(Ao meu tio-avô João Nobre, o protagonista da história)
Ainda se ouve ao longe o trovão,
que fustigou a noite incessantemente;
o Sol, alegre e luminoso
na manhã, bela e amena,
o rosto vai descobrindo;
os pássaros, de ramo em ramo,
com a sua doce melodia,
o dia vão acordando;
já a suave e calma manhã,
abre as portas ao sol,
quando sai o pastor amoroso,
a ver o rio entrado nas margens,
o fresco solo verdejando,
da chuva copiosa do céu;
e atravessando o verde prado,
que as acrescentadas águas do Côa
serenamente descem,
alegre vai o pastor
noivar à sua aldeia
com Maria sua amada,
deixando o rebanho no bardo.
Não vai como costume a pé,
nem leva as tamancas
cravejadas de brochos,
nem a samarra grossa
de peles de lobo morto,
tintas em sangue de vaca;
mas sapatos de carneira,
meia branca lagarteada,
calça subida a meia canela,
botões de latão polido
no colete de risca,
que lhe fez Maria.
Vai cavaleiro brioso
na sua égua baia,
a sela leva de frisa,
e de banda, tapando a franja,
chapéu novo de festa,
capa de roda larga,
debruada a verde-escuro,
e guardada junto ao peito
de Maria a trança negra.
Chega o pastor à vila
pelo caminho dos vales
e a Maria espera-o ao portão;
traz cingida na cintura fina,
blusa de verde escarlate,
saia e saiote de pano;
a fita de cetim preto,
que o pastor amoroso lhe deu,
enfeita a corda dos cabelos.
Ao Largo das nogueiras,
pressentindo a morte
às primeiras casas,
assusta-se a égua baia,
derrubando o pastor amoroso,
que desacordado, levam
Para casa da sua Maria.
E jazendo enfermo assim,
ao vê-lo definhar, a infeliz,
lava-lhe o sangue do cabelo,
aplica-lhe panos de água morna,
anda em bicos de pés
para não perturbar o silêncio,
chora pelos cantos da casa,
limpando as lágrimas furtivas
ao panal de estopa grossa,
promete uma novena,
cem voltas à capelinha,
acende a luz do oratório,
reza ao Senhor dos Aflitos:
-Doce Jesus da minha vida,
esperai, não mo leveis ainda;
que não é bom que queirais
uma alma tão nova perdida.
E acrescentando azeite,
espevitando o pavio:
-Eu, meu Jesus, Vos rogo,
e volto a suplicar-Vos,
leva antes a minha vida;
que se Vós ma destes,
de boa mente ta devolvo,
porque a troco por amor.
E regressando à cabeceira,
aperta-lhe a mão gelada,
acaricia-lhe a testa em fogo,
que cobre de mil beijos.
-Não morras! – Lhe pede, chorosa.
-Ai, ai, Maria, Maria,
Que vejo a morte,
em seu véu branco,
rondando a cama!
-Lhe responde o pastor,
Sentindo o frio
subindo a espinha.
-Não digas tolices!...
Ainda haveremos de casar…
Ter um rancho de filhos!
– Recrimina-o ela, doce,
com um beijo nos lábios.
-Ai, ai, Maria, Maria,
-Lhe diz o pastor, alucinando-
A sua boca gelada
já beijou a minha!...
Canção, cala-te agora; não digas mais;
que os versos que escreverias,
falariam dos olhos tristes de Maria,
mais tristes que mortalha fria!