulana põem-nas a Beltrano

Com Cicrano»

Dizia o cartaz colado na porta

Que ele arrancou,

Furioso.

 

Depois pincharam-lhe na parede

A letras garrafais, enormes,

Pela calada da noite:

«Beltrano é um grande…»

 

Aí ele veio logo

Com uma trincha

E apagou a inscrição

Mas tão desastradamente

Que ainda deixou perceptível,

Ao lado da ombreira,

A ponta de um

«… CORNO».

 

Fechou-se em casa,

cabisbaixo,

E a rapaziada vinha desafiá-lo:

- Hei toiro! Hei! Hei toiro, Hei!

 

Então assomando à porta,

Ele chamava-lhes nomes,

Cerrava os punhos,

Ameaçava-os.

 

E a populaça citava-o:

- Hei toiro lindo! Hei toiro lindo!

 

Então cego de raiva,

Espumando das ventas,

Ele investia pelo terreiro:

 

- Olé! Olé!

 

E começava a tourada.

 

 

 



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